RavenaA água quente da banheira me envolvia, mas o frio ainda estava lá... não do lado de fora, e sim dentro de mim. Meus ossos pareciam guardiões de um inverno antigo, e mesmo com o sangue quente em minhas veias, algo em mim ainda tremia.Fechei os olhos, tentando escapar do desconforto. E então, fui puxada para longe, não com dor, mas com uma suavidade estranha, como se algo muito antigo em mim estivesse acordando.E eu sonhei.Na floresta onde cresci, os galhos dançavam ao som do vento e as sombras projetavam segredos no chão. Eu ainda era criança, talvez com cinco anos, um pouco mais jovem do que quando meus pais morreram. Meus pés descalços pisavam a terra úmida enquanto seguia uma trilha de flores que brilhavam com um tom azulado sob a luz do entardecer, as flores do rei, como minha mãe as chamava. Ela dizia que eram raras e perigosas, que não apareciam para todos, e que eu deveria evitá-las. Mas aquelas flores sempre apareciam para mim, e elas me atraiam.A trilha de pétalas
A escuridão ao meu redor se dissipava lentamente. O calor do corpo dele, o som distante da respiração profunda… tudo se dissolvia como fumaça levada pelo vento.Meus olhos se abriram.O teto da câmara de banho estava acima de mim. O vidro transparente mostrando a imensidão da noite, salpicada de estrelas. O mármore antigo, reluzente sob a luz suave dos candelabros acesos. Ainda estava na banheira, e a água quente agora parecia morna. Uma brisa entrava pelas portas abertas do observatório da cúpula, e tocava minha pele com um arrepio sutil.Mas não era o frio que me fazia tremer.Era o peso do que eu sonhara. Não..., do que eu vivi.Porque aquilo não era só um sonho.Eu sentia em cada parte do meu corpo, no corte que já não existia em meu antebraço, no cheiro das flores que não vi de novo, no gosto do medo e da esperança misturados, que aquilo era real. Um fragmento de memória perdido, enterrado tão fundo dentro de mim que só agora começava a emergir.Cyrus. O nome dele ecoava em m
No vestíbulo, no entanto, dei de cara com Callie.Ela estava coberta de sangue, e havia um buraco em sua camisa de seda branca, e no seu peito. Vi aquela imagem horrível se fechando lentamente, eu podia ver seu coração batendo.Manchas escarlates pintavam sua roupa de grife, secando em seus ombros e mãos. Seus olhos carregavam fúria e desconfiança, como se tivessem presenciado algo que não podiam aceitar.— Cyrus está com Nathaniel. Na biblioteca. — disse ela, fria. — A câmara da corte foi convocada pelos Lordes Anciãos. Aparentemente, a nova consorte... chamou atenção demais.Tive um calafrio. Não pelo tom acusatório, mas pela seriedade de suas palavras. Corte. Duques, lordes, condes e barões. Cyrus envolvido. Toda a realeza dessa raça.Corri.Meu roupão esvoaçava enquanto eu subia as escadas e atravessava corredores de pedra que ainda me eram estranhos, mas eu só seguia o cheiro do meu companheiro para chegar aos seus aposentos. Cada batida do meu coração parecia se fundir com o so
As portas do Salão Principal da Corte se abriram com um estalo que ecoou como um trovão ancestral. Meu coração batia tão alto que mal ouvia os murmúrios cortantes que se espalhavam entre os bancos e degraus de pedra escura. Havia dezenas deles; duques, condes, barões e lordes. Vampiros de sangue puro, alguns com mais de mil anos de vida, todos com olhos inquisidores voltados para mim.Mas ao meu lado estava ele. Cyrus.E ao verem sua figura poderosa, o silêncio se fez instantaneamente.Vestido com o negro escarlate da realeza, a capa longa arrastando pelo chão de mármore negro como fumaça viva. Sua aura era como um eclipse; densa, hipnotizante e insuportável para os fracos. Conforme nos aproximávamos do trono, os presentes se curvavam, mesmo contra a vontade. Era como se a própria noite se dobrasse diante dele. Não havia ninguém ali que pudesse enfrentar sua força, sua rapidez ou sua fúria.Sentamo-nos lado a lado, no trono alto de veludo vermelho, feito de ouro branco envelhecido,
