Âmbar.
— O que houve, menina? — perguntou Harriet, a cozinheira da escola, assim que entrei pela porta da cozinha com o joelho ainda sangrando. Ela era uma das pessoas de quem eu gostava naquele lugar e das poucas que me tratavam como gente, que sentiam algum apreço por mim. Sempre que precisava de um abraço, um conforto ou apenas um momento sozinha para tentar superar o que me faziam, Harriet era a pessoa que estava lá por mim.
Seus olhos semicerrados de preocupação se voltaram para mim, enquanto ela enxugava as mãos no avental. Era o olhar de alguém que via tudo, o tipo de olhar que só Harriet tinha.
— Eu caí na rua e arranhei o joelho — expliquei, com um sorriso forçado para tranquilizá-la.
— Venha cá, vou limpar isso para você antes que infeccione.
Segui Harriet até a pia. A cozinha da escola sempre tinha um cheiro acolhedor, uma mistura de pão assado e especiarias que fazia o ambiente parecer menos frio do que o restante da escola.
Enquanto ela limpava o ferimento com cuidado e aplicava um curativo, observei o relógio antigo pendurado na parede. Harriet era uma das poucas pessoas em quem eu confiava na escola. Ela sempre me chamava de "menina" com uma doçura que fazia com que eu me sentisse vista, como se eu fosse mais que apenas uma estudante invisível na multidão. Ela cuidava e me tratava como eu gostaria que minha mãe me tratasse.
— Está feito. Agora cuide-se, ouviu? — disse Harriet, batendo levemente na minha mão.
— Obrigada, Harriet. — Sorri para ela e saí, indo direto para a biblioteca, que sempre foi meu refúgio. Era o único lugar onde eu podia respirar, longe dos olhares maldosos e comentários cruéis. Lá, o silêncio era respeitado, e os livros eram meus únicos amigos.
Ao entrar naquela sala, o ambiente era familiar e acolhedor, com as prateleiras abarrotadas de livros e a luz suave que filtrava pelas janelas, criando um jogo de sombras no chão. As mesas estavam vazias, exceto por uma em um canto onde sempre me sentava para me esconder do mundo lá fora. A cadeira rangia ligeiramente enquanto me acomodava, ajeitando a saia do uniforme e tentando concentrar minha mente nas páginas à minha frente.
— O que faz por aqui, menina? — perguntou Mila, a bibliotecária, assim que me viu. Ela tinha alguns livros nas mãos, na certa iria devolvê-los às suas respectivas estantes.
— Vim fazer uns trabalhos atrasados — menti.
Na verdade, eu só queria me esconder.
— Pensei que estaria no passeio com o resto da sua turma.
— Minha mãe não me deixou ir — menti novamente. Era mais fácil dizer isso do que explicar, que eu nem me dei ao trabalho de perguntar. Passeios em grupo nunca foram minha praia, e estar cercada por pessoas que só me humilhavam parecia o pior tipo de tortura.
— Que pena — lamentou Mila, acreditando na mentira.
Agradeci com um aceno, depois me levantei e fui para a seção de romances. Meus dedos deslizaram pelos lombos dos livros, parando em um dos meus favoritos. Peguei-o e sentei-me em uma das mesas perto da janela. Enquanto lia, deixei minha mente viajar para outros mundos, onde as protagonistas sempre encontravam seu "feliz para sempre". Era impossível não imaginar se, algum dia, eu também teria o meu.
As palavras pareciam dançar nas páginas sem formar um sentido. Eu pensava em Harriet e em como sua presença, simples e sem expectativas, me fazia sentir que ainda havia algo de bom neste lugar. Cada gesto dela, de preocupação com o meu ferimento até suas palavras amáveis, me lembrava de que ainda havia espaço para compaixão, mesmo em um lugar frio e impessoal.
Respirei fundo, tentando afastar as memórias da manhã, o zumbido das vozes cruéis e a sensação de ser uma sombra no meio de tantas pessoas que não me viam, como se eu fosse uma peça fora de lugar em um quebra-cabeça que nunca se encaixaria. O rosto de minha mãe passou pela minha mente, mas logo o afastei. Não queria sofrer com seu modo frio de me tratar.
Folheei as páginas do livro que estava em minhas mãos, tentando me perder nas palavras, mas o pensamento continuava voltando para a rua onde eu caíra, onde a dor física do ferimento parecia nada perto da dor silenciosa da alma. Eu era a Âmbar, a invisível, a que ninguém se importava, a que caía e ninguém via.
“Será que algum dia alguém vai me ver de verdade?”, pensei, olhando para o curativo improvisado que ainda me dava algum conforto.
Fiquei ali até as 17h, quando a escola fechou. Registrei o empréstimo com Mila, coloquei o livro na mochila e comecei meu caminho de volta para casa.
Quando cheguei, o céu já estava tingido de tons laranja e lilás. Assim que coloquei a mão na maçaneta da porta, meu pai apareceu e, pela expressão em seu rosto, percebi que algo estava errado.
— Onde você estava, Âmbar? — perguntou ele, com o tom duro que eu tanto temia.
— Eu estava na escola, papai — respondi, tentando soar calma.
— Não minta para mim! — gritou, agarrando meu braço com força.
O aperto foi tão forte que senti seus dedos marcando minha pele. Meu coração disparou.
— Não estou mentindo, eu juro! — tentei explicar, enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto.
— Mentira! Sua irmã disse que sua turma teve um passeio hoje. Você acha que pode me enganar? — Ele puxou meu cabelo, me jogando no sofá.
— Sim, eles tiveram um passeio, mas eu não fui. Eu fiquei na escola! — insisti, a voz trêmula de medo.
— Não quero minha filha vagabunda faltando na escola para sair com homens! Se eu souber que está mentindo para mim, eu te mato! Ouviu? Eu te mato! — Ele gritou, cheio de raiva.
Encolhi-me no sofá, chorando ainda mais.
— Desculpe… — sussurrei, sem saber o que mais dizer.
— Cala a boca e vai para o seu quarto!
Corri para o quarto, com o peito apertado e o coração em pedaços. Joguei-me na cama e chorei até que meu irmão me chamou para o jantar.
Depois de comer uma salada rápida — já que estava de dieta —, voltei para o quarto e me deitei, tentando me desligar de tudo. Mas minha mente não me deixava em paz.
Será que Christopher vai mesmo trazer o fone novo amanhã? Pensei, segurando o travesseiro com força. A ideia de que ele pudesse se importar comigo era como uma faísca em meio à escuridão.
— Claro que não, sua boba — murmurei para mim mesma. — Um rapaz lindo e rico como ele não se preocuparia comigo. Ninguém se preocupa.
Virei para o lado, fechando os olhos, enquanto uma lágrima solitária escorria pela minha bochecha.