CAPÍTULO 4

O despertador tocou antes mesmo do sol nascer, quando abri os olhos, o quarto estava mergulhado numa penumbra azulada, e o frio no meu estômago era mais forte do que qualquer inverno.

Havia chegado o dia.

A entrevista com a imigração estava marcada para às 9h30 da manhã. Carolina havia me preparado para tudo, roupa, postura, respostas ensaiadas. Mas nada me prepararia de verdade para a sensação de estar prestes a atravessar uma porta sem volta.

Tomei um banho gelado, precisava despertar cada parte do meu corpo, esconder o pânico que insistia em crescer dentro de mim. Depois vesti exatamente o que Carolina havia me mandado usar, uma blusa de gola alta branca, discreta mas justa o suficiente para realçar meu corpo, calça de alfaiataria nude, salto baixo e brincos pequenos. Cabelos presos num rabo de cavalo elegante, maquiagem leve. A intenção era clara, uma jovem sofisticada, de classe média alta, indo para uma viagem de lazer.

Olhei no espelho antes de sair. Não parecia eu.

A garota do reflexo não tinha cheiro de cigarro, não dançava sob luzes vermelhas, nem suava com notas de cinquenta reais sendo enfiadas no sutiã. Ela parecia rica, preparada, fria.

E ainda assim, por trás daquele disfarce, eu era só uma menina de 21 anos prestes a vender a própria virgindade para um completo estranho.

Saí de casa com o coração na garganta.

Cheguei ao prédio da Polícia Federal meia hora antes do agendado. O local já estava cheio, turistas, famílias com malas, mochileiros. Ninguém sabia que eu não estava ali apenas para tirar um passaporte ou planejar uma viagem de férias. Eu era uma mentira ambulante.

Esperei meu nome ser chamado com a ficha de solicitação de visto em mãos e uma pasta com os documentos que Carolina havia preparado, comprovante de renda fictício, reserva de hotel de fachada, uma carta da agência (com outro nome, claro) dizendo que eu era representante de um projeto de moda e que iria à Dubai para conhecer potenciais investidores.

— Júlia Mendes?

Chamou uma voz masculina.

Levantei como se meus joelhos fossem feitos de papel. Sorriso no rosto, postura reta. Fingi ser o que não era.

A sala da entrevista era simples, uma mesa de vidro, uma bandeira do Brasil num canto, uma câmera gravando a entrevista e um agente de terno escuro com olhar desconfiado. Ele indicou que eu me sentasse.

— Bom dia. Você está aqui para solicitar visto de turista para os Emirados Árabes, correto?

— Sim, senhor.

Respondi com a voz mais firme que consegui.

— É sua primeira viagem internacional?

— Sim. Sempre quis conhecer o Oriente Médio.

Ele folheou meus documentos com agilidade. Conferia datas, códigos, carimbos. Eu sabia que qualquer erro, qualquer hesitação, poderia colocar tudo a perder.

— Qual o propósito da viagem?

— Turismo. Tenho interesse na cultura árabe, na arquitetura e vou aproveitar para visitar alguns contatos de trabalho também. Trabalho com eventos de moda. Disse, apontando para a carta na pasta.

— Qual a duração prevista da sua viagem?

— Sete dias.

— Vai viajar sozinha?

— Sim.

Ele me encarou por alguns segundos, como se tentasse decifrar algo nos meus olhos. Mantive o sorriso leve, os ombros relaxados, como Carolina havia ensinado.

— Você já tem passagem comprada?

— Tenho a reserva. A compra será efetuada após o visto.

Ele digitou algumas coisas no computador, leu algo na tela, e então voltou a me fitar.

— Qual é a sua profissão atual?

Respirei fundo.

— Assessora de eventos. Trabalho de forma autônoma.

Era a resposta oficial. Nada de boate, nada de dançarina, nada de verdade.

Ele não disse nada por alguns segundos. Só anotou algo num formulário e levantou.

— Aguarde lá fora. Em breve será chamada para a coleta de dados biométricos.

Saí da sala com as pernas bambas, o ar parecia mais pesado do lado de fora. Sentei em um dos bancos e encarei minhas próprias mãos tremendo no colo.

Tudo ali era um teatro.

Meu sorriso, minhas roupas, meu passaporte novo com páginas em branco, tudo falso, tudo ensaiado, e ninguém percebia. Ninguém sabia que aquela menina, fingindo ser uma profissional de moda, estava prestes a embarcar para um destino onde deixaria para trás o que ainda restava da sua inocência.

Depois de meia hora, me chamaram para coletar digitais e tirar a foto do passaporte.

— Olhe para a câmera, por favor.

Levantei o rosto, a lente fria me encarava como um espelho da verdade. Pensei na minha mãe, no quarto de hospital, no soro pingando. Na promessa que eu fiz.

A foto foi tirada.

Quando saí, já era quase meio-dia. O sol castigava lá fora, mas eu não sentia calor, só um enorme vazio.

Peguei um táxi e, no caminho de volta para casa, o motorista puxou conversa.

— Vai viajar?

— Sim… trabalho.

— Que bom, tem muita gente indo pra fora pra tentar a vida.

Tentei sorrir, mas não consegui.

Ao chegar em casa, tirei a roupa como se arrancasse um papel de parede que já não me servia, fiquei sentada no chão ao lado da minha cama por longos minutos, não chorei, não falei. Só fiquei ali, respirando fundo, tentando lembrar quem eu era antes disso tudo começar.

Peguei o meu celular, e lá estava a notificação do valor exorbitante que havia caído na minha conta. O dinheiro que poderia salvar a minha mãe estava ali, diante dos meus olhos, e eu me agarrei aquilo como se agarrasse à própria vida.

O tempo da dúvida havia acabado. Agora era só seguir.

Fui para o hospital e paguei os 20% do tratamento da minha mãe. E pela primeira vez depois de tudo o que havia acontecido, eu senti um pouco de alívio.

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