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CAPÍTULO 5: A FISSURA

A luz do computador é o único ponto vivo no meu cubículo às 19h47. O andar executivo é um deserto escuro e silencioso. O zumbido do ar-condicionado baixa para um sussurro noturno, fantasmagórico. Eu estou aqui porque o Dante me envia um e-mail às 18h59, quando eu já estou com a bolsa na mão pra ir embora. Preciso de um levantamento de todos os documentos públicos da Anvisa referentes ao registro e pós-registro do Lúmen. Relatório conciso amanhã às 8h. A mensagem não pede. Ordena. E por trás das palavras, a clara mensagem de que eu devo começar agora. Na hora.

Lúmen. A palavra agora tem um eco sujo, pesado. O último sussurro da Beatriz. O remédio que faz o Viktor sorrir com aquele ar de dono do mundo. O projeto que faz a mandíbula do Dante ficar dura de tensão.

Meus dedos voam no teclado. Acesso o portal da Anvisa, um labirinto de processos e números. O Lúmen, ou Lumatec, é um fármaco neurotrófico. Indicado para doenças neurológicas degenerativas raras. “Promove regeneração de bainhas de mielina”, diz o resumo técnico aprovado. Uma linguagem fria para uma promessa que queima: frear o que é incurável.

Encontro o registro principal. Aprovado em tempo recorde, dois anos atrás. Os dados dos ensaios clínicos da Fase III estão lá, em arquivos P*F protegidos por senha corporativa. Minhas credenciais de “Assistente Executiva Nível 1” não abrem. Só vejo os resumos: Eficácia comprovada em 78% dos casos. Perfil de segurança favorável. Eventos adversos leves e transitórios.

Parece perfeito. Tão perfeito que dá medo. Então por que tenho a sensação de estar vasculhando os arquivos de um crime?

Abro uma nova aba. Pesquiso notícias sobre o Lúmen. Tem poucas. Um comunicado de imprensa da Lobo Holding, falando de “marco para medicina nacional”. Um artigo técnico numa revista de nicho, assinado pelo Diretor de Pesquisa, Dr. Renato Farias, e pelo… Viktor Salles. O nome do Dante não aparece em lugar nenhum.

Após algumas pesquisas, com uns termos mais gerais, algo aparece. Um fórum de pacientes com doenças raras. Um tópico, de oito meses atrás, com o título: Alguém no Brasil usando Lumatec/Lúmen? Clique.

A primeira mensagem é de uma mulher chamada “MãeEmLuta”. Meu filho começou o Lúmen há 3 meses pelo protocolo compassivo. No começo, parecia estável. Nas últimas semanas, desenvolveu tremores fortes e episódios de agitação incontrolável. O médico da Lobo diz que é da doença, mas não era assim antes. Alguém com experiência parecida?

Tem três respostas. Duas são só apoio, genérico. A terceira, de um usuário “AnonBio”, diz: Cuidado com os dados de segurança. Não são o que parecem. Procure um neuro independente.

A mensagem do “AnonBio” é de cinco meses atrás. Ele nunca mais posta. O tópico morre ali.

Salvo o link. Meu coração b**e mais forte, mais rápido. É provavelmente nada. Paranoia de uma mãe desesperada e teoria maluca de um estranho na internet. Mas é uma fissura. Uma rachadinha minúscula no tal “perfil de segurança favorável”.

O som de passos no corredor me faz pular na cadeira. Quem diabos está aqui a essa hora? Fecho a aba do navegador num susto, deixando só o portal da Anvisa na tela.

A silhueta que aparece na porta de vidro fosco não é da Heloísa, nem do zelador. É alta, imponente. A porta se abre sem que ele bata.

Viktor Salles entra no meu cubículo.

Ele está sem o paletó, as mangas da camisa social branca arregaçadas, a gravata solta. Parece ter vindo de uma reunião descontraída, mas os olhos azuis dele estão alertas, brilhando no escuro como os de um gato.

— Clara! Trabalhando até tarde. Gosto de ver essa dedicação. — O sorriso dele é largo, mas não chega perto dos olhos. Ele pousa as mãos no encosto da cadeira de visitas, mas não se senta. Só ocupa o espaço, enchendo o cubículo com a presença dele.

— Senhor Salles. Boa noite. O senhor Lobo pede um levantamento urgente. — Minha voz sai mais firme do que eu espero.

