A última lembrança que tenho dos meus pais não é feita de palavras ou rostos. É feita de luz intensa, calor e fumaça. Eu tinha apenas dois anos, mas o dia em que tudo mudou está gravado na minha pele como se tivesse acabado de acontecer.
Estávamos a caminho do aeroporto da Cosa Nostra, indo para o Brasil, para a casa dos meus avós. Papai era consigliere de Giuseppe Bianchi, e os dois eram inseparáveis. A viagem deveria ser rápida, apenas um intervalo antes de reencontrarmos meu irmão, que já estava no Brasil, aos cuidados dos nossos avós. O que deveria ser um reencontro feliz, virou tragédia. Lembro do ronco do motor, do som abafado da voz de minha mãe cantando baixinho no banco da frente... e então, tudo se rompeu. Uma explosão. O carro girou no ar como um brinquedo quebrado antes de cair de cabeça para baixo. Gritos. Vidros. Sangue. Fumaça. Os seguranças do meu pai conseguiram me tirar a tempo. Dizem que fui a única que sobreviveu sem um arranhão. Milagre, chamaram. Mas perder os pais não tem nada de milagroso. Foi naquele instante que a máfia deixou de ser uma palavra distante e virou um fantasma constante na minha vida. Desde então, meu irmão Erich se tornou meu mundo. Ele tinha dez anos na época. Já entendia demais para alguém tão pequeno. Foi ele quem secou minhas lágrimas quando eu não sabia por que chorava. Foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta, a esconder cartas no bolso e a não confiar em estranhos, mesmo que eles sorrirem. Hoje, é meu aniversário de 16 anos. Erich agora tem 24 e é o consigliere de Matteo Bianchi, atual chefe da Cosa Nostra. Um título que, para muitos, representa poder. Para mim, representa o peso do que perdemos. Dois anos atrás, quando Matteo o convocou, Erich assumiu o posto com uma seriedade que me doeu. Não pelo que ele se tornou, mas pelo que teve que abrir mão para chegar até aqui. Apesar de tudo, ele sempre foi meu anjo protetor. Entre nós, não há máscaras. Sabemos a verdade um do outro com um simples olhar. Crescemos cercados por códigos, juramentos e armas escondidas atrás de sorrisos — mas dentro do nosso vínculo, sempre houve honestidade. Passei boa parte da infância no Brasil, na casa dos nossos avós. Vovó é uma mulher de fé, mas carrega no rosto a dor de quem perdeu um filho de forma cruel. Vovô tem Alzheimer, e sua mente vive em um tempo onde meu pai ainda entra pela porta com o casaco cheirando a tabaco e chuva. Vovó nunca quis voltar para a Itália. Na cabeça dela, esta terra amaldiçoada roubou tudo o que ela tinha. E vovô, mesmo em seus momentos de lucidez, pensa o mesmo. Foi há um ano que me mudei para a Toscana com Erich. Ele não confiava mais em deixar minha segurança nas mãos de ninguém. Disse que a saúde dos nossos avós já estava frágil demais, e que era hora de estarmos juntos. Desde então, vivemos em uma propriedade cercada de colinas, vinhedos e empregados que parecem estar sempre à espreita, prontos para agir a qualquer sinal de ameaça. No início, odiei estar de volta. Parecia que os fantasmas que minha avó tanto temia andavam mesmo por aqui, sussurrando pelos corredores à noite. Mas então, conheci Chiara. Chiara foi um sopro de leveza na minha rotina cinza. Um ano mais velha do que eu, intensa, risonha e completamente apaixonada pelo meu irmão. É óbvio que ele sente algo também — eu vejo nos olhos dele. Ele nega, claro. Mas sou irmã dele há dezesseis anos. Eu sei quando Erich está tentando esconder alguma coisa. E há algo que compartilho com Chiara: o coração acelerado por um homem que provavelmente é proibido demais para nós. A primeira vez que vi Salvattore Bianchi foi no aeroporto. Ele estava ali, esperando por Erich, mas foi como se estivesse ali só por mim. Alto, tatuado, o paletó escuro contrastando com os olhos claros e um charuto entre os dedos. O perfume amadeirado dele me envolveu como um feitiço. Fiquei paralisada. Eu, que nunca acreditei em amor à primeira vista, fui atingida em cheio. Salvattore tem apenas seis anos a mais que eu, mas carrega nos ombros a experiência de quem já viu mais do que gostaria. Subchefe da máfia. Temido, respeitado, letal. Mas comigo... sempre foi gentil. Delicado. Um cavalheiro nas sombras. Nos últimos meses, criamos uma espécie de vínculo silencioso. Ele sempre deixa algum presente para mim: um livro sublinhado, um doce raro, um perfume francês. Pequenos gestos que, para qualquer outra pessoa, seriam insignificantes. Mas para mim, cada um deles carrega uma confissão silenciosa. Nunca ultrapassamos nenhum limite. Nunca houve um toque mais demorado, um beijo roubado, uma promessa. Mas os olhares... os olhares dizem tudo. Meus pensamentos são interrompidos por uma batida suave na porta. Caminho até ela com o coração acelerado. Ao abrir, me deparo com um buquê enorme de rosas vermelhas e girassóis — minhas flores favoritas. Um bilhete repousa entre as pétalas: “Feliz aniversário, dolcezza. Aproveite seu dia. Estarei te esperando para uma dança durante sua festa. — Salvattore Bianchi.” Meus dedos tremem ao segurar o papel. O cheiro das flores invade o quarto. Um sorriso bobo escapa dos meus lábios. Ele nunca falou sobre o que sente. E eu nunca ousei perguntar. Mas esse bilhete... esse bilhete é tudo o que meu coração romântico e cafona precisava para continuar acreditando. A festa ainda nem começou. E já sinto que esta noite pode mudar tudo. O cheiro das flores ainda pairava no ar quando fechei a porta do quarto com delicadeza, como se o simples gesto pudesse acalmar as batidas do meu coração. Caminhei até o espelho e encarei meu reflexo. Era hora de me arrumar. O escolhido da noite foi um vestido preto, justo, com uma fenda que mostrava um pouco mais do que deveria. Uma escolha ousada, talvez, mas não consegui resistir. Nos olhos, optei por uma maquiagem leve — sombra dourada, delineado suave — e finalizei com um batom vermelho intenso, que contrastava com minha pele clara e revelava o que minha boca ainda não dizia. O cabelo, ondulado com babyliss, caía em ondas sobre meus ombros. Finalizei tudo com meu perfume doce favorito, aquele que sempre fazia Salvattore fechar os olhos por um segundo a mais quando passava por mim. A festa seria na casa principal da vila, a mansão de Matteo — uma construção antiga e imponente no alto da colina, cercada por ciprestes e guardas armados. Matteo sempre foi como um segundo irmão para mim. Cresci ouvindo seu nome nas conversas entre os adultos, e quando o conheci de verdade, vi que ele era exatamente como Erich: leal, protetor, e absurdamente perigoso. Tudo estava mais bonito do que eu imaginava. As luzes da vila brilhavam como se estivessem ali apenas por mim. Mas mesmo com todo o cuidado, todo o luxo, e todo o amor envolvido na organização da festa, meu coração doía. Faltavam eles. Meus avós não estariam ali esta noite. A saúde do vovô, cada vez mais frágil, impediu a viagem. Mas vovó me ligou mais cedo. A ligação durou apenas alguns minutos, mas suas palavras ecoaram como um abraço dentro de mim. — Minha pequena, se eu pudesse, estaria aí te vendo brilhar... Te amo mais que tudo — ela disse, com a voz embargada. Foi impossível conter as lágrimas depois que desliguei. Mas me recompus. Hoje era meu dia. E algo me dizia que ele seria inesquecível.