Marina sempre viveu com o peso das responsabilidades, as pressões constantes e o desgaste de uma vida que parecia não ter fim. Exausta, ignorada e subestimada, ela acaba se perdendo em um mundo onde as expectativas dos outros a sufocam, até o momento em que uma crise física a leva a uma transição inesperada. Quando seu corpo cede ao limite, ela se vê em um lugar completamente diferente: uma paisagem serena e deslumbrante, onde encontra figuras misteriosas que, com paciência e acolhimento, a ajudam a compreender que sua jornada não terminou. Com o nascimento de Kaelara, uma nova vida repleta de promessas de liberdade, a pequena é envolta por seres alados e um destino incerto, mas cheio de possibilidades. Em um vilarejo suspenso entre penhascos, Kaelara aprende que seu renascimento não é apenas físico, mas uma chance de se libertar das amarras de um mundo que a consumia. Agora, ela deve escolher entre seguir seu próprio caminho ou recomeçar tudo de novo, com uma nova alma e um novo nome: Kaelara, a que renasce do silêncio.
Leer másAcordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.
Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal. As gotas batiam no rosto como pequenos t***s. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos debochados. — Que espetáculo — murmurou para si mesma, passando direto pela recepção, ignorando o espelho no hall de entrada. Na sua mesa, tentou respirar fundo e encontrar um momento de lucidez. Antes que pudesse sequer ligar o computador, ouviu a voz familiar — e nada amigável — do chefe ecoar pelo corredor. — Marina! Na minha sala. Agora! A voz de Augusto tinha o tom ríspido de quem se orgulhava da própria autoridade. Era o tipo de homem que se alimentava do controle, e fazia questão de lembrar a todos, todos os dias, quem mandava ali. Marina fechou os olhos por um segundo, como se pudesse invocar um campo de força invisível. Levantou-se e caminhou até a sala dele. — Bom dia, senhor Augusto — disse, com um sorriso tenso no rosto. Ele nem respondeu o cumprimento. Já estava de pé, com uma pasta na mão e o cenho franzido. — Você pode me explicar por que a nova escala de funcionários ainda não foi distribuída? — Escala? — Ela piscou, confusa. — Com todo respeito, senhor, essa tarefa geralmente é feita pela supervisão de RH. Eu sou secretária. A senhora Cláudia é que sempre lidou com… — Cláudia pediu afastamento esta semana. E eu achei que você tivesse capacidade de assumir responsabilidades maiores. Me enganei? Marina sentiu o estômago revirar. Não era a primeira vez que ele delegava tarefas além de suas funções formais, e não seria a última. Mas naquele dia, cansada, faminta e ainda molhada, sentiu que algo dentro dela estava prestes a se romper. — Não, senhor, você não se enganou. Mas eu não fui informada de que teria que assumir funções do RH, tampouco recebi instruções. Tenho tentado manter tudo em ordem, mas… — Mas? — ele a interrompeu, avançando um passo. — Está me dizendo que não consegue dar conta? Que se limita a bater ponto e passar café? Ela sentiu o sangue subir ao rosto. Não era só cansaço. Era humilhação. Era a pressão acumulada de meses de tarefas extras, plantões não pagos, reuniões que invadiam suas noites e fins de semana. Era a ausência de reconhecimento, o esforço invisível, o silêncio diante das agressões sutis. — O que estou tentando dizer, senhor Augusto — respondeu com a voz embargada —, é que estou sobrecarregada. E que não é razoável esperar que eu absorva o trabalho de outros setores sem suporte. Ele bufou, caminhando até a mesa e batendo com a palma aberta sobre ela. — Sabe o que eu vejo? Uma funcionária que se recusa a crescer, que se esconde atrás do crachá de “secretária” como se fosse uma proteção contra qualquer desafio. Se não está satisfeita, a porta é logo ali. O silêncio que se seguiu parecia ter peso