Giulia
O trem sacudia sob mim enquanto eu encostava a testa na janela fria. Olhava para fora, mas não via nada além de um céu cinza e pesado, igual ao nó que apertava meu peito.
“Só mais um mês... mamãe aguenta mais um mês.” Era o que eu precisava acreditar, porque não tinha escolha.
Lembrei dela, tão frágil na cama, a pele pálida e o peito subindo e descendo devagar demais, como se cada respiração fosse uma luta. Os ataques de falta de ar estavam ficando mais frequentes. O médico disse que a cirurgia podia esperar, mas não por muito tempo. Eu tinha que arrumar o dinheiro antes que fosse tarde demais.
Tentei de tudo: empréstimos, ajuda dos parentes, até chorar no telefone para alguns amigos. Nada funcionou. Só restava isso — o clube secreto, o leilão. Me vender para salvar a mulher que me deu a vida.
O trem manteve seu ritmo constante enquanto meu coração parecia querer acelerar. Fechei os olhos por um instante e voltei a ela — minha mãe, Marta. Ainda consigo vê-la sentada à beira da cama, segurando o ar como se fosse a última gota de esperança que lhe restasse. Quando a doença se manifestou, tudo desmoronou. Descobrimos um tumor no pulmão, agressivo, avançado. O médico disse que a cirurgia era urgente, mas, com o seguro negando cobertura, o valor do procedimento era impossível de alcançar de outra forma.
Lembro das noites em que ela acordava sufocada, tentando chamar meu nome, e eu corria para aliviar seu desconforto, sentando ao lado da cama, acariciando sua mão fina e fria. Ela tentou me tranquilizar: “Minha filha, não seja tola. Ainda posso esperar mais algumas semanas.” Mas eu via o medo nos olhos dela, o medo de não acordar mais um dia. Quantas vezes ela franziu o cenho, piscando, tentando disfarçar a dor? Quando ela tentava respirar fundo, eu sentia meu peito apertar. Quem me dera poder respirar por nós duas.
As contas médicas se empilhavam na mesa da cozinha. Cada aviso de cobrança parecia um punhal no peito. A cada ligação de bancos e credores, meu estômago se retorcia. Eu me vi obrigada a procurar ajuda em lugares que nem imaginava existir.
Os olhos voltaram para a paisagem cinzenta passando pela janela: planícies secas, oliveiras retorcidas, e o mar se insinuando ao longe, quase invisível por entre a névoa. Cada quilômetro que me separava de Palermo era um passo para sacrificar meu próprio corpo em troca de esperança. As lembranças vinham em ondas: a voz fraca de minha mãe, “Filha, faça o que achar melhor, mas viva depois de mim” — como se soubesse que a própria vontade de viver se diluía a cada dia.
Pensava em Serena, minha melhor amiga.Marco, meu pobre irmão, sem ciência de nada disso.
Engoli em seco quando o trem freou ao entrar na estação de Palermo. O som metálico ecoou dentro de mim e, por um instante, pensei na vida que eu poderia ter se não fosse aquela decisão. Apertei a alça da mochila, vesti a coragem que restava e desci. Cada passo era pesado, mas eu não podia parar. Ainda havia um mês para provar que o amor pela minha mãe valia qualquer preço, mesmo que esse preço fosse meu próprio coração.
Foi só no final de semana passado que tudo começou a tomar forma. Eu mal podia acreditar, mas foi uma stripper do clube — uma mulher chamada Lara — quem me falou sobre o leilão secreto para ricos. Eu a conheci por acaso, quando fui ao clube procurando respostas, e ela foi a única que se dispôs a conversar comigo. Lara não era só uma artista; ela conhecia as regras daquele submundo melhor do que ninguém.
Ela me contou sobre os leilões, como tudo funcionava por trás das cortinas, e me avisou dos perigos. “Se decidir entrar, não pode hesitar. Eles sentem medo, e o medo é um convite para serem cruéis.” Aquela conversa me gelou, mas também me deu um fio de esperança.
No sábado passado, cheguei a Palermo disfarçada, tentando parecer segura, mas meu coração estava em turbilhão. Fui até a Madame, uma mulher imponente, que controlava tudo ali com mãos de ferro e olhos de águia. Conversei com ela, expliquei minha situação, e senti a desconfiança em cada palavra dela.
Não foi fácil — tive que provar que estava disposta a tudo, que não recuaria. Mostrei que meu desespero era real, e que eu não tinha outra escolha. Depois de horas de tensão, Madame finalmente concordou em me aceitar.
Assinar aquele contrato foi como amarrar um nó no meu destino, mas também era a única chance que eu tinha de manter a esperança viva. Agora, enquanto o leilão começava a se desenrolar diante dos meus olhos, eu sabia que estava a um passo de tudo mudar — para o melhor ou para o pior.
Cheguei à porta do clube secreto com o peito apertado. Não havia volta agora. Pensei na resistência dela, em como segurou a minha mão quando chorei pela primeira vez, dizendo que eu não devia desistir. Suspirei fundo, ajeitei a gola da jaqueta e empurrei a porta que me levaria ao leilão. Dentro, as luzes se acenderam em um flerte de penumbra e luxo. A Madame me esperava, imponente. Olhei para baixo, sentindo o peso do olhar crítico que me avaliava — mas a única coisa que importava era que, em algumas horas, eu teria os recursos para manter minha mãe viva por mais um dia, mais uma semana, mais um mês.
O cheiro de perfume barato misturado com suor e nervosismo pairava no ar. Algumas conversavam baixo, outras se maquiavam com mãos trêmulas.
