O sol já se erguia alto no céu quando decidi que não retornaria para casa. As palavras de Arpid ecoavam em minha mente: “Voltem amanhã, de qualquer maneira.” Hoje era esse amanhã. Meu pai, Altair, provavelmente já estaria lá, e eu não podia mais esperar. A inquietação que me consumia desde o dia anterior não me permitiria repouso até que obtivesse respostas. Despedindo-me de Esdras com um aceno, alcei voo em direção à torre dos magos. O vento cortava meu rosto, e as asas batiam com força, impulsionadas pela ansiedade que me dominava. A cidade abaixo parecia alheia à tempestade que se formava dentro de mim. As ruas movimentadas, os mercados cheios, tudo seguia seu curso normal, enquanto eu me dirigia ao epicentro de um mistério que poderia mudar tudo. A torre de Arpid surgiu no horizonte, imponente como sempre. Suas paredes de pedra branca reluziam sob o sol, e as janelas altas refletiam a luz como espelhos. Pousei suavemente na varanda principal e bati à porta com determinação.
Os dias passaram rapidamente. Minha rotina se dividia entre visitas à torre de Arpid, o retorno para casa e os treinos rigorosos que eu mantinha com disciplina. Era como se a repetição me ajudasse a manter o controle sobre a ansiedade, sobre as dúvidas que ainda pairavam no ar. O colar permanecia sob os cuidados de Arpid, e embora ele continuasse suas pesquisas, nenhuma nova revelação havia surgido. Os guerreiros harpias haviam reforçado a patrulha ao redor da floresta após os eventos recentes, mas nenhum deles relatara qualquer atividade incomum. Era como se o mundo tivesse mergulhado novamente em uma calma enganadora — uma pausa antes da próxima onda. Então o dia da viagem para Heits chegou. Bruce acordou cedo, agitado como se não houvesse dormido direito. Mas foi minha irmã quem realmente demonstrava a maior empolgação. Seus olhos brilhavam com uma curiosidade intensa, e ela falava sem parar, fazendo perguntas sobre o castelo, sobre o rei, sobre como seria atravessar os céus até
Depois de dois dias voando sem descanso, encontramos um local seguro para acampar: uma clareira escondida próxima a uma cachoeira. A queda d’água, com seu som constante e revigorante, era perfeita — refrescava o corpo cansado e nos oferecia água fresca para a jornada. Ali, a natureza parecia proteger seus visitantes. Eu me ofereci para assumir o primeiro turno de vigilância. Sentei-me numa pedra alta, com uma visão ampla do acampamento e da floresta densa ao redor. Meu pai, Altair, estava visivelmente exausto. Os traços tensos em seu rosto, o olhar pesado… Havia algo nele que me preocupava profundamente. Não era apenas o cansaço físico; era como se ele carregasse um fardo oculto. Desde nossa partida, ele mal falara comigo, e eu ainda não tivera coragem de confrontá-lo sobre suas ausências anteriores. Talvez o medo de saber a resposta me impedisse. O fato de ter sido praticamente órfã em outra vida tornara-me ferozmente protetora nesta. Era instintivo. Enquanto vigiava, deixei meus
Finalmente, após uma jornada que parecia interminável, chegamos à cidade de Heits. Os portões imponentes se erguiam diante de nós, altos e majestosos, guardados por sentinelas vestidos com armaduras de prata polida que refletiam a luz do sol matinal como espelhos. Um frio percorreu minha espinha ao ver o tamanho da cidade, tão diferente das vilas pequenas pelas quais havíamos passado nos últimos meses. Tínhamos algum tempo livre antes de nos apresentarmos oficialmente às autoridades locais. Enquanto os demais do grupo cuidavam das formalidades para garantir nossa entrada segura no reino, aproveitei aquelas preciosas horas para me afastar discretamente. Minhas asas ainda estavam cansadas do voo constante, mas a curiosidade dançava incessante em minha mente, empurrando-me adiante. Eu precisava encontrar Rynriel. Algo nele me intrigava de uma maneira que eu não conseguia compreender por completo. — Rynriel?! — chamei, minha voz ecoando levemente entre as pedras ao pé de um pequeno mont
Acordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal.As gotas batiam no rosto como pequenos tapas. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos
A escuridão foi se afastando aos poucos, dissolvendo-se em ondas suaves de calor e luz tênue. Marina sentiu-se flutuar num espaço sem forma, como se estivesse sendo embalada por braços invisíveis. Não havia dor. Nem memória. Apenas um estranho vazio sendo preenchido por sensações novas: o toque de algo macio, um som agudo como o assobio do vento… e depois, o som mais intenso que já ouvira: o próprio choro. Era o seu primeiro respiro. Era o início. O mundo explodiu ao seu redor em cores suaves e sons abafados. As pálpebras minúsculas se abriram com esforço, revelando olhos ainda úmidos, perdidos em um brilho difuso. Tudo parecia tremular, como se o mundo estivesse sendo visto através de uma fina camada d’água. A claridade machucava, mas logo se tornava familiar. Sentia o corpo pequeno, frágil e molhado, os pulmões lutando por ar, as mãos se movendo involuntariamente. Foi quando sentiu algo a envolvendo com firmeza, mas também com carinho. Um par de mãos fortes, porém delicadas, a
Três anos haviam se passado desde o dia em que abri os olhos neste novo mundo — um mundo de céu aberto, ventos cantantes e criaturas magníficas de asas resplandecentes. Já não era uma recém-nascida confusa envolta em mantos e cantos estranhos. Agora, com três anos, eu havia me adaptado à vida entre as harpias. Aprender a falar a língua delas foi um desafio no começo. Suas palavras tinham sons sibilantes, agudos e notas guturais que pareciam imitar o próprio vento. Mas, como tudo que uma criança determinada deseja entender, aos poucos, cada som se tornava familiar, cada sílaba era domada com o tempo e a repetição. Muitas noites, eu adormecia com a boca ensaiando palavras novas, e nas manhãs seguintes, corria para testá-las com minha mãe. O nome dela era Jenevive Norton. Só de ouvi-lo, meu peito se aquecia. Jenevive era tudo o que eu admirava: forte como as raízes que sustentavam as plataformas da nossa cidade, e doce como o néctar das flores que pendiam dos galhos mais altos. Ela me
A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente. Mas eu me lembrava. Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma. Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra q