O sol mal havia despontado sobre os telhados de Milão quando Valentina acordou, ainda com o vestido da noite anterior. A cabeça latejava, o corpo pesava. Por um instante, desejou que tudo aquilo tivesse sido apenas um pesadelo — o casamento, o pacto, o nome Moretti.
Mas o anel em seu dedo anulava qualquer esperança.
Levantou-se devagar. Enzo já não estava no quarto. O banheiro estava vazio, e a cama do lado dele nem sequer havia sido usada. No criado-mudo, havia uma bandeja com café, frutas e um bilhete escrito à mão.
“Tenho reuniões pela manhã. Peça o que quiser. A casa agora também é sua.
– E.M.”Ela encarou as iniciais como se pudessem lhe dar respostas. A frieza de Enzo era quase um tipo de linguagem. Tudo nele era estratégia, até mesmo o gesto gentil de deixar café.
Valentina não queria se sentir grata. Mas odiava ainda mais a sensação de estar sendo estudada, testada como um animal novo em território alheio.
No fim da manhã, uma funcionária bateu à porta. Jovem, discreta, vestida com uniforme preto.
— Senhora Moretti, o senhor Enzo pediu que a senhora fosse apresentada à propriedade e recebesse orientações sobre segurança. A senhorita Francesca conduzirá o tour.
Valentina assentiu, trocando o vestido por uma calça social e camisa branca. Nada de vestidos de seda ou saltos extravagantes. Ainda não. Aquela era a fase de observação.
Francesca, a guia, era uma mulher baixa e eficiente, com cabelo preso em um coque apertado. Caminhou ao lado de Valentina pelos corredores silenciosos da mansão, apresentando cada setor com a frieza de quem recita um relatório.
— O lado leste é reservado à administração dos negócios legítimos da família — explicou. — Escritórios, arquivos e reuniões com fornecedores. O lado oeste, como solicitado pelo senhor Moretti, está sob acesso restrito. Apenas ele, seus dois assistentes e os chefes de segurança têm permissão para entrar.
— O que há do lado oeste? — Valentina perguntou.
— A senhora não precisa saber, a menos que deseje se envolver nos assuntos... menos convencionais da família.
A resposta era um não disfarçado de escolha.
— E se eu quiser saber?
Francesca hesitou apenas um segundo.
— Então deve pedir permissão ao seu marido. Ele é o único autorizado a quebrar as regras que ele mesmo impõe.
Valentina sorriu de lado.
— Interessante. Ele dita as regras. E eu finjo que aceito.
— Finja bem — foi tudo o que Francesca disse, antes de continuar a caminhada.
Ao fim da tarde, Valentina foi conduzida ao escritório principal. Enzo estava lá, falando ao telefone em italiano com alguém que claramente não queria ouvir o que ele dizia. Sua voz era baixa, mas implacável. Quando desligou, virou-se para ela com um leve aceno.
— Gostou do tour?
— Sim. Senti falta apenas do porão com os esqueletos.
— Esse fica no lado oeste.
Ela cruzou os braços.
— Pretende me manter afastada de tudo?
— Pretendo protegê-la. Este mundo não é seu.
— A partir do momento em que carrego seu nome, ele passa a ser, não acha?
Enzo apoiou-se na beira da mesa, observando-a com calma.
— Você é mais inteligente do que muitos homens que trabalham comigo. E isso é perigoso.
— Para quem?
Ele não respondeu. Apenas se aproximou.
— Valentina, isso não é um jogo. Este mundo cobra caro por cada erro. Se eu a mantiver fora dele, é para que não seja usada como peça de chantagem, ou pior.
— E você acha que alguém como eu gosta de ser mantida em uma redoma?
— Acho que alguém como você aprendeu rápido demais que não existe redoma segura. Mas pode existir aliança.
Ela respirou fundo.
— Então comece a me tratar como aliada. Não como uma boneca decorativa.
Enzo assentiu, pensativo.
— Tudo bem. Amanhã, quero que venha comigo ao evento da Fundação Belladonna. Será sua primeira aparição pública como minha esposa.
— E qual será minha função?
— Observar. Escutar. E sorrir — disse ele, com ironia.
— Perfeito — retrucou ela. — As três coisas que mais detesto fazer quando estou entediada.
Naquela noite, Valentina não conseguiu dormir.
A mansão era silenciosa demais. O tipo de silêncio que sussurra coisas que você não quer ouvir. Passou horas caminhando pelos corredores, observando obras de arte dispostas como troféus de guerra. Notou câmeras escondidas, detectores nos batentes de porta, pontos cegos onde luz e sombra se encontravam. A casa Moretti era uma fortaleza. E ela, uma prisioneira de luxo.
Quando voltou ao quarto, encontrou Enzo no sofá, lendo um dossiê. Estava sem paletó, mangas arregaçadas, cabelo um pouco desalinhado. Pela primeira vez, ele parecia... humano.
— Insônia? — ele perguntou, sem levantar os olhos.
— Curiosidade.
— Cuidado com ela. Pode ser tão letal quanto uma bala.
— Eu sou filha de Mancini. Curiosidade está no sangue.
Enzo fechou a pasta e a encarou.
— Você quer mesmo entrar nesse mundo, Valentina?
— Quero entender onde estou. Não sou criança.
Ele se levantou, caminhando até ela com passos lentos.
— Então me prometa uma coisa.
— Diga.
— Que quando souber demais... não se arrependa.
Valentina sustentou o olhar.
— Só me arrependo do que deixo passar.
Enzo parou diante dela, os olhos cravados nos dela. Havia uma tensão ali, algo que pendia entre a ameaça e a atração. Ele tocou de leve a aliança no dedo dela.
— Boa noite, esposa.
— Boa noite, Enzo.
Quando ele saiu do quarto, ela ficou olhando a porta fechar, sentindo o peso de algo que ainda não sabia nomear.
Era o início de uma dança perigosa — e ela estava determinada a conduzir a música também.