Primeira Parte: 3

Havia um ponto de encontro na Zona Alta, um local entre os maiores prédios, num distrito formado basicamente por motéis e sex shops. Um dia tivera nome sério, do tipo que soava como um clube exclusivo para quem realmente tinha dinheiro para gastar com amenidades caras no dia a dia. Contudo, seu formato incomum fizera com que os frequentadores o chamassem de A Bolha.

Construído inicialmente para ser um mirante, A Bolha tinha 170 metros de altura. Para chegar ao topo, onde as festas ferviam com ainda mais calor, era necessário subir cinquenta andares de elevador. O último andar formava um enorme domo de vidro, e, nos dias de final de semana, era possível ver de longe a maneira como a redoma brilhava, enquanto luzes coloridas eram lançadas em feixes no interior. Ninguém sabia se os donos do lugar gostavam que ele fosse chamado popularmente assim, mas esse acabara virando seu nome, e não havia nenhum outro clube tão conhecido em toda a cidade de Porto Áureo.

Essa noite, a música parecia mais alta do que de costume, e Demitre adorava. Olhou através da parede recurva, notando como quase nunca fazia isso.

A Zona Alta não era seu lugar — o lado da cidade onde era necessário receber um salário anual de muitos dígitos para se comprar um lanche numa esquina. Era também a parte de Porto Áureo em que se preservavam locais históricos: praças e prédios da época em que o país ainda era uma região geográfica pertencente a outra nação.

2044 ficara registrado na História como O Ano do Separatismo. O maior país do continente deixara de ser um estado único graças à guerra. Hoje, quase cinquenta anos depois, cada um dos cinco países em que ele se transformara ainda buscava conservar pontos específicos de suas cidades. Esse era outro motivo pelo qual Demitre não se impressionava muito ao olhar para fora. O passado nunca havia sido seu amigo.

Ainda assim, de todo modo, precisava admitir: era uma vista bonita. As construções tão altas quando vistas de baixo pareciam pequenas dali. Sob uma noite nublada, os prédios tinham suas luzes acesas, fazendo com que toda a extensão da Zona Alta, até onde os olhos podiam ver — morros muito distantes —, fosse um tabuleiro salpicado por estrelas caídas. As estradas pareciam desinteressantes, com seus outdoors eletrônicos agora minúsculos e placas de trânsito fora de alcance de visão.

— Já está cansado, seu puto? — berrou Lexia, aproximando-se por trás e lhe dando um empurrão.

A bebida fluorescente na mão de Demitre derramou um pouco, e ele xingou sua amiga por isso.

— Estou poupando energia — explicou, limpando a mão enluvada na camisa. — Trabalho amanhã. Não sou vagabundo igual a você.

Lexia apoiou os cotovelos no corrimão que cercava as paredes, também segurando uma bebida, e o estudou de cima a baixo.

— Sábados não foram feitos para trabalhar. Não há um livro em algum lugar que diz que o sétimo dia foi feito para descansar ou alguma coisa assim? — Então, lançou-lhe uma piscadela. — Não que eu não seja mesmo uma vagabunda quando quero, se é que me entende.

Demitre riu. Ele gostava da vibração emanada por Lexia tanto quanto curtia a festa em si. A presença dela era capaz de transformar qualquer reunião despretensiosa numa grande celebração. Seus cabelos azul-turquesa precisavam de retoque há muito tempo; era possível ver ao menos dois centímetros de raízes louro-cinza no topo da cabeça dela, e as pontas estavam tão desgastadas que pareciam brancas. Ele a admirava principalmente por dois motivos: primeiro, por sua beleza quase impraticável — nariz e lábios de aspecto esculpido, sobrancelhas dramáticas, bochechas levemente encovadas e corpo bem magro —, e, em segundo lugar, porque ela não dava a mínima para a aparência. Ainda conservava no ombro uma das tatuagens mais horríveis que Demitre já havia visto na vida; vestia-se como uma acompanhante barata; negligenciava cuidados com a pele e com o cabelo; e, nas poucas ocasiões em que decidia se maquiar, acabava por parecer um supervilão de quadrinhos antigos. Não era nada do que se esperava de uma estudante de enfermagem. Ainda que ela fosse bolsista, Demitre se perguntava como havia conseguido estágio no Hospital Universitário menos de um ano atrás.

O terceiro motivo por que Lexia era, para Demitre, uma das pessoas mais raras do mundo era que eles tinham uma conexão que parecia extra-humana. Muitas vezes, um conseguia supor o que o outro estava pensando só pela maneira como respiravam — Lexia o aconselhava a nunca contar isso a ninguém, para evitar que fossem sequestrados, levados a algum laboratório governamental e tivessem seu cérebro dissecado por cientistas.

