O sol mal tinha tocado os telhados do morro quando Corvo apareceu na entrada da ONG. O segurança da vez, já acostumado a vê-lo sempre ao lado de Isis ou Theo, nem pestanejou. Abriu o portão com um aceno curto de cabeça — aquele gesto de quem reconhece importância sem precisar de palavras. A ONG ainda respirava silêncio. Algumas crianças já corriam pelo pátio, rindo baixinho, mas os projetos só começariam dali a pouco. Neumitcha, como sempre, estava na sala de leitura. Aquele canto era seu ritual matinal. Revisava os livros infantis, arrumava os pufes, organizava os cantinhos como quem cuida de um templo. Depois, sentava para tomar seu café com leite — quente, doce, em paz, antes da correria do dia. Vestia uma saia longa de fundo escuro, com flores vivas espalhadas como fogos de artifício. A blusa preta, justa, desenhava sua silhueta com firmeza e elegância. Brincos dourados pendiam das orelhas, dançando com cada gesto seu. De costas, ajeitava livros quando ouviu a porta ranger devag

A COPA DA COMUNIDADE COMEÇOU. O sol descia devagar sobre o Raízes do Morro, mas a comunidade já tava em festa desde cedo. Bandeiras tremulando, criançada com o rosto pintado, cartazes artesanais, caixa de som estralando funk, e o ginásio da ONG lotado. Mariana, a nossa eterna fiscal do barulho, bufava com a mão na cintura: — Se mais um carro passar com esse pancadão, eu jogo água fervendo! — Relaxa, Mari! Hoje é dia de Copa! — gritou Cebola, com um copo de mate na mão e uma faixa escrito "Raízes neles!" na testa. No portão, um tapete vermelho improvisado com tecido das oficinas de costura da ONG se estendia até o palco do sorteio. Cada chefe de complexo ia chegando do seu jeito, cada carro com uma identidade forte. Era entrada de gala no estilo da quebrada: blindados com neon, motos roncando, carrão espelhado com teto solar. Os Complexos Participantes da Copa da Comunidade: 1. Complexo Raízes do Morro Chefe: Isis Lutador: Binho Lema: "A favela venceu." Estilo de lut

A torcida ainda estava elétrica depois da luta de Binho e Paraibinha. Mas o show não ia parar, não mesmo. A galera gritava, sacudia bandeiras, dançava ao som do DJ da comunidade, que soltava uma batida pesada enquanto o ringue era limpo e preparado para o próximo embate. No canto mais afastado, Theo estava ali, de braços cruzados, com o olhar perdido no meio do furacão.(Isis que minutos atrás cansou de esperar ele sair da sala, nem o viu chegar no meio da arquibancada) Parecia que ele via, mas não enxergava nada. E foi aí que Zóio chegou, com um copo de suco na mão e a cara de quem não ia deixar barato: — Vai ficar com cara de enterro mesmo? A gente tá vivendo um evento histórico aqui e tu aí, com esse semblante de velório! Bê veio logo em seguida, todo suado, com a camisa do Raízes colada no corpo. — Na moral, Theo... acorda, mano. Olha essa Copa. Olha a alegria da criançada. Olha a Isis. Ela tentou falar contigo umas três vezes e tu tá aéreo, mermão. Você trabalhou duro pra isso

A noite já tinha tomado conta do céu do morro quando Yasmin entrou no ringue com a postura de quem sabia exatamente o que estava fazendo. O público vibrava, e ela não hesitava — cada passo seu era firme, leve, com aquela energia de quem nasceu praquilo. Seus olhos, no entanto, não estavam no Pavio. Estavam na grade, onde Binho a encarava em silêncio. Era como se aquele fosse o verdadeiro embate: o olhar dele contra a decisão que ela já tinha tomado.Pavio pulava no próprio eixo, socando o ar, aquecendo como se já tivesse a vitória nas mãos. Representava o Complexo da Kerozene, e a torcida dele fazia barulho, sacudia bandeiras, cantava alto. Mas Yasmin... parecia estar num universo paralelo.No primeiro round, ela fez a arquibancada enlouquecer. Desviava dos golpes com facilidade, contra-atacava com precisão, dançava ao redor de Pavio com a leveza de uma profissional. Theo, assistindo ao lado de Isis, não escondeu o encanto:— Essa garota é um fenômeno — comentou, quase em transe.Isis

A arquibancada da ONG estava lotada. Bandeiras tremulavam, tambores batiam, e o grito das torcidas tomava o ar com um fervor que só o morro sabia sustentar. A semifinal da Copa da Comunidade estava prestes a começar, e o clima era de pura eletricidade. Do lado esquerdo do ringue, Mook subia com seu jeito debochado, mastigando chiclete como se não estivesse prestes a enfrentar uma das maiores promessas da competição. Do outro, Pavio, ainda embalado pela vitória sobre Yasmin, aquecia os braços como quem queria sangue. Na grade, Neumitcha, de braço dado com Corvo, observava tudo com olhos atentos. Gelo, Yasmin, Nilo e até Dona Mariana estavam ali, apreensivos. O que esse tal de Mook ia aprontar? Theo estava encostado na parede dos bastidores, caderno em mãos. Anotava tudo. Não como policial, mas como cronista do morro. O arquivo da Dona do Morro ganhava novas linhas naquela noite. Linhas tensas. Quando o gongo tocou, Mook partiu pra cima com agressividade desmedida. Batia, empurrava,