— O Dante e as urgências dele. — Ele balança a cabeça, num gesto de camaradagem que parece falso, forçado. — Sempre pressionando a equipe além do limite. Você não pode deixar ele te explorar, minha cara. Equilíbrio é a chave de tudo.

Tem alguma coisa na simpatia dele que soa como uma ameaça. Uma advertência por baixo do pano.

— É um prazer poder contribuir desde o começo, — digo, mantendo o tom profissional, robótico.

— Desde o começo… sim. — Os olhos dele percorrem minha mesa, pousam na tela do computador, no logo da Anvisa. — Ah, o Lúmen. Claro. O nosso carro-chefe. Uma maravilha da ciência, não acha?

— Os dados parecem muito promissores, — respondo, escolhendo cada palavra como se fosse uma mina terrestre.

— São promissores. São transformadores. — Ele se inclina pra frente, baixando a voz como se fosse me contar um segredo. — Sabe, Clara, esse medicamento vai salvar milhares de vidas. É o tipo de legado que faz tudo valer a pena. Todo sacrifício. — A palavra sacrifício fica pairando no ar, pesada, suja. — O Dante… ele tem visão. Mas às vezes é cauteloso demais. Muito preso ao passado. Às vezes, pra fazer uma omelete, tem que quebrar uns ovos, entende?

Ele sorri. E aquele sorriso é genuíno. E é a coisa mais assustadora que eu já vi. É o sorriso de um homem que já quebrou muitos, muitos ovos, e nunca perde uma noite de sono por causa disso.

— Minha função é apoiar a visão do senhor Lobo, — falo, neutra, uma estátua de gelo.

— Claro, claro. Lealdade admirável. — Ele se endireita, dando uma batidinha no encosto da cadeira. — Só tome cuidado pra não se perder nos detalhes burocráticos. O Lúmen é maior que qualquer documento. É sobre o futuro. E o futuro… bem, o futuro pertence a quem tem coragem de construí-lo. Bom trabalho, Clara. Não fique até muito tarde.

Ele dá meia-volta e sai. Os passos dele ecoam no corredor silencioso até sumirem completamente.

Fico imóvel por um minuto inteiro, tentando controlar a respiração. O cheiro do perfume dele — algo amadeirado, caro, invasivo — ainda está no ar. A visita não é por acaso. Ele vem ver o que estou fazendo. Vem me dar um aviso. Ou fazer uma oferta de aliança.

Minhas mãos tremem um pouco quando reabro o navegador, no modo de navegação privativa agora. Volto ao fórum. Imprimo a página com a mensagem da “MãeEmLuta” e do “AnonBio”. Dobro o papel com cuidado e guardo na parte mais funda, mais escondida da minha bolsa.

Olho pra tela de novo, pros dados oficiais, limpos e frios do Lúmen. E agora vejo duas realidades, uma em cima da outra. A realidade do registro, dos comunicados, do sorriso do Viktor. E a realidade do sussurro de uma mulher morta, do desenho assustador de uma criança, de um fórum obscuro e de um homem que fala em quebrar ovos sem culpa.

O Dante me pede um relatório conciso. Ele quer os fatos públicos. Mas os fatos, agora, parecem uma mentira bonita. Uma mentira perigosa.

Fechei todos os programas. O andar está escuro, só as luzes de emergência fazem sombras longas e tortas. Ao passar pelo escritório do Dante, vejo uma fina linha de luz vazando por baixo da porta. Ele ainda está lá.

Penso em bater. Em contar da visita do Viktor. Em mostrar o print do fórum. Mas meus pés não se mexem. O contrato de confidencialidade, aquele que assinei sem ler cada linha, parece um colar de ferro apertando meu pescoço. Lealdade à empresa. Silêncio total. O que será que o Dante acha de eu fuçar o fórum de pacientes na internet?

Ele me contrata pelo meu desespero, pela minha previsibilidade. Não pela minha curiosidade.

Viro as costas para aquela fresta de luz e caminho até o elevador. O peso na minha bolsa, o peso daquele papel impresso, parece enorme, como se fosse de chumbo.

No carro de aplicativo, a caminho do apartamento minúsculo que divido com a Lara, olho pela janela para a cidade iluminada. Penso na senhora do jardim, triste. Penso na figura de um homem escondido atrás dela. Penso no Viktor Salles, e na sensação clara, certa, que tenho: aquele homem não é um sócio. É um rival. Um inimigo. E o Lúmen é o campo de batalha.

E eu, sem querer, sem planejar, acabo de pisar bem no meio dele.

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