Foi então que uma mulher entrou. Mais velha, com o batom borrado, mas ainda tentando manter uma pose de quem manda no pedaço. O vestido brilhava de forma exagerada, como se quisesse iluminar o quarto inteiro. Ela se aproximou de mim, com um sorriso meio cínico.
— Querida, venha cá — ela disse, puxando meu braço com firmeza. — Olha só onde você está se metendo. Não é lugar para meninas como você.
Olhei para ela, sem saber o que responder. Ela continuou, com uma voz baixa e firme, como se quisesse me convencer, mas também me intimidar:
— Essas aqui — disse, apontando para as outras — são só prostitutas comuns. Mas você, minha flor da noite, é diferente. Você é a virgem.
Ela me fitou com um olhar intenso, quase paternal, enquanto falava:
— Vai ser arrumada como uma rainha. Nada de se misturar com essas meninas. Você vai entrar no leilão sendo uma princesa, entendeu?
Fiquei parada, imóvel, enquanto a mulher saía como uma atriz que tinha feito sua cena e deixava o palco. As outras meninas sequer olharam para mim — estavam ocupadas demais tentando parecer desejáveis, embora seus olhos dissessem o contrário.
Eu não disse nada. Engoli a náusea que subia pela garganta. Era isso. Eu não era mais gente. Só um pedaço de carne.
Uma assistente surgiu logo depois, me chamando com um aceno seco. Segui pelos corredores estreitos até um outro camarim — esse mais limpo, mais silencioso, mais... luxuoso. Mas tudo ali me parecia errado, como um caixão coberto de ouro.
Não demorou muito até começarem o processo.
Tiraram minha roupa sem perguntar, como se eu fosse uma boneca. Fiquei ali, vulnerável, sentindo mãos frias me tocarem sem qualquer delicadeza. Me lavaram como se quisessem apagar qualquer traço de humanidade. A água quente queimava, e mesmo assim eu tremia.
Depois veio a depilação. Cada puxada era uma lembrança de onde eu estava. Cada centímetro de pele exposta parecia gritar.
Passaram óleos e cremes no meu corpo como se estivessem preparando um banquete. Me perfumaram com algo doce demais, enjoativo, que grudava na pele feito pecado.
Quando me vestiram, o vestido parecia feito para outra mulher. Era vermelho escuro, de cetim, moldava cada curva e deixava pouco para a imaginação. As alças finas, o decote profundo, a fenda que subia até a coxa. Não era roupa — era armadura para o desejo alheio.
Colocaram joias pesadas no meu pescoço, brincos que quase tocavam meus ombros. Um anel que parecia pesar mais que minha alma. Por fim, os saltos — finos, altíssimos, impraticáveis. Um tipo de prisão elegante.
Olhei para o espelho, tentando reconhecer aquela imagem. A garota que me olhava de volta não era eu. Era uma versão silenciosa, ensaiada, vendida.
Respirei fundo. Só um mês. Só um mês.
Uma batida na porta. O leilão ia começar.
O som da música suave e das vozes masculinas sussurradas preenchia o ar do outro lado da cortina pesada. As luzes do palco vazavam pelas bordas, como um pôr do sol doentio prestes a me engolir.
Fui posicionada ao centro, no meio de uma fileira de garotas. Todas lindamente produzidas, com olhares vazios ou treinados. Algumas sorriam para o nada, outras olhavam para o chão. Eu fiquei reta, tentando manter as pernas firmes. Mas minha boca secava, e a ânsia subia pelo estômago.
O pano se abriu.
A luz forte me cegou por um segundo, e então o burburinho preencheu tudo — vozes, suspiros, sorrisos depravados. Homens de terno e olhar predador, sentados como em um teatro privado. Alguns seguravam taças, outros catálogos. E todos olhavam para nós como se fôssemos parte de um cardápio.
Uma a uma, as meninas foram chamadas. O leiloeiro, um homem de cabelo branco e sorriso escorregadio, anunciava suas “qualidades” como quem vendia vinho raro.
— Temos aqui a encantadora Sofia, de olhos esmeralda e boca de pecado... começamos com dez mil...
As cifras subiam, as meninas saíam, e o palco ia esvaziando.
Até que restou apenas eu.
Sozinha. No centro. As luzes me esquentavam a pele, mas por dentro eu estava fria. Meu coração era um tambor na garganta. As mãos tremiam ao longo do corpo. Quis correr, gritar. Mas fiquei.
O leiloeiro se aproximou do pedestal, ajeitou o microfone e sorriu para o público, como quem revela a sobremesa principal.
— Senhores... o momento mais aguardado da noite. Temos aqui um verdadeiro tesouro. Virgindade certificada, beleza inquestionável, e apenas dezoito anos. Uma flor não tocada pelo mundo. A partir de cinquenta mil euros.
Ele continuou — Senhores... agora temos um presente raro, quase lendário. — Ele fez uma pausa dramática, como se saboreasse cada palavra. — Uma flor ainda fechada. Inocente. Intocada.
Minha visão embaçou por um segundo. A bile subiu à boca. Respirei fundo, tentando não vomitar.
— Virgindade garantida por laudo médico. Jovem. Saudável. Discreta. Italiana. Uma experiência única... para o cavalheiro que oferecer o melhor preço.
A plateia murmurou em expectativa. Alguns homens sorriram, outros ergueram as sobrancelhas. A excitação no ar era podre, pegajosa, cruel.
Eu era um objeto. Um mito a ser violado. E todos ali estavam prontos para me possuir como se meu corpo fosse um troféu e minha dor, um detalhe irrelevante.
A ânsia voltou com força. Travei o maxilar. Se eu caísse, ninguém me levantaria.
Mas então... o silêncio se instalou.
E foi aí que ele entrou.