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CAPÍTULO 4: DESENHOS QUE FALAM

O carro é um sedã preto, discreto, por dentro tudo é couro frio que cheira a produto de limpeza caro. O motorista, o Marcos, é um homem de meia-idade que não fala nada. Me cumprimenta com um aceno de cabeça e fica com os olhos grudados na estrada. O Dante está no banco de trás comigo, mas poderia muito bem estar do outro lado do mundo. Ele está absorto no laptop dele, os dedos batendo suave no teclado iluminado, o rosto uma máscara dura de concentração. A tensão que fica pairando no escritório depois que o Viktor sai parece vir junto, transformada num silêncio pesado, que enche o carro.

Olho pela janela, os prédios de vidro do centro dando lugar a bairros cheios de árvores, casas enormes e muros altos. O contraste com a clínica pública onde a Lara faz os exames é um soco no estômago. Aqui, a doença, a dificuldade, tudo é escondido atrás de fachadas perfeitas. Como a dificuldade da Melissa.

A escola Maple Bear é um campus baixo, moderno, cheio de vidro e área verde. Parece mais um clube de luxo que uma escola. O Dante fecha o laptop com um clique seco e guarda na pasta. Não olha pra mim.

— Lembra — ele diz, a voz baixa mas cortando o silêncio do carro como uma lâmina. — Observa. Anota.

— Sim, senhor Lobo.

Ele sai do carro antes que o Marcos possa abrir a porta. Ajusto meu blazer e sigo ele, mantendo uma distância profissional. O ar é fresco, limpo. Crianças brincam num parque lá atrás, os gritos e risadas parecem vir de outro planeta.

A orientadora, Dona Elisa, é uma mulher simpática de óculos coloridos que nos recebe numa sala aconchegante, com puff no chão e desenhos infantis nas paredes. O sorriso dela é quente quando cumprimenta o Dante, mas tem uma preocupação de verdade nos olhos.

— Senhor Lobo, obrigada por vir. E essa deve ser… — ela me olha, esperando.

— Clara Silva, minha assistente executiva — o Dante completa, a voz neutra. — Ela auxilia na logística da Melissa e está aqui para tomar notas.

Dona Elisa acena, mas o sorriso para mim fica mais reservado. A presença de uma “assistente” numa reunião sobre uma criança claramente deixa ela desconfortável. Sentamos. O Dante na cadeira, eu no puff do lado, com meu caderno e caneta na mão, me sentindo uma fraude completa.

— Bem — a Dona Elisa começa, abrindo uma pasta. — A Melissa é uma criança incrivelmente inteligente. Perceptiva. O desempenho dela, quando ela se engaja, é acima da média. Mas a falta de comunicação verbal é uma barreira enorme. E, ultimamente, a gente tem notado um… recuo.

O Dante fica imóvel, mas a atenção dele é total, absoluta. — Um recuo?

— Ela está mais introspectiva. Passa longos períodos desenhando, mas se recusa a mostrar os desenhos. Ignora ainda mais os colegas. Teve dois episódios na semana passada em que ela se esconde durante o recreio. A gente encontra ela atrás da biblioteca, sozinha… sentada.

A descrição é um soco no meu estômago. Soa familiar. Soa como as ausências da Lara, mas de um jeito diferente. Uma fuga, não uma convulsão.

— Ela se comunica com a senhora? — pergunta Dante, e tem um fio de esperança, quase imperceptível, na voz dele.

Dona Elisa suspira. — Raramente. E quando comunica, são frases curtas, sempre por escrito. Na semana passada, ela me entregou um bilhete. — Ela tira uma folha de papel quadriculado da pasta e desliza pela mesa.

O Dante pega o papel. Eu me inclino para frente, tentando ver. A letra é de criança, grande, desengonçada. Diz: A SENHORA DO JARDIM ESTÁ TRISTE.

O Dante franze a testa. — A senhora do jardim? A jardineira?

— A gente não tem jardineira — a Dona Elisa responde, baixando a voz. — Pergunto pra ela, por escrito, quem é a senhora. Ela não responde. Mas começa a desenhar. — A orientadora tira outra folha. Um desenho a lápis de cor.

O Dante pega o desenho. E, pela primeira vez desde que o conheço, vejo uma emoção crua, sem filtro nenhum, cruzar o rosto dele. É uma mistura de confusão, reconhecimento e um pavor profundo. Ele fica pálido. Branco.

