Os mosquitos não me dão trégua. Zumbem nos meus ouvidos como vozes demoníacas em oração contínua. Já não sinto suas picadas. A pele calejada, marcada por sol, correntes e abandono, não reage mais. Mas o som... esse som me corrói.
Viro de um lado para o outro na cama improvisada, o tecido puído da fronha rasgada mal cobre meu corpo, que só quer desaparecer. O sol já nasceu. Eu sei disso. O calor é abrasador, implacável, sufocante. Mas o que posso fazer aqui? Neste lugar esquecido por Deus e pelos homens, onde a única paisagem visível é a madeira velha da janela pregada com dois sarrafos, como se tentassem impedir a liberdade de entrar.
Ontem à noite, quando Geraldo se foi, só a lua ousou iluminar o breu. Não consegui ver seu rosto ao partir - apenas o som das suas botas no chão seco e o baque da tranca ecoando nas paredes. O resto foi silêncio, o mesmo que me acompanha há dez anos.
Dez anos.
Dez anos de escravidão disfarçada, de prisões invisíveis. Dez anos da minha vida arrancados por um homem que se dizia nosso padrasto, mas que não passava de um monstro vestido de gente.
Ele dizia ser rico. Talvez fosse. Mas suas mãos estavam sujas de sangue, e sua alma, apodrecida. A esposa e a filha pagaram com a vida por ousarem resistir. As amantes, as outras mulheres, todas tiveram o mesmo destino. Era um assassino. Um criminoso frio que fugiu da justiça e se escondeu no interior do Mato Grosso, levando com ele a minha mãe - a próxima vítima. Quando ela desapareceu, ficamos. E ele nos acorrentou à sua loucura.
Meu estômago ronca alto, arranhando as paredes ocas do meu corpo. Cantar não me acalma mais. As melodias que inventei para enganar a dor já não funcionam. A esperança é uma palavra que não faz mais sentido.
- Moça... tá me ouvindo?
A voz rouca e inesperada me arranca do torpor. Pisquei várias vezes. Era real? Ou mais uma miragem cruel criada pela minha mente cansada?
- Irmã! - Kauã. Aquele som me puxou do abismo com força.
- Nós conseguimos - disse Lucas, sua voz trêmula tentando manter a firmeza. As emoções contidas se escondiam por trás do seu olhar endurecido.
Só nós três sabemos o que passamos. Quantas tentativas frustradas. Quantas noites esperando por uma salvação que nunca vinha. E a pior de todas foi quando buscamos ajuda no lugar mais óbvio: a delegacia. Mas o delegado... aquele homem nojento... ele exigiu o meu corpo em troca do silêncio. Fui forçada. Violada por alguém que jurava servir à justiça.
- Irmã?
Eu o ouvia, mas não conseguia responder. Meu corpo estava ali, mas minha mente, não. Ela se escondia onde fosse mais seguro, onde as lembranças eram sombras e não facas afiadas.
- Olha pra mim, Esther... acabou. Nós vamos sair daqui. Eu preciso que você volte... agora.
Kauã sabia. Sabia do meu vazio. Sabia como, às vezes, eu me apagava. Como meu corpo desligava, como se fosse o único jeito de sobreviver. E por mais que eu gritasse por dentro, por mais que implorasse para reagir, ficava presa em mim mesma.
- Ligue pro Igor. Chame a força máxima da segurança. O desgraçado deve ter fugido. Eu quero ele. Vivo.
A voz que bradou essa ordem me fez estremecer. Era firme, crua. Uma autoridade que cortava o ar. Olhei em sua direção. Um homem loiro acenou e saiu sem questionar.
Não sabia se era real. Tudo parecia um sonho quebrado. Ouvi passos se aproximando. A porta foi aberta em algum momento, mas só percebi quando aquele homem entrou.
E então vi.
Aqueles olhos. Um mar profundo, azul-piscina, me encarando com intensidade. Por um instante, tudo sumiu: os outros rostos, o calor, a dor. Ele era uma miragem que minha mente cansada criou ou... talvez fosse minha salvação.
Alto. Másculo. A mandíbula desenhada como uma escultura viva. E a boca... meu Deus... se um dia eu a provasse, estaria perdida.
Eles falavam algo. Mas eu só ouvia o silêncio entre os nossos olhares.
Com muito esforço, desloquei o olhar para outro homem loiro. Era bonito, sim, mas não causava o mesmo efeito em mim. Aquele primeiro... era outra coisa. Era caos e alívio. Era fome e paz.
A fúria que queimava em seus olhos o denunciava. Ele puxava os próprios cabelos, como se se punisse por algo. E mesmo assim, minha atenção só crescia.
- O senhor... consegue tirar isso? - Lucas apontou para as correntes nos meus tornozelos.
- Breno, vá até a casa com um deles. Deve haver algo lá para quebrar isso.
A voz do homem bonito era grave, firme, mas com algo de compaixão. E ainda assim, havia nojo em seu semblante ao olhar para mim - não de mim, mas da minha condição. Da sujeira. Do que fizeram comigo.
Fiquei imóvel, sentada no chão frio, como um animal ferido. Meu corpo sabia que a liberdade estava próxima. Mas o medo era maior. E se fosse mais uma mentira? E se tudo desse errado? E se... e se ninguém nos quisesse?
Meus pais nunca disseram de onde vieram. Para eles, o passado não importava. Mas agora... agora faz falta. Estamos sozinhos no mundo.
Permaneci em silêncio. O homem ficou ao meu lado, junto de Kauã. Ele se agachou.
- Vou ver o tamanho do estrago.
Suas mãos calejadas tocaram meu tornozelo com uma delicadeza que me desmontou. Doeu, claro. Mas havia algo mais naquele toque... algo que meu corpo não deveria aceitar, mas aceitou.
Depois de tudo, meu corpo deveria ter nojo de qualquer homem. Mas ali... naquele gesto... havia calor. Cuidado. Respeito.
Minha boca ressecada se entreabriu, soltando o ar preso no peito. A respiração dele tocou meus lábios. Era fresca, como hortelã. Como vida.
- Vou cuidar de você. E dos seus irmãos.
Ele ainda não disse seu nome. Não precisava. Porque, no fundo, minha alma reconheceu algo nele. Talvez fosse loucura. Talvez fosse esperança. Mas, pela primeira vez em anos, eu quis acreditar.
Ele estava ali. Perto o bastante para ver minha dor. E eu, tão perto de desmoronar, me agarrava ao único fio de luz naquela escuridão.
E se ele for mesmo meu herói?
E se...?