Ela arregalou os olhos de repente, vendo algo para além das costas dele.

— Ah, merda! — Desencostou-se da beirada e envolveu o pescoço do amigo com os dois braços, trazendo-o para perto. — Meu ex está aqui. Está olhando para cá. Finja que está comigo.

Demitre sentiu cheiro de frutas vermelhas no hálito dela. Passou os braços por suas costas e se aproximou do seu rosto.

— Ex? Aquele que trabalhava consertando impressoras? Ele sabe que somos apenas amigos.

— Não, o que trabalhava no cinema.

Forçou a memória.

— Você não me contou desse.

Demitre notou que havia purpurina no rosto de Lexia, e ela reluzia à medida que as luzes a atingiam.

— Falei, sim, porra. Aquele que roubava chocolate na loja do posto de gasolina.

— Ah… — recordou-se. Nunca havia visto o sujeito. — Eu não sabia que vocês tinham namorado.

— Só durou um mês e meio.

— Aquilo foi um namoro? Achei que vocês estavam só se pegando.

— É uma longa história. — Fez uma careta. — Dance comigo. Finja que eu sou a pessoa mais gostosa que você já pegou na vida.

— Você é a pessoa mais gostosa que já peguei na vida.

— Você nunca me pegou, idiota!

— Não na vida real. Mas nos seus sonhos molhados, com certeza.

Ela riu.

— O que esse babaca está fazendo aqui? Já conheci um cachorro de rua que tinha mais dinheiro para pagar a entrada do que ele.

— Talvez ele tenha subido na vida. Quem sabe tenha deixado a Zona Baixa e agora ande com ricaços? — sugeriu Demitre. — Você deve ter perdido a oportunidade de se casar com um cara rico e lhe dar um golpe.

— Aquele ali? — Soltou uma risada irônica. — A próxima parada para ele era a sarjeta. Aposto que fez as amizades certas, isso sim. É a cara dele depender de troca de favores.

— Você quer dizer… exatamente como nós dois? — Demitre levantou uma sobrancelha. Tanto ele quanto Lexia só entravam n’A Bolha porque eram próximos do DJ, e apenas nas noites em que o amigo tocava lá.

Enquanto dançavam, Demitre foi lentamente virando a amiga, de maneira que ela ficasse de costas para o ex e ele pudesse finalmente ver o rosto do sujeito. Surpreendeu-se: não era nada como os intelectuais magricelas que Lexia costumava namorar. Era alto, tinha os braços grossos para fora da regata, olhos claros e uma pele que parecia bronze. De fato, olhava na direção dos dois sem o menor acanho.

— Esta festa acabou de ficar chata. Onde a Jota-jota se enfiou? — interpelou Lexia. — Se eu não conseguir encontrá-la em dez minutos, vou dar o fora daqui sozinha.

— Deve estar no banheiro, exercitando os dedos embaixo da saia de uma garota… de novo — ilustrou. Não que ele a repreendesse por isso, já fizera o mesmo mais vezes do que podia se lembrar, exceto que não com garotas. Certamente ela apareceria antes das quatro da manhã, pois odiava chegar depois de Demitre na casa que dividia com ele; sempre reclamava que ele esquecia a porta da frente aberta, e que um dia alguém acabaria invadindo. — Tem certeza de que aquele é seu ex?

— Não esqueço a cara de um ex.

— É, mas… ele não é feio.

— O que quer dizer com isso?

— Que seu gosto por homem é tão ruim quanto seu gosto por roupas — acusou. — O que não é surpresa para ninguém, aliás.

— Ele ainda está olhando para cá?

Demitre deu mais uma olhada no homem de pele acobreada.

— Definitivamente. — E nem ao menos disfarçava, mesmo que estivesse na pista de dança, entre uma porção de outras pessoas atrás de quem ele poderia se esconder.

— Ai, meu Deus! Demitre, me seduza.

— Quê?

— Faça cara de apaixonado, sei lá.

— Para quê?

Ela revirou os olhos.

— Para que ele veja que não estou sozinha.

— Que diferença faz se ele souber, cara? Vocês terminaram faz um ano. Grande coisa.

Lexia o fuzilou.

— Já ouviu falar em “dar a volta por cima”?

— Por cima do quê? Sua vida continua a mesma desgraça de sempre.

