Capítulo 06

A estrada que nos conduzia era um desafio à sanidade - lamacenta, esburacada, como se a própria terra repelisse qualquer tentativa de ser trilhada. O jeep rangia, tossia, mas seguia. Cada buraco parecia um golpe, cada solavanco, uma provocação ao nosso propósito. E eu não recuaria.

Tínhamos o endereço. Um papel amassado com a caligrafia apressada do homem de confiança do meu pai, e uma foto amarelada de uma casa de madeira no meio do nada. Seguíamos por fé e instinto, mais pelo segundo.

A noite anterior tinha sido um pesadelo a céu aberto. A insônia me mastigou por horas, e agora, o sol nascendo não trazia alívio algum. Sentia-me drenado. Como se todas as partículas de alegria tivessem evaporado, deixando um vazio dolorido onde antes havia ânimo. Estava ali por um motivo, mas o motivo me comia vivo.

- Merda... Espero que isso ao menos nos renda lucro. - Breno, meu primo, espantava mosquitos com mais raiva que eficácia. - Malditos insetos, nem o repelente funciona!

Ele era alto, loiro e teimoso. Um homem da cidade em meio à selvageria. Coçava-se como um condenado, praguejava como um marinheiro. Mas aguentaria. Ele sabia o que me motivava. E quem me conhece de verdade, não ousa ficar no caminho.

Continuei dirigindo em silêncio. O cansaço me corroía. Meu humor era um campo minado, prestes a explodir a cada nova lembrança, a cada pensamento desconexo. Desde que tudo aconteceu, a sensação de que algo estava errado não me abandonava. Era mais que paranoia. Era um aviso.

Depois de quase duas horas de estrada tortuosa, avistamos os lagos. Cercados por araucárias imponentes, era impossível confundir: estávamos no lugar certo. A natureza parecia pulsar ao nosso redor, viva, selvagem, indiferente à presença humana. De longe, uma cachoeira cortava a mata como um fio de prata. Avançamos.

A trilha estreita nos levou até uma cerca velha, reformada às pressas, como quem tenta esconder a podridão atrás de verniz. Dois garotos, magros demais para a idade, trabalhavam sob o sol escaldante, carpindo a terra como pequenos operários invisíveis. Assim que estacionei o jeep diante da casa de madeira da fotografia, a porta se abriu. E então ele apareceu.

Geraldo.

Segurava uma lata de cerveja, como se fosse extensão natural da mão. Os meninos nem ousaram parar o trabalho. Aquilo me bastou. Os privilégios não eram deles, estavam claramente destinados ao padrasto beberrão.

Breno me lançou um olhar. O mesmo de sempre. Aquele olhar que dizia: "tem merda aqui". E havia. Eu sentia. E desde que a vida me arrancou à força tudo o que me importava, meus sentidos se aguçaram. A dor forjou uma espécie de radar interno que me avisava - e agora, ele apitava como um alarme desesperado.

Meses buscando por respostas. Por ela. Por justiça. Meses sendo sugado pelo abismo. E mesmo com a terapia, jamais consegui confessar tudo o que fiz. O que fui capaz de fazer. Se falasse em voz alta, seria preso.

- Por que sinto uma vontade absurda de socar a cara desse cara? - murmurou Breno.

- Você não é o único.

Geraldo se aproximou, o "bom dia" carregado de um nervosismo mal disfarçado.

- Os senhores... querem ver o quê primeiro? - perguntou, tentando soar prestativo.

- Vamos para o oeste. As cachoeiras lá são lindas. - A voz fina e hesitante de um dos meninos me surpreendeu. Era o mais calmo, com olhos que pareciam querer falar muito mais do que a boca permitia. Algo naquele garoto me prendeu. Um tipo de atenção que não se explica, só se sente.

- Cala a boca, moleque fofoqueiro! Vai trabalhar! - gritou Geraldo, o timbre seco e autoritário. A dureza na voz entregava mais do que ele gostaria.

- Eu acho uma ótima ideia. - disse o outro menino, encorajado, ainda que com cautela. E foi nesse instante que percebi: eram gêmeos. Não idênticos, mas quase. Como duas versões opostas da mesma essência.

- Podemos deixar as cachoeiras para o final, talvez um mergulho. - comentei, tentando aliviar o ambiente. Trazia sempre uma muda de roupa na maleta. Prevenção era minha maior virtude.

- Ótima ideia, senhor! - Geraldo pareceu se animar demais. O que, claro, só aumentou meu alerta.

- Com esse calor, um banho de cachoeira não me parece nada mal. - completei, observando os meninos trocarem olhares silenciosos, antes de voltarem ao trabalho sob o olhar de reprovação do padrasto.

Seguimos mata adentro. O morro revelava um espetáculo silencioso. A paisagem se descortinava como um quadro vivo - hectares de verde, céu limpo, um cheiro de terra úmida que parecia limpar os pulmões. Ali, mesmo em meio ao desconhecido, havia uma paz temporária.

Deixei Breno com o homem, discutindo sobre solo e possibilidades de cultivo. Eu precisava me afastar. Precisava ver, sentir, perceber além do óbvio. E Geraldo, notoriamente, era bom em manipular o óbvio.

Mais tarde, ele nos ofereceu almoço. Educadamente, recusamos. A esta altura da vida, já aprendi que aceitar comida de estranho em lugar isolado era estratégia para virar estatística. Insisti para que os meninos nos acompanhassem até o lado oeste. Afinal, a ideia fora deles.

- Chame seus enteados. - ordenei.

- Posso levá-los. Essas matas são perigosas. E longe... - Geraldo tentava manter o controle da situação. Tentava muito.

- Quero que chame os meninos. - repeti, firme, frio, sem rodeios. A tensão nos meus músculos quase saltava para fora da pele. Sentia a veia do pescoço latejar.

Ele obedeceu. Demorou mais do que o necessário. Quando os garotos apareceram, vinham com olhos ansiosos e expressão dura. Antes que eu dissesse algo, Geraldo tentou seguir conosco.

- Vou junto. Não confio que esses moleques conheçam bem a região.

- Deveriam, não? Cresceram aqui. - retruquei, cínico. Queria falar com eles a sós. Mas não seria possível se ele fosse, e muito relutante ordenei que fosse na frente baixando os matos que brigavam por espaço.

O mais calmo deles não demorou a se pronunciar. A voz era baixa, mas carregava desespero contido.

- O senhor precisa nos ajudar.

- Em quê, exatamente? - perguntei, atento a cada inflexão.

- Nossa irmã. Ele a mantém presa. Com correntes. Ele... não é quem parece ser. - O garoto hesitou. Estava assustado, mas determinado.

- Onde ela está? - Meu peito pesou. A simples menção já bastava para reacender todas as brasas que julguei apagadas.

- Não sabemos exatamente... mas vimos uma cabana. Ele levou ela ontem à noite, logo que voltamos da cidade.

Breno apenas observava, mas eu via nos olhos dele o mesmo brilho que habitava os meus. Instinto. Fúria.

- Nos leve até lá. - ordenei.

- A mata cresceu... mas vamos tentar achar. - disse o mais nervoso, ainda olhando para os lados, como se temesse ser ouvido.

O outro, que até então se mantinha em silêncio, perguntou:

- O que vai fazer com o nosso padrasto?

Sua voz era mais firme que a do irmão. Mais madura. E muito mais ferida.

- Se tudo isso for verdade... vocês não vão querer saber. - respondi, com raiva demais para disfarçar.

- Talvez a gente queira, sim. O senhor não sabe o que passamos nas mãos daquele monstro. - A dor do garoto transbordou. E eu soube, ali, sem dúvida, que tudo era real. Que havia alguém presa. E que havia demônios maiores que todos os meus reunidos naquela casa miserável.

E agora... eles eram meus inimigos também.

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