— Marcel… — meu sussurro escapou sem que eu percebesse, como um feitiço antigo quebrando sua cela de silêncio.O nome dele queimava em minha garganta como fel. O corpo do vampiro agonizante jazia à minha frente, mas eu não enxergava mais o sangue em sua pele nem a fumaça negra que ainda saía das queimaduras místicas das marcas de garras profundas em seu tórax. Tudo o que sentia era o cheiro. Aquele cheiro que eu pensava ter deixado para trás, enterrado junto com meus gritos em celas de pedra e noites sem lua. Dias em que eu passava me arrastando sobre meus pés descalços, com a dor das lacerações em minhas intimidades bloqueado o meu raciocínio, de tão intensas.Noites na sala de jogos, o cheiro pungente de semem imundo sobre meu corpo. A dor de cada estupro, de cada tapa, e cada soco. Meu corpo coçava inteiro, como se aquela sujeira voltasse instantaneamente. Eu estava imersa naquele cheiro. O cheiro de Marcel Lockhart.Minhas mãos, antes firmes, tremeram violentamente. Recuei um pa
MarcelO cheiro de sangue impregnava o ar, espesso como a névoa que rastejava pelas raízes da floresta escura ao sul de Northshore. Eu estava agachado sobre uma pedra enegrecida pela fuligem, meus olhos negros queimando de raiva e frustração. O vento frio sibilava entre os galhos retorcidos, como vozes zombeteiras sussurrando em meus ouvidos, de que ela não viria. Dois dias. Dois malditos dias esperando nas bordas daquela floresta maldita, e Ravena não havia aparecido. Não era possível que ela não sentiu a minha presença.Ela devia sentir.Ela tinha que sentir.Nosso vinculo era muito forte. Eu tenho o domínio sobre ela há muitos anos, eu a moldei para mim.Meu corpo ainda doía como o inferno, pelo esforço de conter a transformação. Meu lobo rugia, inquieto, faminto, não por carne, mas por ela. Ele não queria me entregar o controle, ele queria ve-la, devora-la. Pelo corpo magro e pálido dela. Pela alma obediente e inocente dela. Era uma dor que queimava sob a pele, um vício que ele n
As portas da biblioteca se fecharam atrás de nós com um ruído grave, abafando o caos que ainda pulsava nos corredores de Northshore. O perfume de couro antigo, madeira envernizada e papel amarelado impregnava o ar e, pela primeira vez em séculos, o santuário do saber que eu tanto prezava parecia pequeno demais para conter minha ira.Nathaniel se postou à direita, os braços cruzados, mas os olhos atentos. Ravena parou junto à janela de vidro espesso, onde a noite lambia o céu com nuvens escuras. A luz das lamparinas fazia dançar as sombras dos livros sobre os estofados e colunas. Mas tudo aquilo, os volumes sagrados da história vampírica, os mapas táticos, os grimórios mágicos, não me traziam conforto.Porque tudo dentro de mim gritava por sangue.O dele.Marcel Lockhart. A criatura desprezível que ousou colocar as mãos em Ravena. Não uma vez, mas por anos. E pior, se autodenominava seu companheiro.— “Companheiro”… — rosnei, e minha voz reverberou como um trovão abafado pelas paredes
Celeste Descobri o rastro de Marcel quando o vento mudou, trazendo o odor enjoativo de feno queimado e sangue lupino até a minha janela. Era madrugada, e a lua vazia espiava por entre as nuvens cinzentas, lançando um brilho espectral sobre o pátio da casa da alcateia. O ar carregava a notícia com a sutileza de um trovão distante, o lobo que eu amo profundamente em segredo, cruzou as fronteiras e partiu atrás daquela puta vadia.Um sorriso frio e amargo se formou em meus lábios. Como ele pode partir assim, sem nem mesmo pensar em mim, sem considerar sua Luna, sua amante. A fêmea que vinha esquentando sua cama e satisfazendo seus desejos todas as noites?!Eu me arrisquei por ele, eu menti e enganei Alexander, o nosso alfa, por ele. E agora ele não me pensou em mim nem por um segundo, antes de correr para tentar achar aquela piranha caquética que não tinha nenhum atrativo e nem sabia dar prazer.Mas não importa, porque agora, ele cumpria seu papel, e eu cumpriria o meu.Enfiei o capuz n