Mundo de ficçãoIniciar sessãoEstava tão cansada e o silêncio na capela era tão grande que comecei a cochilar sentada. Àquela hora, só os familiares mais próximos permaneciam velando o morto. Caterina murmurava suas preces ao meu lado em voz baixa, apertando o terço com firmeza, e a melodia suave do seu lamento embalava meu sono. Isso até Enzo aparecer.
Na penumbra criada pela luz das velas, vi meu marido caminhar por entre os bancos da capela. Eu ainda não estava totalmente desperta e achei que era um sonho. Ou melhor, um pesadelo. O andar de Enzo era trôpego. Ele vestia uma camisa branca amarrotada e uma calça jeans imunda, como se tivesse se esquecido de se trocar para o velório do próprio pai. O rosto estava vermelho sob a barba por fazer, não porque ele tinha chorado, mas porque estava bêbado.
O terço de Caterina caiu no chão e eu acordei de vez com o som das contas de madeira batendo no piso de pedra da capela..
— Ó Deus, ele estava bebendo — ela sussurrou o óbvio.
Enzo Bellandi, o homem com quem eu me casara, foi até o caixão do pai. E riu. Uma gargalhada alta que ecoou pelo lugar.
— Faça alguma coisa — minha sogra me implorou, como se eu tivesse algum poder sobre aquele homem.
Sem alternativa e com pena dela, levantei-me e fui até ele.
— Enzo — chamei, tocando gentilmente em seu ombro.
Eu já devia saber o que me esperava, mas parecia que eu nunca aprendia.
Meu marido era muito mais alto do que eu. Ele se virou rápido demais e acertou meu rosto com o cotovelo. A pancada veio como tantas outras — rápida, seca, certeira. Tão familiar que não sei como ainda me surpreendia.
— Me solta! — ele gritou.
Cambaleei para trás, perdendo o equilíbrio, enquanto levava a mão ao local da pancada. Mais um olho roxo para minha coleção.
Eu teria caído sentada no chão se alguém não tivesse me amparado por trás. Braços fortes me seguraram e senti o perfume fresco de Matteo Valenti.
— Ainda batendo em quem não pode se defender, Enzo? — ele cuspiu para o irmão enquanto me mantinha de pé.
Havia muito ressentimento em sua voz e me perguntei se ele mesmo não tinha tomado uma cotovelada dessas quando era criança.
— Não foi nada… — tentei dizer, me desvencilhando dele.
Enzo encarava o irmão, perplexo, como se estivesse vendo um fantasma.
— O que você está fazendo aqui? — rosnou.
— O que eu devia ter feito anos atrás — Matteo retrucou com rispidez.
Antes que eu entendesse o que estava acontecendo, ele acertou um soco em cheio no rosto de Enzo.
Meu marido voou até o chão como uma marionete. Caterina gritou de onde estava, assustada.
— Pare! Pare!
Os apelos dela foram inúteis, porque Matteo ergueu o punho outra vez e avançou para cima do irmão com tanta fúria que pensei que fosse matá-lo. Olhando para trás, talvez eu devesse ter deixado. Mas, além de azarada, sempre fui trouxa. Acho que foi por isso que me joguei entre os dois.
Enzo já estava de pé quando Matteo foi obrigado a parar, quase me atropelando. Meu marido ficou atrás de mim, como o bom covarde que era e começou a xingar o irmão.
— Seu filho da puta! Quem você pensa que é pra voltar aqui?
— Tenho tanto direito de estar aqui quanto você! — Matteo rebateu e literalmente cuspiu no chão da capela, para o horror dos poucos parentes que presenciavam a cena.
— Papai renegou você. Saia daqui!
Os dois capangas continuavam sentados como se não estivessem nem um pouco preocupados com o que estava acontecendo.
— Parem, meus filhos! — Caterina pediu mais uma vez, já aos prantos.
Matteo a encarou. A resposta que ele pretendia dar a Enzo parecia entalada em sua garganta, o rosto tomado pela fúria. Pensei que ele iria dizer algo à mãe também, mas então seu olhar cruzou com o meu.
Eu podia ver em seus olhos o quanto ele estava se contendo, como se tivesse um animal dentro de si. Algo selvagem, prestes a colocar as garras de fora. E talvez houvesse algo selvagem em mim também, porque o que quer que ele tenha visto no meu rosto fez com que ele recuasse.
— Não vim aqui pra isso. Não hoje — ele finalmente disse. Então se virou e foi em direção à porta da capela, seguido por seus capangas.
Senti a mão possessiva de Enzo apertar meu braço.
— Por que ele estava te defendendo? De onde você o conhece? — ele rosnou para mim com seu hálito de bebida.
Tentei me desvencilhar, mas seus dedos pareciam ferro contra a minha carne.
— Eu nunca o vi antes de hoje, pelo amor de Deus. Nem sabia que você tinha um irmão.
— Eu não tenho um irmão! — A voz dele soou alta demais naquele lugar sagrado, ríspida e dura como as pedras das paredes.
Enzo me soltou e voltou para a beira do caixão.
Fiquei parada ali, sentindo o rosto arder. Não sabia se era de dor pela cotovelada ou se era de vergonha. Os parentes nos observavam e cochichavam. Tive vontade de fugir dali. Não só daquela capela, mas daquela cidade. Sair pela porta e correr pelas ruas, deixar que a noite me encontrasse e me perder no mundo.
Olhei para a saída, para onde meu corpo queria me levar. Matteo ainda estava lá. Era como a gravidade. Parecia que, onde quer que eu estivesse, meus olhos sempre eram atraídos para os dele.
A fúria continuava marcando seu rosto. Mas havia algo mais. Talvez… surpresa. Como se ele tivesse ido até ali esperando encontrar outra coisa. Ele parecia estar me analisando, como se decidisse se eu deveria fazer parte dos seus planos ou não.
— Chiara — a voz suave de Caterina me chamou.
Eu me virei por um instante e, quando voltei a olhar para a porta, Matteo se fora. E eu continuava ali, naquela prisão que era a minha vida.







