JULIA MONTENEGRO NARRANDO:
O destino é uma coisa curiosa. A gente anda pela vida achando que tem tudo sob controle, que cada passo que damos é fruto das nossas escolhas, das nossas certezas. Mas, às vezes, o destino ri da nossa confiança. Ele espera o momento certo, o instante exato, pra virar tudo de cabeça pra baixo. Sem aviso. Sem misericórdia. Naquela noite chuvosa, eu achava que estava prestes a fazer algo bonito. Inocente. Um gesto de amor no meio do caos do meu dia. Só que o destino… ah, o destino tinha outros planos pra mim. Entrei no apartamento com a chave que ele mesmo tinha me dado quando começamos a namorar. Era pra ser uma surpresa. Um jantarzinho depois de um dia infernal. Comida japonesa, saquê, um beijo demorado. Eu ainda sorri no elevador, olhando meu reflexo borrado, rindo da minha própria animação. Mas bastou eu dar dois passos dentro do apartamento pra perceber. O cheiro doce no ar. A música baixa. Uma vibração esquisita que arrepiou minha pele. — Fernando? — chamei, a voz meio engasgada, como se algo dentro de mim já soubesse. Silêncio. A porta do quarto estava apenas encostada. E, mesmo que cada célula do meu corpo gritasse pra eu voltar, eu empurrei. E ali estava. O fim da minha história perfeita. Fernando. Nu. Na nossa cama. Com Carolina. Minha melhor amiga. Por alguns segundos, eu não consegui respirar. Meus olhos demoraram a entender o que viam. O lençol desarrumado, as risadas baixas, a pele colada na pele. Ele beijando o pescoço dela, os dois tão à vontade… como se aquilo fosse rotina. — MAS QUE PORRA É ESSA?! A minha voz cortou o ar como uma navalha. Eles se assustaram como animais pegos no flagra. Fernando puxou o lençol, cobrindo o corpo às pressas, pálido como papel. Carolina, em choque, levou a mão à boca e tentou alcançar o vestido do chão. — Júlia… eu… — ela começou, trêmula. — NÃO! — gritei. — NÃO FALA MEU NOME! NÃO TENTAR SE EXPLICAR! Me aproximei como se fosse dar um soco em alguém, mas parei no meio do caminho. Não porque não queria. Mas porque doía demais. — Era aqui que você tava, Fernando? — cuspi as palavras, o peito arfando. — Com a minha melhor amiga? Na nossa cama? Ele tentou se levantar, falar algo, qualquer coisa. Mas não havia nada que pudesse dizer. Nada que desfizesse o que eu acabava de ver. — EU IA CASAR COM VOCÊ, DESGRAÇADO! — berrei. — Em três meses! Eu tava planejando o nosso futuro enquanto você… você tava transando com a mulher que segurou minha mão quando meu pai morreu! Minhas mãos tremiam tanto que eu nem percebi quando peguei o vaso da cômoda. Lancei com força contra a parede. Ele estourou em mil pedaços, como meu coração. — Eu te odeio. — sussurrei, já com a voz quebrada. — Eu odeio vocês dois. E você quer saber como eu cheguei até aqui, essa noite? Bom… isso eu vou te explicar. Dizem que ninguém tem a vida perfeita. Que toda felicidade demais esconde alguma tragédia esperando pra acontecer. Mas até hoje, eu discordava completamente. Minha vida era, sim, perfeita. Ou pelo menos… parecia. Sou gerente comercial de uma das lojas mais elegantes da Quinta Avenida, em Nova York. Trabalho com moda, o que sempre foi minha paixão, e todos os dias entro naquele prédio imponente com a sensação de que conquistei exatamente o que eu sonhei. As vitrines sempre impecáveis, os clientes elegantes, a equipe afiada. Me respeitam. Me escutam. E eu adoro liderar. Adoro me sentir no controle. Tenho um apartamento charmoso no Upper East Side, do meu jeitinho: tons neutros, plantas que eu mesma cuido, prateleiras cheias de livros de moda, comportamento e romances água com açúcar — aqueles que eu finjo não gostar, mas que me fazem chorar no fim. Adoro o silêncio do meu cantinho. Amo tirar os saltos no fim do dia, acender uma vela de baunilha e deixar Norah Jones tocar enquanto lavo o rosto devagar. Mas o melhor da minha vida tinha nome: Fernando. Meu noivo. O homem com quem eu planejava envelhecer. Fernando era tudo o que eu sempre quis em um parceiro. Arquiteto, inteligente, doce, sarcástico na medida certa. Lindo. Daqueles homens que a gente olha e pensa “mentira que isso existe fora da TV”. Nos conhecemos num evento da empresa há dois anos. Ele de terno escuro, um copo de vinho tinto e aquele olhar tranquilo que parecia me ler inteira, como se já me conhecesse de outra vida. Foi avassalador. Sabe aquela coisa de pele, de conexão imediata? Então. Foi isso. Trocamos números naquela noite, e desde então… nunca mais nos desgrudamos. A gente ria junto, cozinhava junto, via filme bobo agarrado no sofá. Ele me ligava pra dizer que estava com saudade mesmo quando tínhamos acabado de nos ver. Fazia planos. Me olhava como se eu fosse um universo. E eu acreditava. Com todo o meu coração. Estávamos a três meses do casamento. Um jardim na Toscana, luzinhas penduradas, uma banda tocando jazz ao fundo, taças de prosecco, gente elegante, promessas eternas. Tudo meticulosamente planejado. Tudo do jeitinho que a gente sonhou. Hoje, no entanto, o dia foi um caos completo. A loja lotada, uma cliente importante chegou sem aviso, uma entrega atrasada, um vendedor passou mal. Meu salto quebrou no meio do expediente e, claro, caiu uma chuva absurda bem na hora que eu saí. Tudo o que eu queria era um banho quente, meu sofá e silêncio. Mas pensei nele. No Fernando. E, como toda noiva que ama, pensei em transformar o fim do dia. Fazer uma surpresa. Um jantarzinho simples, mas simbólico. Algo que dissesse: “Eu amo você, mesmo nos dias difíceis.” Passei no restaurante japonês que a gente ama, pedi os combinados de sempre, uma garrafa do saquê favorito dele. Saí correndo debaixo de chuva, com a sacola bem protegida, o coração leve e a cabeça cheia de ideias bobas — achando que seria uma daquelas noites doces, que viram lembrança. Quando chego no prédio dele, o porteiro me recebe com aquele sorriso cúmplice. Ele já me conhece, claro. Dá um aceno e diz: — Ele está lá em cima, senhorita Júlia. Pode subir. E eu subi. Com o coração acelerado. Achando que tava fazendo tudo certo. Que tava vivendo meu grande amor. Que o destino tava a meu favor. Mas o destino… ah, o destino. Ele só tava esperando eu abrir aquela porta.