Mundo de ficçãoIniciar sessãoA pasta de couro que me entregam pesa como chumbo nos meus braços. Não é o peso do tablet, do crachá com a minha foto sorrindo uma mentira, ou do caderno de capa dura. É o peso do que ela significa. A chave para um mundo travado. A ferramenta da minha própria gaiola dourada.
Meu primeiro dia na Lobo Holding Farmacêutica. O saguão é um templo do gelo e do bom gosto. Mármore branco, tudo em linhas retas, uma escultura de metal retorcido que parece uma molécula doente. O silêncio é espesso, sagrado, só quebrado pelo eco baixo de salto alto no chão brilhante e pelo zumbido constante do ar-condicionado. As pessoas que passam têm roupas perfeitas e rostos neutros. Ninguém solta uma risada. Ninguém fala alto. Parece que a seriedade do negócio — mexer com vida, com doença, com saúde — exige um respeito mudo, constante.
A recepcionista, uma mulher com o cabelo preso num coque tão apertado que deve doer a cabeça, me entrega o crachá com um sorriso que não chega perto dos olhos. — O elevador privativo é aquele à direita, senhorita Silva. O andar executivo.
O elevador sobe sem fazer barulho. Meu reflexo no aço polido das portas me encara: cabelo preso num rabo de cavalo baixo e apertado, blazer cinza, saia preta. O uniforme da eficiência invisível. Tento disfarçar as olheiras, que são fundas e roxas depois de uma noite em claro. A Lara teve uma crise mais longa ontem à noite. Fica parada, olhando para um ponto na parede por quase um minuto inteiro, totalmente fora do alcance. O medo que eu sinto — um gelo afiado cravado no peito — ainda está entranhado nos meus ossos. O salário do Dante Lobo, aquele número que não parece real, é a única coisa que segura o pânico, que o mantém preso lá no fundo da garganta.
As portas se abrem direto numa ante sala grande. Dessa vez, tem uma secretária de verdade, uma mulher na casa dos cinquenta, com óculos de aro fino e uns olhos que me avaliam, me julgam e me arquivam em meio segundo. Ela se levanta.
— Senhorita Silva. Eu sou a Heloísa, supervisora do escritório executivo. Vou ser sua orientadora nos procedimentos. — A voz dela é seca, limpa, sem um pingo de calor. — A sua sala é aquela. — Ela aponta para uma porta à esquerda daquela entrada enorme de madeira escura que deve ser o escritório do Dante. — O senhor Lobo está em conferência. Você deve se familiarizar com os sistemas. Suas credenciais estão no tablet. O manual de protocolo, na área de trabalho.
A minha sala. É um cubículo de vidro fosco, com vista para a cidade, mas o vidro é tratado, você não vê nada de dentro pra fora. Uma mesa limpa demais, um computador tudo-em-um, uma cadeira ergonômica. Tão estéril quanto a sala da entrevista. Quando ligo o computador, a tela de login aparece com o fundo corporativo: o logo da Lobo, um lobo estilizado de perfil, em cima de uma dupla hélice de DNA. Um calafrio corre pela minha espinha.
O manual de protocolo tem cento e vinte páginas. Cobre desde o jeito certo de começar um e-mail para um membro do conselho até o tom de voz que você tem que usar no telefone. Passo as páginas, uma sensação de sufoco crescendo dentro de mim. Tudo é controle. Tudo é regra. É o oposto exato do caos absoluto que é a minha vida lá fora.
Meu telefone pessoal vibra silencioso no bolso. É uma mensagem do Dr. Elias. Resultados do EEG confirmam atividade epiléptica focal. Precisamos conversar sobre o início do Neurovax. Podemos marcar para amanhã?
O ar some dos meus pulmões. Confirmam. A palavra final, científica, que não dá margem. O Neurovax deixa de ser uma possibilidade lá no futuro e vira uma necessidade agora. E a necessidade tem um preço. Olho pra tela do computador, pro lobo e a dupla hélice. Este é o lugar que vai pagar a conta.
A grande porta de madeira se abre. Dante Lobo sai, seguido por um homem que eu nunca vejo. O homem é mais velho, veste um terno impecável, mas tem algo na postura… uma confiança relaxada, quase descontraída, que b**e de frente com a rigidez do Dante. O sorriso dele é largo, fácil, mas os olhos, de um azul claro e penetrante, passam por cima de mim como se eu fosse um móvel novo.
