A floresta parecia respirar ao redor deles, viva com sons sutis que apenas os lobos podiam captar. Galhos se curvavam com o peso do vento, folhas dançavam no ar, e, ao longe, o uivo de uma coruja cortava o silêncio. Kael mantinha a postura rígida enquanto Lírica se apoiava em seu braço, os passos dela hesitantes, mas teimosos.
O cheiro de sangue ainda pairava no ar, um lembrete de que a batalha havia sido vencida, mas não a guerra.
— Você está desacelerando — Kael comentou, sem olhar para ela.
Lírica soltou um suspiro exasperado, erguendo o queixo.
— Eu estou ferida, não morta.
Ele lançou um olhar de canto de olho, o brilho dourado de seus olhos visível mesmo sob as sombras.
— Por enquanto.
Ela ignorou o comentário. Lírica não era do tipo que demonstrava fraqueza, mesmo quando cada passo fazia sua visão escurecer por um instante.
— Quanto tempo até chegarmos ao vale? — perguntou ela, tentando soar firme.
Kael não respondeu imediatamente. Ele conhecia bem a floresta e sabia que o caminho até o abrigo era traiçoeiro, ainda mais à noite.
— Algumas horas, se conseguirmos evitar os caçadores.
— E se não conseguirmos?
Ele finalmente parou, virando-se para encará-la.
— Então morremos.
Lírica arqueou uma sobrancelha.
— Sempre tão otimista.
Kael apenas deu de ombros, voltando a caminhar.
A Floresta e o Passado
O silêncio entre eles tornou-se quase confortável, até que Lírica falou novamente:
— Você nunca respondeu à minha pergunta.
— Que pergunta?
— Por que está aqui, sozinho?
Kael parou por um instante, os ombros tensos. Ele não gostava de falar sobre o passado, mas algo nos olhos dela, na força que ela exalava mesmo enquanto estava ferida, fez com que ele reconsiderasse.
— Porque não tenho mais um bando.
Lírica observou-o cuidadosamente.
— Perdeu ou foi banido?
A pergunta pairou no ar como uma faca. Kael virou-se para ela, seus olhos dourados brilhando com algo entre raiva e dor.
— Isso importa?
— Importa. — A voz dela era firme, mas não agressiva. — Porque se vamos trabalhar juntos, eu preciso saber quem você é.
Ele riu, mas o som era vazio.
— Quem eu sou? Eu sou ninguém. Apenas um lobo que aprendeu que confiar em outros é o mesmo que cavar a própria cova.
Lírica não respondeu de imediato, mas o silêncio dela não era de concordância. Era de cálculo.
— Talvez você tenha razão, Kael. Mas desconfiança não vai nos manter vivos.
A Chegada ao Vale
Quando finalmente chegaram ao vale, a lua já havia cedido espaço para o primeiro brilho do amanhecer. O lugar era como um santuário esquecido: cercado por colinas cobertas de árvores e com uma pequena clareira no centro, onde uma cabana de pedra emergia como um fantasma do passado.
Kael farejou o ar, os sentidos em alerta.
— Nada. — Sua voz era baixa, mas cheia de suspeita. — Não há ninguém aqui.
— Ainda não. — Lírica passou por ele, os passos cuidadosos, mas determinados.
A cabana estava em melhor estado do que Kael esperava. As paredes de pedra, cobertas de musgo, tinham marcas antigas: runas esculpidas que pareciam pulsar com uma energia sutil. Lírica parou diante da lareira no centro, correndo os dedos pelas marcas.
— Eu conheço essas runas — disse ela, quase para si mesma.
Kael cruzou os braços, encostando-se à entrada.
— São apenas rabiscos.
Ela o ignorou, os olhos fixos nas inscrições.
— Não são rabiscos. Isso é magia ancestral. Algo que pode nos ajudar contra Darius.
Kael revirou os olhos.
— Ótimo. Mais magia. Porque isso já está indo tão bem para você.
Lírica lançou-lhe um olhar afiado, mas não respondeu. Em vez disso, começou a traçar os símbolos com os dedos, murmurando algo que Kael não conseguiu entender.
Antes que ela pudesse continuar, um som veio de fora. Um uivo.
Kael imediatamente ficou em alerta, a mão indo para a adaga em sua cintura.
— Ficou esperando lealdade, e agora nos encontraram.
— Não são eles. — Lírica avançou até a porta, os olhos brilhando com esperança.
Três lobos emergiram das árvores, transformando-se em formas humanas ao se aproximarem. Eles eram jovens, mas carregavam cicatrizes que contavam histórias de batalhas.
O primeiro ajoelhou-se diante de Lírica, a cabeça baixa em respeito.
— Alfa. — Sua voz era firme, mas carregada de emoção.
Kael observou a cena, desconfiado.
— Ótimo. Mais bocas para alimentar.
Lírica ignorou o comentário, colocando uma mão sobre o ombro do lobo ajoelhado.
— Quantos mais?
— Só nós três conseguimos fugir. Os outros... — Ele hesitou, engolindo em seco. — Não sobreviveram.
Ela fechou os olhos por um momento, respirando fundo. Quando os abriu novamente, sua determinação estava ainda mais evidente.
— Então começamos com o que temos.
Kael bufou, afastando-se para a entrada da cabana.
— Espero que vocês saibam lutar. Porque se aqueles caçadores vierem, vai ser um massacre.
O jovem lobo ergueu o olhar, seus olhos brilhando com uma mistura de medo e raiva.
— Lutaremos até o fim.
Kael sorriu, mas não era um sorriso caloroso.
— É isso que eu temo.
Transição para o Próximo Conflito
Enquanto o grupo descansava, Lírica finalmente explicou a Kael o significado das runas na cabana.
— Essas marcas fazem parte de um ritual que pode nos proteger da magia usada por Darius.
Kael arqueou uma sobrancelha.
— Proteger? Ou colocar um alvo ainda maior nas nossas costas?
— É um risco. Mas é nossa melhor chance.
Ela apontou para um símbolo específico, mais profundo e complexo do que os outros.
— Para ativá-lo, precisamos de algo que está escondido nas profundezas da floresta. Algo que pertenceu aos nossos ancestrais.
Kael a encarou, o cansaço evidente em seus olhos.
— Deixe-me adivinhar: isso envolve mais lutas, mais inimigos e, possivelmente, nossa morte.
— Exato. — Lírica sorriu pela primeira vez, um sorriso que parecia desafiá-lo.
Kael balançou a cabeça, rindo baixinho.
— Estou começando a achar que deveria ter deixado você sangrar até a morte naquela clareira.