JÚLIA MONTENEGRO NARRANDO.
Eu saí do apartamento dele como se estivesse fugindo de um incêndio. As pernas trêmulas, o coração disparado, os olhos tão cheios de lágrimas que mal enxergavam o caminho. Tudo em mim gritava. Eu queria correr, gritar, desaparecer. Queria arrancar minha própria pele pra ver se a dor diminuía. O elevador parecia não chegar nunca. Apertei o botão com força, depois com desespero. Quando a porta finalmente se abriu, entrei tropeçando nos próprios pés. Sozinha, no cubículo metálico, o silêncio me esmagou. Desabei. A mão foi direto ao peito, como se eu tentasse segurar meu coração despedaçado. A respiração vinha aos soluços, e o choro era tão alto que ecoava nas paredes do elevador. — Como ele pôde fazer isso comigo? — eu repetia baixinho, como um mantra desesperado. — Como? Como? Como?” O elevador chegou no térreo. Saí quase correndo, mas não sem antes ouvir a voz do porteiro, simpático como sempre: — Boa noite, dona Júlia. Não respondi. Não consegui. Só balancei a cabeça e continuei andando, sentindo o nó na garganta crescer até doer. A chuva me acompanhou o caminho inteiro, como se o céu compartilhasse da minha dor. Eu andava sem rumo, com os pés afundando nas poças, as roupas coladas no corpo e a alma… a alma completamente encharcada de tristeza. Joguei a aliança no meio da rua como quem arranca uma parte do próprio coração. Vi ela bater no asfalto molhado, quicar uma, duas vezes… e desaparecer num ralo. E com ela foi tudo: o sonho, o amor, a promessa. Cheguei em casa como um trapo. Molhada, tremendo, soluçando como se meu peito tivesse se rompido por dentro. Entrei e tranquei a porta com pressa, como se o mundo lá fora pudesse me ferir ainda mais. Joguei a bolsa no chão, me encostei na parede da sala e desabei. O grito veio primeiro. Um grito de dor, raiva, incredulidade. — COMO VOCÊ PÔDE FAZER ISSO COMIGO? — gritei, mesmo sozinha. Gritei como se ele pudesse ouvir, como se ela pudesse sentir o que fizeram comigo. As lágrimas pareciam não ter fim. Caí de joelhos no chão frio e chorei. Chorei por tudo. Por cada beijo. Cada plano. Cada eu te amo que ele disse olhando nos meus olhos. Chorei pelas noites em que eu dormi abraçada nele achando que tinha encontrado o amor da minha vida. Fechei os olhos e os flashes vieram, como facadas: Fernando me pedindo em casamento em frente à vitrine da Tiffany’s, ajoelhado no chão com aquele sorriso torto que me fazia derreter. Fernando colocando a mão na minha barriga e dizendo um dia a gente vai ter um bebê com esse teu sorriso lindo. Fernando dançando comigo no meio da sala, de pijama, rindo da nossa própria falta de ritmo. Fernando me olhando com carinho quando eu chegava em casa exausta do trabalho e dizendo vem, eu fiz teu prato preferido. Tudo mentira. Tudo. Mentira. Passei a noite sem conseguir dormir. Deitada no sofá, encolhida, me abraçando como se eu pudesse me juntar de novo. A cada tentativa de fechar os olhos, a imagem deles dois nus naquela cama invadia minha mente. E o cheiro. O cheiro de vela aromática misturado com o som da música romântica no fundo… era insuportável. Quando o dia clareou, meu corpo doía como se eu tivesse apanhado. Estava exausta, com febre, a cabeça girando. Peguei o celular com a mão trêmula e disquei o número da loja. — Júlia? — Kristen atendeu quase de imediato, com aquele tom de sempre, controlado e exigente. — Oi… Kristen… eu… eu tô muito mal. Peguei chuva ontem… acho que tô com gripe, tô ardendo em febre — minha voz saiu fraca, embargada. Era difícil até mentir. Ela suspirou fundo do outro lado da linha, e eu quase podia imaginar ela já virando os olhos. — Júlia, eu entendo. Mas hoje é impossível. Tenho a entrega da coleção, a reunião com os investidores e a apresentação pro grupo japonês. Você sabe como ninguém organiza essa loja como você. Eu realmente preciso de você aqui. Fechei os olhos, respirei fundo. A verdade era que ela não queria saber da minha dor. Ninguém queria. — Tá… eu vou. Desliguei o telefone e fiquei ali sentada na cama por um tempo. O mundo parecia um borrão. Eu não queria levantar. Não queria encarar ninguém. Mas fui. Levantei devagar. Tomei um banho rápido, como se isso fosse apagar alguma coisa, mas a sujeira parecia estar por dentro. Me vesti sem pensar. Jeans, blusa escura, rabo de cavalo. Olhei no espelho e quase não me reconheci. Eu parecia… vazia. E foi quando ouvi. TOC TOC TOC. Congelo. Não pode ser. TOC TOC TOC. — Júlia, abre… por favor… — a voz dele. Meu sangue gelou. Me aproximei da porta em silêncio. Encostei a testa na madeira. Ele continuava ali. — Júlia, me escuta. Me deixa explicar. Me perdoa… por favor, me perdoa. Foi um erro. Eu sou um idiota. Eu te amo. As palavras dele me atingiram como lâminas. Por dentro eu sangrava. Por fora, eu tremia. Gritei com toda a força que tinha: — VAI EMBORA, FERNANDO! EU TE ODEIO! EU TE ODEIO, ENTENDE? EU NUNCA MAIS QUERO OLHAR NA SUA CARA! Ouvi ele bater de leve com a mão na porta, como se estivesse prestes a chorar. — Júlia… por favor… — SOME DA MINHA VIDA! VOCÊ MATOU TUDO ENTRE A GENTE! Minhas lágrimas voltaram com força total. Me afastei da porta cambaleando, como se as palavras dele fossem um veneno. Me joguei no chão da sala e chorei mais, com o corpo todo sacudindo. Ele ainda ficou ali por um tempo, em silêncio. E depois… se foi. Mas a dor ficou. Latejando. Respirando no mesmo ar que eu. E eu… eu só queria desaparecer. O telefone vibrou em cima da bancada da cozinha, e quando olhei a tela, meu coração apertou. Mãe piscava ali, como um lembrete suave de tudo que eu ainda precisava fingir que estava dando conta. Respirei fundo antes de atender. Não podia deixá-la perceber nada. Ela já tinha preocupações demais. — Oi, mãe — falei, tentando soar leve. — Oi, minha filha. Como você tá? Tô te ligando porque tenho aquela consulta hoje com o cardiologista, lembra? Mas me diz… você tá bem? Engoli em seco. A voz dela sempre foi meu abrigo, meu lar em forma de som. Só que hoje, ouvir ela me chamando de minha filha quase me quebrou de novo. — Tô bem, mãe… Só um pouco cansada, sabe? Muita correria na loja. — Forcei uma risada. — Mas normal. Houve um breve silêncio do outro lado. — Tem certeza, Júlia? Sua voz tá meio baixa… Não tá gripada, né? Pegou chuva esses dias? Ela sempre soube ler minhas entrelinhas. Até por telefone. — Tô bem mesmo, mãe. Só preciso descansar um pouco. Desliguei minutos depois, com um nó na garganta. Mentir pra ela era a parte que mais doía. Mas o que ela ganharia sabendo que a filha dela foi traída pela melhor amiga e largada como lixo na chuva? Nada. Então, por enquanto… ela vai continuar achando que tá tudo bem.