— Justamente por isso preciso fazer parecer o contrário! — teimou. — Vamos logo, me seduza! — Demitre não se sentia à vontade com a ideia, mas cedeu. Apertou os olhos para ela e abriu levemente a boca. Lexia fez cara de decepção e balançou a cabeça: — Assim parece que você está com dor de barriga.

— Estou fazendo o melhor que posso, está bem?

— Já vi você flertando. Não é assim.

Demitre bufou, irritado, e partiu para um beijo. Tocou os lábios de Lexia pelo máximo de tempo que pôde, mas a soltou abruptamente.

— Qual é! Nada de língua! — ralhou.

— Era para parecer real, cacete! — justificou-se. Demitre olhou para o ex da amiga uma terceira vez. O homem até arriscava alguns passos de dança, mas o olhar sempre acabava voltando na direção dos dois. Demitre notou, então, que ele não estava tão interessado em Lexia. — Isso! Essa é a cara de flerte da qual eu estava falando!

— É porque agora estou flertando de verdade, e não é com você.

— Quê?

— Ele percebeu que isto aqui é encenação, amiga, e não está olhando para você. Está olhando para mim.

Agora que Demitre retribuía o olhar lascivo, o homem na pista de dança sustentava o contato visual.

— Fala sério!

— Estou falando sério. E, na real, você conhece nossa regra. Comida boa não se joga fora. — Estudou Lexia por um instante. Ela estava frustrada. Tirou os braços de trás da nuca dele e fez bico.

— Vá lá. Aproveite.

— Tem certeza? — Ele não faria nada que a magoasse.

— Desde quando brecamos a vida um do outro, cara? — pontuou. — Além do mais, não é a primeira vez que isso acontece.

Ele deu um tapinha no braço dela.

— Se encontrar a Jota-jota, avise que vou embora depois das três. — Meteu o copo de bebida na mão livre da amiga e a deixou sozinha, partindo para a pista de dança.

Era como se uma força magnética o puxasse na direção daquilo que minutos atrás ele não imaginava que estaria desejando. Não frequentava aquela festa cara para ouvir música, pelas bebidas extremamente doces ou para dançar — isso Demitre podia ter em qualquer lugar. Visitava A Bolha por ser onde encontraria o tipo de homem que o apetecia; e quando o jogo começava com ele próprio despertando o interesse de alguém, era como ganhar pontos extras.

Não trocaram uma palavra sequer. O homem apertou a parte de trás do jeans de Demitre e avançou sedento aos lábios dele. Há quanto tempo ele vinha examinando-o da pista de dança? Há bastante tempo, pensou; podia perceber pela maneira como o cara percorria suas costas com a outra mão, feito um bandido que finalmente conseguia saquear uma relíquia de um museu.

Logo de início, Demitre notou que aquilo seria mais do que diversão, seria competição injusta. Não era o tipo que esperava tomarem a iniciativa por ele, muito menos aquele que apertava mais fraco; o homem, no entanto, era muito mais forte que ele e tampouco estava para brincadeira.

Seu beijo tinha gosto de álcool; era intenso, rápido. Um movimento logo substituía o outro. Quebraram o contato do rosto apenas o suficiente para que se entreolhassem. Logo o homem beijava seu pescoço, começando no limiar da mandíbula e descendo lentamente.

Não conseguiu manter os olhos abertos por um segundo mais; sorriu de maneira quase involuntária, internamente agradecendo ao ambiente do clube, e se concentrando o máximo que podia nos lábios úmidos em sua pele. Aproveitou que o homem estava ocupado e tocou toda a extensão de seu braço. Sem se dar por satisfeito, imitou o gestou dele e dirigiu a mão ao traseiro. O aperto do homem se intensificou quase ao ponto de Demitre sentir dor.

Segurando o queixo dele, Demitre o obrigou a retornar a boca até a dele, e isso o fez perceber o quanto sentira falta do rosto barbeado colado no seu, mesmo que apenas por alguns segundos.

A mão de antes se dirigiu para a frente da calça do homem, e Demitre percebeu que ele também estava pronto para a próxima fase. Sua palma se fartou de um volume respeitável através do tecido fino.

O homem aproximou a boca ao seu ouvido e soprou palavras indecorosas, junto com uma sugestão que, em qualquer outra noite, faria com que ele descesse os cinquenta andares e o empurrasse para dentro do primeiro quarto de motel que encontrasse. Mas Demitre pensou duas vezes.

Encarou os olhos claros, ansiando por mais um beijo, e imaginou o que viria depois. Depois da cama, da volúpia, do gosto ainda mais acentuado…

Por mais que soubesse que Lexia não se importaria com o que quer que ele pudesse fazer com aquele homem, ela acabava sendo uma barreira para Demitre. Apenas mais uma, pensou consigo mesmo, uma barreira atrás de tantas outras.