Com um movimento quase imperceptível, ele vira o desenho pra que eu possa ver.

É um retrato tosco, mas inconfundível. Uma mulher de cabelos longos e escuros, com um vestido simples. Ela está sentada num banco de jardim. Não tem rosto, só um borrão onde o rosto devia estar. Mas a postura, o jeito do cabelo… é a Beatriz. Tem que ser.

Mas não é isso que prende a minha atenção. No canto inferior do desenho, atrás da mulher, a Melissa desenha uma forma grande e irregular. Pintada de marrom e verde. Pode ser um arbusto. Mas pra mim, com os olhos treinados para ver padrão em documento de processo, parece outra coisa. Parece a silhueta de um homem. Um homem observando.

— Ela… ela desenha muito a falecida senhora Lobo? — pergunta a Dona Elisa, com cuidado.

O Dante parece se recompor. A máscara de executivo desce de novo, mas os dedos dele estão brancos de tanto apertarem o papel. — De vez em quando. É compreensível.

— Claro, claro — a Dona Elisa diz rápido, mas não parece convencida. — O que preocupa a gente é o isolamento. E a mensagem. “Está triste”. Pode ser a projeção do sentimento dela. A Melissa está triste. E talvez… com raiva.

O Dante levanta os olhos, afiados. — Raiva?

— A incapacidade de processar uma perda tão grande, a ausência da comunicação… pode virar uma raiva direcionada para quem está presente, mas emocionalmente… ausente. — Ela olha direto pro Dante, com uma coragem profissional.

Ele não desvia o olhar, mas uma veia pulsa forte na têmpora dele. O silêncio na sala fica opressivo, pesado. Anoto no meu caderno, minhas palavras são curtas, secas: Recuo social. Desenhos da mãe. “Senhora do jardim triste”. Possível raiva/ausência paterna.

— O que a senhora sugere? — A voz do Dante está controlada, mas é o controle de uma represa prestes a estourar.

— Intensificar a terapia. Talvez uma abordagem mais focada na comunicação não-verbal. E… — ela hesita. — E talvez encontrar formas da Melissa sentir a sua presença de um jeito mais… qualitativo, senhor Lobo. Não só logístico.

É uma crítica delicada. Uma facada de veludo. O Dante recebe em silêncio. Ele dobra o desenho com um cuidado exagerado e guarda no bolso interno do terno.

— Agradeço o seu tempo e a sua dedicação, Dona Elisa. Vou considerar tudo que é dito. A Clara vai fazer o acompanhamento com a senhora para agendar as sessões extras.

A reunião termina. Saímos. O ar livre parece mais gelado agora. Caminhamos em silêncio de volta pro carro. A imagem do desenho queima na minha mente. A mulher sem rosto. A figura escondida atrás dela. A tristeza que transborda do papel de uma criança de sete anos.

Dentro do carro, antes que o Dante possa dar a ordem pro Marcos, ele se vira pra mim. Os olhos dele são dois poços de uma agitação contida, violenta.

— O que você anotou? — pergunta, a voz um sussurro áspero.

Abro meu caderno e leio minhas anotações neutras em voz alta. Ele ouve, o olhar fixo no vazio à frente.

— E o desenho? — ele pergunta quando termino — O que você vê no desenho?

A pergunta é uma armadilha. Ele está testando a minha percepção. A minha lealdade.

— Vejo uma mulher que pode ser a senhora Lobo. Sentada. E… uma forma no fundo. Talvez uma árvore.

Ele me observa por um longo momento. Parece decidir alguma coisa.

— Não era uma árvore — ele diz, voltando a olhar pela janela. — Era um homem. A Melissa vê homens onde não devia ter homem.

O carro começa a se mover. E eu fico sentada, o caderno aberto no meu colo, com a sensação terrível, certa, de que acabo de ler a primeira linha de uma história que ninguém devia ter escrito. Uma história desenhada por uma criança que não fala, sobre uma mãe triste e um homem escondido. E, de algum jeito, eu sei que essa história e a palavra Lúmen estão ligadas. Amarradas pelo mesmo fio de medo.

E que o Dante Lobo, meu empregador, meu salvador financeiro, está com medo. Não da doença da filha.

Mas da verdade que ela pode estar desenhando.

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