— …então fechamos a aquisição dos lotes até sexta, Viktor — diz o Dante, a voz ainda mais grave do que eu lembro.
— Claro, claro. Deixa comigo, Dante. Você sabe que pode contar comigo pra tudo que é… sensível. — O homem, o Viktor, põe a mão no ombro do Dante num gesto que poderia ser de amizade, mas que parece possessivo, de dono. O Dante não se encolhe, mas o corpo dele parece ficar ainda mais rígido, uma estátua de gelo.
O Viktor finalmente me nota atrás do vidro fosco. O sorriso não muda, mas os olhos azuis se fixam em mim, escaneando, pesando. — Ah. A nova aquisição. A Heloísa me avisa. Clara, não é? Seja muito bem-vinda à família Lobo. — A palavra família soa falsa, engraçada, na boca dele.
— Obrigada, senhor… — deixo a frase no ar.
— Salles. Viktor Salles. Sócio e Diretor de Operações. — Ele estende a mão. O aperto é firme, forte demais, e a pele é estranhamente lisa, sem textura. — Espero que esteja se ambientando. A gente precisa de sangue novo, não é, Dante? Alguém com… energia.
O Dante não responde. O olhar dele está em mim, mas é diferente daquele do hospital. É puramente profissional, impessoal, como se eu fosse uma extensão do computador. — Senhorita Silva. Você tem acesso à minha agenda. Prepare um resumo das minhas reuniões de amanhã até as 16h. Envie para minha aprovação. — Vira-se pro Viktor. — Precisamos revisar os números do Lúmen antes da reunião com a Anvisa.
A palavra Lúmen cai no ar da sala como um tijolo. É a mesma palavra. A última palavra da Beatriz. Um choque de gelo me percorre toda.
O Viktor ri, um som suave que arrepia. — Sempre trabalhando. É por isso que você é o CEO. Até logo, Dante. — Ele acena com a cabeça pra mim, o sorriso ainda colado no rosto, e some em direção ao elevador.
O Dante fica parado um momento, olhando para a porta fechada. O perfil dele está tenso, a mandíbula cerrada. Então, ele vira pra mim.
— Você veja a minha agenda. — Não é uma pergunta.
— Sim, senhor Lobo. Estou acessando agora.
— Tenho um compromisso particular. Às 15h30. A escola da Melissa. Reunião com a orientadora. Você vai comigo.
A ordem é dada sem deixar brecha para perguntas. Mas não é só uma ordem. É o primeiro ato de verdade do nosso pacto. A tal função híbrida.
— Entendido. — Minha voz sai estranha, distante.
— Use o carro da empresa. O motorista, o Marcos, já sabe. Esteja na garagem às 15h15. — Ele faz uma pausa, os olhos escuros parecem furar o vidro fosco que me separa dele. — A orientadora… ela pode fazer perguntas. Sobre a dinâmica familiar. Você observa. Você anota. Você não opina, a menos que eu te oriente. Tá claro?
Ele me ensina a mentir. Ou, no mínimo, a confirmar uma versão da verdade que ele vai criar. O gelo do medo se forma no meu estômago, mas eu aceno em confirmação.
— Perfeitamente claro, senhor Lobo.
Ele parece satisfeito, ou pelo menos não descontente. Vira-se e some dentro do escritório dele, fechando a grande porta atrás de si.
Sinto as pernas amolecerem e me deixo cair na cadeira. Respiro fundo, tentando mandar embora a névoa de ansiedade que sobe na minha garganta. Olho pro computador, para uma agenda cheia de compromissos e siglas que eu não entendo. No meio de tudo, um lembrete simples: 15:30 – Escola Maple Bear – Reunião Pedagógica (M. Lobo).
Pego o tablet corporativo. Tem uma dezena de e-mails não lidos, todos com URGENTE no assunto. Mas a minha mente não consegue sair de dois pontos: o sorriso fácil e os olhos frios do Viktor Salles, e a palavra Lúmen, saindo da boca do Dante com um peso, uma carga, que eu não consigo decifrar.
E, claro, a reunião que está chegando. O meu primeiro mergulho de cabeça no silêncio da Melissa Lobo. No desespero particular do meu chefe.
Abro o manual de protocolo de novo. Procuro por qualquer menção a “assuntos da família” ou “acompanhamento pessoal”. Não tem. Esse território não está no mapa. Eu estou sozinha.
E, de algum jeito, eu sei que é exatamente assim que o Dante Lobo quer que eu me sinta.