físico. Marina sentiu como se não houvesse ar suficiente na sala. Suas mãos tremiam. — Estou cansada, senhor. Apenas cansada — disse por fim, antes de sair. Voltou para a própria mesa como uma sombra de si mesma. Os olhos dos colegas a seguiram em silêncio, mas ninguém ousou dizer nada. Não havia espaço para empatia naquele ambiente. Sentou-se. Olhou para a tela preta do computador. Os dedos pairaram sobre o teclado, sem tocá-lo. Foi então que veio a dor. Uma fisgada no peito. Súbita. A respiração encurtou, o mundo pareceu girar, mas sem pressa — como se tudo estivesse desacelerando. O som dos colegas se dissolvia. As luzes da sala perdiam nitidez. Era como se o tempo estivesse derretendo. Ela fechou os olhos, e quando os abriu de novo… não estava mais ali. ⸻ A luz era diferente. Era clara, mas não feria os olhos. Suave, cálida, como se viesse de dentro das coisas, e não do céu. Marina flutuava. Ou talvez estivesse apenas leve demais para sentir o chão sob os pés. Não havia mais chuva. Nem frio. Nem Augusto. O ar tinha cheiro de lavanda e terra molhada. Em sua frente, uma colina verde se estendia até o horizonte. E, acima, um céu dourado, como se o sol estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo. Ela respirou fundo, pela primeira vez em muito tempo sem pressa, sem dor, sem urgência. — Onde estou? — perguntou em voz baixa. Uma mulher apareceu à sua frente, como surgida do próprio vento. Tinha olhos serenos e um sorriso acolhedor. Não parecia surpresa com a presença de Marina. — Você está em transição — disse. — Às vezes, o corpo cansa antes da alma. Às vezes, é preciso parar para entender o que realmente importa. Marina sentiu lágrimas escorrerem sem esforço. — Eu estava… exausta. Perdida. Sozinha. — Nós sabemos. E você não precisa mais carregar tudo sozinha. Aquela frase, tão simples, pareceu dissolver as últimas barreiras que ela mantinha dentro de si. Marina caiu de joelhos. Não de fraqueza, mas de alívio. — O que acontece agora? — Agora, você descansa. E depois escolhe. Você pode voltar, se quiser. Ou seguir. Mas o que quer que escolha, que seja por você. Ela fechou os olhos novamente. — Eu escolho seguir…O estrondo rasgou o ar como um trovão seco, fazendo o templo inteiro estremecer até os alicerces. As colunas partidas vibraram sob a força invisível, soltando pequenas pedras que rolaram pelo chão áspero, enquanto o eco do impacto desaparecia no horizonte encoberto pelo eclipse iminente.Das sombras densas entre os pilares quebrados, surgiram as figuras que há tanto tempo temíamos: envoltas em mantos escuros, seus corpos ocultos por tecidos pesados, os rostos escondidos atrás de máscaras de osso pálidas e inexpressivas. As máscaras brilhavam à fraca luz do ritual, como caveiras translúcidas, frias e silenciosas.Contei, com o coração acelerado: seis… não, sete.O mesmo culto que nos caçava desde o início, obstinados, famintos por destruir tudo o que tentávamos proteger.Antes mesmo que pudesse gritar ou reagir, Altharis se adiantou, puxando a espada num único movimento fluido e letal. Num piscar de olhos, avançou contra eles com a feroci
Leriam ergueu a voz primeiro, entoando os cânticos antigos que há séculos repousavam silenciados nas pedras frias do templo. As palavras — ásperas, profundas, reverberantes — ressoaram entre as colunas quebradas e os arcos tombados, impregnando o ar com uma solenidade ancestral. Até o vento pareceu ceder àquela invocação, silenciando-se, como se temesse profanar o que se iniciava.Diante de mim, a esfera começou a emitir um brilho tênue, dourado, que se espalhava suavemente pelas inscrições em sua superfície. Cada símbolo refletia, como num espelho esculpido pelo tempo, as marcas gravadas no colar junto ao meu peito, que agora ardia, vibrando com uma intensidade quase viva.Fechei os olhos por um instante, inspirando profundamente, sentindo aquela energia invisível e pulsante subir pelo chão, espalhar-se pelas paredes, envolver a todos nós. Meus dedos, obedecendo a um impulso mais antigo do que minha própria compreensão, repousaram com firmeza sobre a sup
O amanhecer do último dia rompeu-se com uma quietude densa, fria, como um véu espesso que cobria o mundo. O céu, fechado por camadas de nuvens pesadas e imóveis, tingia a paisagem com tons de chumbo, sufocando qualquer esperança de luz. No coração do templo, as pedras antigas vibravam sob nossos pés, como se, há milênios, esperassem por esse momento, por esse desfecho. Meus passos ecoaram suaves ao me aproximar do altar, onde a esfera metálica repousava, imóvel e silenciosa. Passei a palma da mão sobre as inscrições ancestrais gravadas em sua superfície, sentindo sob a pele a memória de gerações que haviam tentado — e falhado — em deter o que agora cabia a nós encerrar. O colar pendia contra meu peito, pulsando em um ritmo constante e crescente, irradiando calor que se espalhava pelo meu corpo como uma advertência, ou talvez, um chamado. Ao redor, cada um de nós ocupava o seu lugar. Leriam, ajoelhado, desenhava com precisão os
O crepúsculo tingia o céu de um laranja morno e profundo, espalhando seus últimos raios sobre as pedras negras do templo. Enquanto Leriam e Altharis se ocupavam nos últimos detalhes do ritual, eu me afastei silenciosamente do altar. O peso do que estava por vir parecia repousar como um manto sobre meus ombros, pressionando meu peito, apertando minha respiração. Ainda assim, a quietude da noite me chamava para algo diferente, algo que eu não podia ignorar: uma conversa sincera, um momento de verdade. Noctis surgiu ao meu lado sem alarde, como se tivesse sentido, no silêncio, que eu precisava de companhia. — Está muito pesada a atmosfera aqui, não? — disse ele, com a voz baixa, quase um sussurro. Assenti, fitando as sombras alongadas das montanhas que nos cercavam, suas formas escuras recortadas contra o céu que lentamente escurecia. — Não é só aqui… — comecei, minha voz trêmula, como
O penúltimo dia amanheceu envolto por uma névoa densa que serpenteava entre as colunas quebradas do templo como um presságio silencioso. O vento estava mais gélido, carregando consigo o aroma úmido da terra e o frio dos picos que cercavam o vale. Acordamos cedo, cada um movido não pela vontade, mas pela urgência silenciosa que nos rondava. Leriam já estava sobre o altar, reorganizando as anotações, ajustando instrumentos e verificando, uma vez mais, as marcas na esfera. — Há algo aqui… — murmurou, apontando para uma sequência de símbolos que eu não havia notado antes, meio ocultos sob uma camada de musgo ressecado e poeira. Aproximei-me, enquanto ele, com delicadeza, limpava a superfície. — O que é? — perguntei, com a respiração suspensa. Leriam arqueou as sobrancelhas, surpreso. — Não são apenas inscrições… são coordenadas.
Os dias passaram como folhas arrancadas de um livro antigo, cada uma levada pelo vento frio que soprava incessante através das ruínas do Templo de Velyr. No primeiro dia, mal conseguimos descansar. A noite fora tomada por sussurros e sombras, como se a própria estrutura milenar do templo se recusasse a adormecer com nossa presença. Leriam, incansável, passou horas inspecionando a esfera no altar, desenhando símbolos, alinhando cálculos, comparando-os com mapas celestes e registros esquecidos. Noctis e Altharis cuidaram de preparar o perímetro — reforçando os pontos frágeis, limpando passagens e abrindo vias de escape, caso precisássemos fugir. Eu, por minha vez, mantive-me próxima da esfera, ora temendo tocá-la, ora incapaz de me afastar dela por muito tempo. O colar continuava a pulsar — fraco, insistente — como uma lembrança constante de que o tempo, mesmo ainda distante em dias, caminhava em nossa direção com a precisão impl
Último capítulo