Assim, também se aproximou do ouvido do homem:

— Hoje, isso é tudo o que você vai conseguir de mim, camarada.

Ainda pôde ver a expressão atordoada dele quando se soltou e começou a se afastar, andando na direção do bar.

Pegou uma bebida de um cor-de-rosa radioativo, virou-a em poucos goles e abandonou o copo vazio no bar, antes de entrar no elevador. Desceu três andares, para a área de fumantes — que não estava muito cheia —, e se encostou no parapeito da sacada. Ali estava bem mais frio do que no andar de cima, e ele desejou ter trazido casaco. Tirou um único cigarro do bolso, pediu fogo para uma jovem sentada num dos bancos e começou a fumar, jogando fumaça ao vento e admirando os faróis de carro lá embaixo.

Talvez a culpa fosse da OneBionics. Sexo sem compromisso nunca era realmente sem compromisso quando se tratava de pessoas. Depois que tudo estava acabado, ainda haveria alguém para quem olhar outra vez, dizer adeus e esperar nunca encontrar de novo, mesmo que por alguns poucos minutos. Ainda teria havido uma história — uma história de verdade — que não poderia ser resetada.

Estaria Demitre ficando mal-acostumado? Usava o OneConnect há apenas seis meses, desde que recebera por telefonema a oferta para se tornar usuário beta. Por que, dentre todas as pessoas naquela cidade, ele havia sido um escolhido? Talvez nunca fosse descobrir, mas provavelmente era o frequentador mais assíduo do complexo gigantesco da OneBionics, portanto havia sido uma escolha certeira. Acertara bem até demais, concedendo acesso justamente àquele que não conseguia compreender nada sobre o que sentia exceto em apenas duas únicas situações muito específicas: quando estava chapado ou em cima de um cara.

Não. A culpa não era do serviço. O OneConnect apenas o ajudara a ver com mais clareza algo que permanecera indistinto quase sua vida inteira. Fazia anos que Demitre convivia com aquela pergunta: e depois?

Pensando bem, não havia motivo por que estar naquela festa, afinal.

Terminou seu cigarro e sacou sua objetiva brevemente do bolso, apenas para ver as horas na tela. Não eram três da manhã ainda, mas para ele a festa já havia se encerrado. Apagou a ponta do cigarro no parapeito e o jogou na lixeira.

Quando entrou outra vez no elevador, pensou em sair dele imediatamente: o homem de pele bronzeada e olhos claros estava lá, também descia. Que falta de sorte!

O sujeito percebeu o constrangimento e disfarçou uma risada quando as portas se fecharam.

— Se aquilo era tudo o que eu conseguiria de você hoje — sublinhou ele —, por que não me passa seu contato? Estou curioso para descobrir o que posso conseguir amanhã, quem sabe.

Demitre sorriu. Era uma boa resposta, ele tinha que admitir. Ainda assim, preferiu ser sincero.

— Se eu lhe der meu contato, já posso adiantar o que acontecerá amanhã. Alternativa número um: você vai virar o cara que me fará trocar de calçada na rua caso eu o veja outra vez. Alternativa número dois: vamos concordar em nos tornarmos amigos; acabaremos repetindo a dose; quando menos esperarmos, estaremos discutindo se talvez não devíamos assinar contrato de exclusividade; aí, teremos uma história linda por algum tempo, até eu trair você com alguém muito menos atraente e descobrir que, na verdade, nunca tinha sequer gostado de você.

O homem deu de ombros e permaneceu calado. Demitre abraçou o silêncio. E, assim, desceram os demais longos e mortificantes quarenta andares.

*****

Subiu as escadas do apartamento para o segundo andar. Não era exatamente um prédio de apartamentos, estava mais para uma casa grande que fora dividida em quitinetes cheias de cômodos minúsculos. Havia apenas mais um pedaço de imóvel do outro lado do corredor. Demitre girou a chave na porta, mas, ao empurrá-la, notou que havia emperrado de novo.

Mas que droga!

A essa altura, ele e Jota-jota já haviam juntado dinheiro suficiente para trocar aquela porta — de preferência por uma mais moderna, que funcionasse a escaneamento de retina —, mas vinham guardando cada centavo para comprar uma casa que fosse só deles. Moradia não era barata em Porto Áureo, portanto seria uma grande conquista se conseguissem se livrar do aluguel antes dos trinta anos.

Socou a porta, mas ela não cedeu. Teve que lhe dar um chute.

Lar, doce lar.

