A aparição de forasteiros em Valedouro era um evento incomum — e nunca bem recebida logo de cara. O povo dali, pessoas humildes e supersticiosas, interpretava qualquer coisa nova como um sinal. Principalmente quando o sujeito, um recém-chegado, aparecia numa noite gelada, montado num cavalo negro, com um capuz escondendo a cara e olhos brilhando como brasas.
Lucas D’Arven alugou um quarto na estalagem da Dona Mirtes, uma viúva falastrona e com bons palpites. Pediu um quarto no andar de cima, com vista pra mata. Trazia pouca bagagem, mas a sua atitude e a voz grave mostrava que não era homem de se assustar fácil. Apesar disso, aparentava ter uma fadiga profunda, como se estivesse fugindo de alguma coisa — ou de si mesmo.
Naquela manhã, apareceu na feirinha da vila. As conversas pararam de repente. As mãos que pegavam nas verduras ou que teciam a lã paralisaram. Lucas, todavia, não dava bola para os olhares. Cumprimentava com delicadeza, mas com um certo distanciamento. Os seus olhos, no entanto, examinavam o lugar como se buscassem algo. Ou alguém.
Elena o observava de longe, fingindo escolher batatas na cesta de Dona Belmira.
Quando, finalmente, seus olhares se encontraram outra vez, ele deu um pequeno aceno, né. Aquele gesto, longe de ser banal, continha um quê de reconhecimento, saca? Era como se um sussurrasse ao outro um "Eu sei".
Mais tarde, Elena foi buscar água no riacho e lá estava ele. Ele, sentado numa pedra, fitando a correnteza, quase em meditação.
— Tá de olho nos peixes, ou tá tentando prosear com o rio? – ela perguntou, meio surpresa com a audácia.
Ele soltou um sorriso, sem virar.
— Às vezes, o silêncio fala mais alto que palavras – falou. Logo, encarou-a. – E às vezes, alguém surge qundo menos se espera.
Elena sentiu o rosto esquentar, mas ficou ali firme.
– Você não é daqui.
— Não. Mas... talvez já tenha sido – respondeu, com enigma – Talvez em outro tempo.
O silêncio entre eles era espesso, mas sem incômodos. Como se duas peças tivessem se encontrado perfeitamente, sem nem saberem o desenho.
Quando ele se levantou, acenando um adeus discreto, Elena notou algo no chão. Pegou furtivamente: uma folha velha, rabiscada com um símbolo estranho, um crescente espiralado, cercado por runas meio apagadas.
Era o mesmo símbolo que ela tinha visto num livro velho do pai dela, na página sobre os Filhos da Lua Negra — lobisomens de antigamente, amaldiçoados por desafiarem os acordos sagrados.
E agora, este simbolo surgiu. No caminho de um forasteiro de olhos dourados
Naquela noite, com o vento uivando entre as telhas e os galhos batendo igual dedos nas janelas, a Elena abriu o velho grimório do pai, as escuras. As paginas amareladas contavam de lendas esquecidas, pactos lunares e linhagens que se perderam. Quando ela tocou com os dedos no símbolo da lua crescente em espiral, ela sentiu um leve formigamento na pele, como se algo a reconhecesse. Lá, em letras desbotadas, estava a profecia: “Quando a lua sangrar e os olhos dourados voltarem, a guardiã despertará — e a escolha vai selar o mundo.” O coração dela doeu. Pois, de alguma forma, ela sabia que aquela escolha estava chegando perto. E que o Lucas era a chave.