Mundo ficciónIniciar sesiónClarice
O céu está limpo e estrelado, mas a estrada parece interminável. O cansaço e a dor que irradiam pelo meu corpo começam a me consumir, até que tudo fica turvo. Meus pés estão descalços, e o terreno pedregoso e árido faz, a cada passo, uma ferida ainda mais profunda, mas eu não tenho escolha. Eu não posso voltar. Não posso mais olhar para trás. É então que, em meio à escuridão, vejo uma luz à distância. Não sei se é uma ilusão provocada pela minha exaustão ou se realmente alguém está se aproximando, mas, pela primeira vez em muito tempo, sinto uma fagulha de esperança. A luz se aproxima rapidamente e, antes que eu possa me mover, uma voz grave e firme chama: — Ei, moça! Está tudo bem por aí? Ainda tonta e sem forças, tento responder, mas minha voz falha. As palavras não saem. Só consigo mexer os lábios, e a escuridão me consome por completo. Quando acordo, estou em um ambiente diferente, acolhedor e cheiroso, como se fosse uma casa no campo. Olho ao redor e vejo uma luz suave iluminando o quarto rústico, com paredes de madeira e móveis simples, mas confortáveis. Ao meu lado, uma mesa com uma jarra de água e uma toalha limpa. Tudo parece tão pacífico, quase um alívio para minha alma dilacerada. — Finalmente acordou. Eu estava começando a me preocupar. — A voz grave de antes se faz ouvir e, ao virar a cabeça, vejo um homem alto, de barba espessa e olhar preocupado. Ele está parado na porta, com uma expressão de curiosidade e cautela. — Onde estou? — pergunto, minha voz fraca e rouca. — Está na minha casa, na Fazenda Butterfly. Eu a encontrei desmaiada na estrada. Não sabia se devia levar para um hospital ou o quê, então a trouxe para cá. Me chame de John. E você é...? — O homem sorri gentilmente, como se tentasse me tranquilizar, mas suas palavras têm um tom firme, como se ele fosse alguém acostumado a tomar decisões rápidas. John. O nome me soa estranho, mas ao mesmo tempo reconfortante. Ele é um homem robusto, de aparência simples, mas há algo nele que passa confiança. Estou em total desconforto, ainda sentindo o peso do trauma e do medo, mas, de alguma forma, a presença daquele homem me dá uma sensação de segurança que não sinto há muito tempo. Até penso em omitir o meu nome, afinal, não sei quem é esse homem diante de mim. Mas, desisto. Já basta de tantas mentiras e ilusões que estive vivendo durante toda a minha vida. Agora, é hora de seguir em frente. E quem sabe... recomeçar. — Clarice — murmuro, ainda sem forças. — Clarice, certo. — Ele se aproxima com um copo de água em mãos, oferecendo-me gentilmente. — Beba. Vai se sentir melhor. Pego o copo e, com a ajuda de John, consigo tomar um pouco da água. O líquido gelado me dá um alívio imediato, e aos poucos vou recuperando o controle sobre o meu corpo, mas minha mente ainda está turva, cheia de lembranças dolorosas. — O que aconteceu? — pergunta John, sua voz suave, mas firme. Ele está interessado em saber mais, mas respeita o espaço que preciso. Olho para ele, hesitante, sentindo uma dor profunda no peito. Eu não sei o que dizer. Como contar sobre o monstro que foi meu marido? Sobre tudo o que passei? Como explicar que estou fugindo de uma vida de pesadelos? Mas a sensação de que ele é alguém digno de confiança me faz falar. — Eu estava fugindo... de um homem. Ele me fez mal, muito mal. Eu... — As palavras me falham, e uma onda de emoções toma conta de mim. Eu quero chorar, gritar, mas o medo me paralisa. John permanece em silêncio, observando-me com uma expressão de compreensão, sem pressionar. Sua presença é calmante, como se ele soubesse exatamente o que fazer sem precisar dizer nada. — Não se preocupe. Está segura aqui. — Sua voz profunda é tranquila, e ele se afasta, indo até uma janela. — Eu entendo mais do que você imagina. Também já passei por tempos difíceis. Mas este é um lugar onde você pode recomeçar. O Texas é grande e, às vezes, oferece segundas chances. As palavras dele, simples e diretas, me tocam de uma forma inesperada. Ali, naquele rancho isolado, em um lugar onde o mundo parece distante, encontro um refúgio que nunca imaginei ser possível. Mas, enquanto me recupero fisicamente, sei que o mais difícil ainda está por vir. — Eu sou veterinária. — É tudo o que consigo dizer, como se precisasse me afirmar em algo que fosse minha essência. Eu não sou só uma mulher perdida, um ser quebrado. Eu tenho uma profissão, um propósito. Mesmo que o resto da minha vida esteja desmoronando, ainda há isso. John olha para mim com uma expressão pensativa. — Bem, dizem que milagres acontecem. — Ele dá uma pausa. — E encontrar você na estrada é um deles. — Por que diz isso? — questiono. — Porque minha viagem se deu justamente pelo fato de não ter um veterinário à disposição. — Então quer dizer que... — começo a falar, mas John me interrompe. — Eu preciso de um bom veterinário para cuidar dos meus animais. E você... — Agora, sou eu quem o interrompe. — Eu preciso de um emprego para recomeçar. John assente, cruzando os braços sobre o peito enquanto me observa. — Então parece que o destino já resolveu por nós. Ele caminha até a janela e olha para fora, como se refletisse sobre algo importante. Ainda estou processando tudo, tentando entender como, em meio ao caos da minha vida, encontrei uma chance de recomeçar. — Posso te oferecer um lugar para ficar e um salário justo. O trabalho não é fácil, mas, se você realmente quiser ficar, pode ser um bom começo. — John volta a me encarar, esperando minha resposta. Meu coração acelera. Ainda tenho medo, ainda carrego cicatrizes invisíveis que me fazem hesitar, mas, pela primeira vez em muito tempo, vejo uma porta se abrindo diante de mim. — Eu aceito — respondo, minha voz um pouco mais firme. Um pequeno sorriso surge no canto dos lábios de John. Ele estende a mão para um aperto firme, selando aquele acordo que significa mais do que apenas um trabalho. Significa uma nova chance, uma nova vida. Antes que possamos dizer mais alguma coisa, um barulho leve ecoa pelo corredor. Passos pequenos e apressados se aproximam. John se vira instintivamente e, no instante seguinte, uma garotinha de cabelos dourados aparece na porta do quarto. — Papai! — A voz infantil é animada e doce. A menina, que não deve ter mais do que sete anos, corre para os braços de John, que a pega no colo com um sorriso afetuoso. Ela me olha com curiosidade, seus olhos grandes e azuis brilhando na luz suave do quarto. — Quem é ela? — pergunta a menina, apontando para mim. John olha para mim por um instante antes de responder: — Aurora, essa é Clarice. Ela vai nos ajudar na Butterfly. Aurora continua me observando, como se tentasse decidir se gosta de mim ou não. Depois de alguns segundos, ela sorri, balançando as perninhas no colo do pai. — Você gosta de cavalos? — pergunta animada. Sorrio de leve, sentindo algo dentro de mim se aquecer pela primeira vez em muito tempo. — Sim, gosto muito. Ela b**e palminhas, feliz com minha resposta. — Então você vai gostar daqui! John ri baixinho e bagunça os cabelos da filha antes de me lançar um olhar cheio de significados. Sei que, naquele momento, minha jornada está apenas começando. Mas, pela primeira vez em muito tempo, não me sinto completamente sozinha.






