Quando meus irmãos atravessaram a porta, algo dentro de mim se acalmou - não houve frustração, tampouco medo. Seus rostos escondiam sorrisos, cúmplices de um plano que, mesmo não revelado, incendiava uma centelha de esperança no meu peito. Conhecia aquelas mentes inquietas; eles sempre encontravam um jeito.
- Escrava. Sua vadia imunda. Fez a cabeça desses moleques pra fugirem de novo, não foi?
A voz dele cortou o ar como um chicote. Mas o medo... esse já não me alcançava mais. Anos dentro daquela casa velha de madeira tinham me anestesiado. Vi horrores que não se descrevem. Sonhos mortos a cada esquina da memória. Cenas gravadas a fogo nos corredores da alma.
- Ela não fez nada, seu verme! - Lucas, sempre impulsivo, nunca sabia a hora de calar.
- Vão pra fora! - o monstro rugiu, olhos faiscando de ira. - Vão dormir no mato hoje, ingratos! Tenho mais o que fazer. SUMAM DAQUI!
Lucas tentou revidar, mas Kauã, como sempre, o conteve. Antes de sair, ele me lançou um olhar doce - o tipo de olhar que me fazia lembrar que, apesar do inferno, eu ainda não estava sozinha.
Ficamos a sós. Eu e ele.
- Agora você, escrava... vai pagar por ser atrevida. E depois... vai pra um lugar especial.
- O que vai fazer com os meus irmãos? - As palavras escaparam, mesmo com o terror apertando a garganta.
- Não mandei abrir a boca!
Geraldo avançou. Um homem de estatura imponente, pele marcada pelo tempo e pelos vícios. Seus olhos ardiam de crueldade e desprezo. Eu, frágil, quebrada em tantas partes que já não sabia onde começava a dor e terminava o vazio, nada podia fazer.
Ele me jogou na cama. A velha cama que restara depois de queimar a minha como punição. Restaram o beliche dos gêmeos e a de mamãe, agora transformada em palco de horrores.
Fechei os olhos. Desliguei. Fiz o que sempre fazia: fugi para dentro de mim. Para o tempo em que papai, Márcio, ainda estava vivo. Um homem bom, trabalhador, que tratava mamãe com respeito. A lembrança era fraca, como uma brisa distante. Mas era tudo o que me restava.
No mundo real, meu corpo era mais uma vez invadido. Mas minha alma... minha alma estava longe.
Quando ele terminou, deixou mais uma ameaça no ar, como se suas palavras não fossem tão nocivas quanto seus atos.
- Vai tomar banho. Logo levo você pro lugar novo.
Me levantei. A dor era constante, mas já não surpreendia. Caminhei até o banheiro - ou o que restava dele. A porta, quebrada há anos, deixava à mostra partes do meu corpo. Mais um castigo. Mais uma humilhação.
Deixei que algumas lágrimas caíssem no banho. Não muitas. O choro já não vinha fácil. Dez anos de prisão emocional e física me roubaram isso também. Me perguntei se Deus nos via. Se Ele sabia que ainda existíamos ali. Não por desespero, mas por constatar que talvez estivéssemos mesmo esquecidos.
Sequei meus cabelos longos, usando os dedos para desembaraçá-los com a ajuda da babosa que meus irmãos traziam escondidos. À noite, jantamos em silêncio. Como sempre. No chão, sem talheres, sem dignidade. Mas com afeto - porque ali, no olhar dos meus irmãos, ainda havia amor.
- Um homem vem amanhã. O dono dessas terras. - Kauã cochichou.
Meu coração acelerou. Um nome sem rosto, mas que podia significar mudança. Liberdade. Ou, ao menos, um sopro de algo novo.
- Seja quem for, peçam ajuda. Prometam isso pra mim. Qualquer coisa é melhor que viver com esse monstro.
- A gente vai dar um jeito, mana. - Lucas sorriu. Aquele sorriso que me lembrava que a luz ainda existia.
Mais tarde, Geraldo desparafusou as correntes do meu tornozelo. Minhas mãos tremiam. O peito parecia explodir. O ar gelado tocou minha pele como um renascimento. Depois de oito anos presa, eu voltava a sentir o vento no rosto.
Fui arrastada por entre o mato. Os galhos arranhavam os meus pés já feridos. Após uma caminhada longa, avistei uma cabana isolada. Nova. Construída, com certeza, depois da minha prisão.
- Vai ficar aqui. E reze pra que o homem vá embora logo. Se não, é o seu fim.
- Contanto que os meus irmãos fiquem longe de você, não me importo.
Ele sorriu, apertando novamente as correntes ao chão, como uma ironia do destino. A cabana tinha uma cama velha no chão e um balde no canto. Uma janela fechada. E só.
Mas eu já estava cansada demais para lutar com pensamentos. O corpo afundava no colchão fino. E antes de o sono me levar, fiz minha última prece:
Que aquele homem de amanhã veja. Que veja os olhos dos meus irmãos e os tire daqui. Que veja a mim. Que veja o que restou.