Os únicos móveis na sala eram um sofá e uma mesinha de canto. Não costumavam receber visitas, de todo modo. O verde-hospital descascava das paredes pontilhadas — nódoas resultantes de tudo o que um dia eles sem querer haviam deixado respingar: café, sopa, maquiagem e até água.

Usou o banheiro e lavou as mãos. Viu que o lápis de olho estava borrado. Há quanto tempo?

Foi aí que ouviu as vozes.

Tomar banho, secar-se, deitar-se e dormir…

Franziu o cenho.

Tomar banho, secar-se, abrir a geladeira, comer alguma coisa…

— Cacete… — murmurou. Fazia algum tempo que isso não acontecia. Sabia por que agora: o homem no elevador, as coisas que Demitre tivera que dizer para ele. Haviam sido gatilho.

Tomar banho, secar-se, sentar-se no sofá, acessar redes sociais, esperar Jota-jota chegar…

Bateu na própria testa. Não eram exatamente vozes. “Vozes” era como ele chamava aqueles pensamentos, apenas porque soava legal nos filmes. Não era legal na vida real. Após situações de estresse, Demitre às vezes experimentava aquilo. Começava a reparar em tudo ao seu redor, mais do que deveria. Cada detalhe, cada elemento… a pia simples de porcelana, os pingos da torneira; os azulejos quadriculados que um dia foram brancos, e que hoje eram amarelos; a cortina lilás do chuveiro; o próprio chuveiro; o basculante; a sujeira que se acumulava por entre cada greta. Analisando… Lembrando-se… Checando… Planejando…

Também ponderava sobre o que faria em seguida. Cada possibilidade, cada movimento.

Tomar banho, secar-se, sair de casa…

Mais um pingo na pia. Soava alto.

— Não, não vou tomar banho! — rugiu para si mesmo.

Cada detalhe. Espelho. Olhos cor de fuligem; cabelos longos.

Sair do banheiro, sentar-se, esperar Jota-jota…

— Não vou me sentar!

Cor de fuligem; fios dourados; maquiagem borrada; barba por fazer.

Sair do banheiro, deitar-se, dormir… sonhar?

Não, não dormiria.

Por que diabos tinha beijado aquele homem? Por que o beijara, se sabia que questionaria o depois?

Depois, como um dia existira. Amara uma vez — ou, ao menos, acreditara amar. Tivera um relacionamento relativamente longo, de um ano e meio, e nunca suspeitara que não conseguia retribuir o sentimento que recebia. Seu afeto era libido, nada mais. Magoara a pessoa que mais lhe dera aquilo do que havia sido carente a vida toda, e nem ao menos sentira culpa por isso. Não sentia culpa agora. Nunca sentia culpa, por nada. Mas deveria sentir; ao menos, parecia dever sentir.

Um pingo.

Sair do banheiro, abrir a geladeira, comer alguma coisa…

Saiu do banheiro, mas não foi à cozinha. Em vez disso, partiu para o quarto. Sua cama era, na verdade, dois colchões empilhados, sem lençol e cheios de buracos. Sua janela era tapada com papelão. Dirigiu-se até o criado-mudo, tirou de dentro da primeira gaveta um frasco escuro e o virou de ponta-cabeça. Sentiu três gotas tocarem sua língua; contou-as — afinal, mais do que isso poderia lhe provocar uma overdose.

Deitar-se, esperar…

Deitou-se e esperou. Olhou para si mesmo no espelho do teto; um dia o colocara lá com o intuito de que apimentasse as noites de sexo; nunca servira para esse propósito, uma vez que Demitre jamais tivera coragem de levar ninguém àquele muquifo.

Sexo, um dos poucos artifícios que calavam a pergunta “e depois?”. Do outro artifício, fazia uso naquele momento — aquele psicotrópico de vários nomes, proibido, ilegal, perigoso. Para isso o espelho lhe servia, para que ele assistisse enquanto sua figura se transformava diante de si. No momento, via a blusa preta, o jeans surrado, as mitenes de couro artificial e os coturnos militares. Em alguns minutos, veria qualquer outra coisa. Outra pessoa, talvez; um animal; um objeto.

Mais importante: não se perguntava mais sobre nada. Não se sentiria mal por não sentir culpa. Não seria assombrado pelos pensamentos que chamava quase carinhosamente de “vozes”.

Apenas um último detalhe se demorou em sua mente antes de desaparecer por completo. Uma última minúcia antes que nenhuma outra lhe captasse a atenção: havia esquecido a porta destrancada de novo, tal como Jota-jota detestava que fizesse.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo