Era seu aniversário, mas nada naquela manhã fazia parecer que o dia teria algo de especial. A espuma do sabão escorria pelos dedos finos de Lyra enquanto ela esfregava o chão áspero da ala principal da alcateia, de joelhos, com os cabelos presos em um coque frouxo que não parava de se desfazer, fazendo os fios dos cabelos loiros escaparem do elástico que os prendiam. Ao seu lado, Petra bufava, com o rosto suado e as mangas da blusa arregaçadas até os cotovelos.
— Você já percebeu que quanto mais a gente esfrega, mais esse chão parece sujo? — murmurou Petra, torcendo o pano no balde pela terceira vez. Lyra soltou um sorriso fraco, mas não respondeu. Estava concentrada em limpar uma mancha escura perto da escada de pedra. Precisava deixar tudo perfeito, assim poderiam ir para a festa durante a noite. O silêncio que pairava entre elas foi quebrado por risadas estridentes e passos de salto ecoando pelo corredor. As duas se entreolharam antes de se levantarem lentamente, como quem antecipa um desastre. Não seria a primeira vez que alguém passaria por ali enquanto estavam limpando, mas com certeza seria a primeira vez que aquelas garotas passavam por ali naquele dia, e certamente Petra e Lyra preferiam que elas ficassem longe, bem longe. Camilla apareceu primeiro. Usava um vestido leve e justo, que se moldava ao corpo como se tivesse sido costurado nele. Ao lado dela vinham Sill, de cabelos avermelhados, e Cleair, que mantinha um ar de desdém fixo no rosto, como se tudo à sua volta fosse indigno de sua presença. — Ora, ora... vejam só quem está aqui limpando o chão como boas cadelinhas — disse Camilla, a voz carregada de sarcasmo, parando diante das duas. Petra se enrijeceu, Lyra manteve os olhos no pano que ainda segurava. Não valia a pena provocar, no fim, sairiam como erradas, afinal, não deviam enfrentar as lobas beta, eram ômegas, deviam ser submissas. Sill riu alto, apontando o balde de água suja. — No fim, é só essa merdinha de trabalho que elas duas sabem fazer, não é? Deve ser triste servir só para limpar o chão que os outros lobos mais úteis pisam. Cleair acrescentou com uma risada falsa: — Pobres dos lobos que tiverem o azar de serem destinados a vocês. A deusa, às vezes, tem um senso de humor cruel. Camilla avançou um passo e, com um movimento ensaiado de sua bota envernizada, chutou o balde, espalhando a água suja por todo o chão recém-limpo. — Ai... foi sem querer — disse, sorrindo como uma víbora. — Acho que vocês vão ter que começar de novo. As empregadas incompetentes, precisam se esforçar mais, ou não vão para o baile hoje a noite! As três se viraram para sair, ainda rindo, mas Petra, com a mandíbula tensa, não conseguiu se conter. Ela sussurrou baixo, sem olhar para trás: — Um dia essas três vão pagar por tudo isso, ninguém fica num pedestal pra sempre! — Petra! — Lyra tentou repreender a amiga, mas era tarde demais. Camilla parou abruptamente, o som de sua risada cessou como uma lâmina cortando o ar. Ela girou nos calcanhares, os olhos brilhando de raiva. — O que foi que você disse, sua rata imunda? Antes que Petra pudesse responder, Camilla avançou e agarrou-a pelos cabelos, puxando sua cabeça para trás com brutalidade. Petra gritou, tentando se soltar, mas a loba era mais forte. — Para com isso! — gritou Lyra, correndo até as duas e segurando o braço de Camilla com força. — Solta ela! O toque de Lyra foi como uma faísca, a pele de Camilla reagiu imediatamente, deixando uma leve marca avermelhada onde os dedos finos da ômega haviam apertado. Ela arregalou os olhos, surpresa, e soltou Petra, mas o choque logo foi substituído por pura fúria. — Sua omega nojenta! — rosnou ela, erguendo a mão e acertando um tapa no rosto de Lyra com toda a força. O estalo ecoou como no corredor vazio e Lyra caiu de joelhos, com a bochecha ardendo. O mundo girou por um instante, mas não foi a dor física que a abalou. Foi o que sentiu logo em seguida. O dom que guardava em segredo desde que se entendia por gente explodiu em sua mente no momento em que Camilla a tocou. Era como se tivesse acessado um baú trancado, um turbilhão de emoções invadiu seu peito. Raiva, sim, crueldade e ódio também. Mas por baixo de tudo... estava a inveja. Uma inveja quente, corroída, pulsando no fundo da alma da loba como veneno. Lyra encarou Camilla com os olhos arregalados, sem entender. Inveja de quê? Ela era só uma empregada, uma ômega sem nada, sem ninguém. Por que Camilla, a mais forte, a mais bonita, a preferida do alfa, invejaria alguém como ela? — Você não serve nem pra limpar as patas de um lobo — cuspiu Camilla, sacudindo os cabelos ao se virar. — Nunca deveria ter nascido. Petra correu até Lyra, agachando-se ao seu lado. — Lyra... você tá bem? — perguntou, tocando seu rosto com delicadeza. Lyra assentiu, embora sentisse o gosto metálico do sangue na boca. — Ela é horrível — murmurou Petra. — Horrível. Um dia ainda vai pagar por tudo isso. — Só queria saber porque ela é assim com a gente… — sussurrou Lyra, mais para si mesma do que para a amiga. — Não fazemos nada de errado, só estamos limpando, só isso… Petra suspirou e a ajudou a se levantar. — Ela é só uma vadia frustrada, só isso, está só procurando alguém para soltar aquele maldito veneno. As duas voltaram a esfregar o chão, agora sujo não só de sabão, mas também de humilhação. Nenhuma disse mais uma palavra. O som dos panos deslizando no piso era o único que preenchia o espaço. E enquanto a espuma se acumulava novamente ao redor do balde tombado, Lyra sentia que, de algum modo, aquela seria a última vez que limparia aquele chão. Porque a noite mais importante de sua vida sequer havia começado. *** Algumas horas depois, o céu já tingia os contornos da floresta com tons alaranjados e dourados. A luz do crepúsculo escorria pelas janelas do alojamento, pintando de esperança os corações de Lyra e Petra. O trabalho havia terminado, o castigo imposto por Camilla era agora apenas uma mancha entre tantas, nada conseguiria apagar o brilho daquela noite. Estavam juntas no quarto que dividiam com outras duas ômegas. Era assim no alojamento, as ômegas ficavam amontoadas numa única casa, as vezes mais de cinco por quarto, tudo para economizar o máximo de recurso que elas pudessem gastar, afinal, não mereciam a dignidade dos lobos beta. — Você acha que alguém vai perceber que a costura do meu vestido tá torta? — perguntou Petra, girando diante do espelho rachado, tentando alisar o tecido azul claro que usava. Elas mesmas haviam costurado seus vestidos, trabalharam meses neles para finalmente usa-los naquela noite e estarem bonitas para seus companheiros. — Com esse sorriso no rosto, ninguém vai reparar em mais nada — respondeu Lyra, com um brilho suave nos olhos. Ela também usava um vestido simples, branco como o luar, preso por uma fita prateada na cintura. O tecido fino tremulava levemente com o vento que entrava pela janela aberta. O cabelo estava solto, caindo em ondas leves pelas costas, preso apenas por uma pequena flor que Petra havia colhido mais cedo no campo. Apesar de simples, estava belíssima, muito mais bonita que várias outras lobas. — Você está linda, Lyra — disse Petra, aproximando-se dela com um sorriso sincero. — Se a deusa da lua for mesmo justa... hoje será a sua noite. — A nossa — corrigiu Lyra, apertando a mão da amiga. O caminho até o salão do baile foi silencioso, exceto pelo som das folhas secas sendo esmagadas sob os pés calçados com sapatos de salto emprestados por outras ômegas que já tiveram sua noite. A clareira sagrada onde o evento aconteceria estava tomada por tochas e velas, enfeitada com flores da estação e fitas brancas pendendo dos galhos altos. O cheiro de ervas e incenso pairava no ar, junto com a expectativa de todos os lobos que já aguardavam o início da cerimônia. Apesar dos lobos não compactuarem bem com a tecnologia humana, haviam caixas de som espalhadas pela clareira tocando músicas pop dos humanos que algumas lobas amavam. Lyra nunca tinha ouvido aquelas músicas, não tinha muito acesso a tecnologia dos humanos. Lyra e Petra pararam na beirada, olhando ao redor, deslumbradas. As lobas dançavam ao som da música baixa, todas com lindos vestidos brilhantes, jóias e maquiagens muito bem feitas. Mas as duas não ficaram apagadas, apesar de estarem simples, a simplicidade delas realçava a beleza que tinham. Pela primeira vez, não se sentiram deslocadas, agora parecia que faziam parte de algo maior. — Vamos? — disse Lyra, oferecendo o braço para Petra, que riu e aceitou. Caminharam entre os convidados e se juntaram ao círculo de jovens que aguardavam a bênção. O fogo da grande fogueira ao centro crepitava alto, iluminando os rostos ansiosos. Então, a música encerrou, as vozes se silenciaram e o som do chifre cerimonial cortou o silêncio, anunciando a chegada da anciã da alcateia. A velha loba surgiu envolta em um manto negro com fios de prata, segurando nas mãos uma tigela de prata com água sagrada. Seu olhar era profundo, quase etéreo, como se visse além da pele, além do tempo. Era Lilian, a druida da alcatéia, ela quem realizava as cerimônias, era aquela que estava mais perto da deusa da lua entre todos ali. Ela ergueu os braços e falou com voz rouca: — Deusa da Lua, mãe de todas as matilhas, guia-nos nesta noite. Une os corações destinados, marca com teu poder aqueles que devem caminhar lado a lado. Os lobos reunidos repetiram a prece, e a anciã começou a passar entre os jovens, molhando os dedos na água sagrada e tocando suas testas, desenhando uma lua crescente em suas peles. Cada toque liberava uma leve cintilação azulada no ar. Naquele momento, não importava se era beta, omega ou alfa, eram todos iguais. Lyra fechou os olhos quando sentiu os dedos enrugados tocarem sua pele, por um segundo, tudo ficou em silêncio. E então, veio o cheiro. Tão forte, tão repentino, tão certo. Canela e alecrim. Ela abriu os olhos, arfando. Seu corpo reagiu antes da mente compreender. As pernas se moveram por conta própria, conduzidas por aquele aroma que falava direto à alma, seus instintos de loba de agitando como nunca antes. Petra chamou por ela, mas Lyra não ouviu, a multidão pareceu se abrir, como se o destino empurrasse todos para o lado. E ali, no centro da clareira, estava ele. Kael. O alfa. Imponente em sua postura, os cabelos escuros, formando leves ondas que estavam penteadas para trás, os olhos dourados como brasas acesas na penumbra. A camisa preta colava ao corpo musculoso, e sua aura parecia puxar tudo ao redor como um furacão. O mundo parou. Lyra sentiu o coração martelar no peito, as mãos suarem, os joelhos ameaçarem ceder. Mas havia algo mais forte que o medo, era reconhecimento. Um fio invisível e eterno puxando-a para ele. O vínculo das almas destinadas. Ela deu um passo à frente, depois outro. — Você... — sussurrou ela, sorrindo, os olhos brilhando com lágrimas contidas. — É você... Ele virou-se lentamente, atraído pelo mesmo cheiro. Os olhos se encontraram, e Kael franziu a testa, como se não compreendesse. A tensão entre eles era palpável, o vínculo começava a se formar, e a clareira inteira parecia conter o fôlego. Lyra sorriu mais abertamente, maravilhada. Ela não era forte, nem nobre, nem respeitada. Mas mesmo assim, a deusa a havia escolhido. Ela seria a companheira do alfa. Ela seria a nova Luna.Momentos antesO ar estava pesado na floresta.As folhas dançavam em silêncio sob a brisa que anunciava o cair da noite, e os lobos da alcateia já se reuniam ao redor da clareira sagrada. A lua cheia começava a subir no céu, seu brilho prateado refletindo sobre as peles e olhos atentos. Tudo estava preparado, tudo sob o controle de Kael.O alfa observava tudo de cima, de um dos degraus de pedra que levavam ao altar da bênção. Seus olhos dourados percorriam os arredores com rigidez. Nenhuma vela fora esquecida, nenhuma fita fora mal amarrada. O baile da primavera estava perfeito. Como deveria ser.Era o primeiro baile da primavera que celebrava como alfa, seu pai havia lhe passado o título no ano anterior, no outono, e agora ele finalmente encontraria sua companheira, se a deusa da lua assim quisesse.— Está tudo como você pediu, Kael — disse um de seus soldados, curvando-se respeitosamente.— Como eu mandei, você quer dizer — respondeu ele, seco. — Pode ir. E tire aquele arranjo horrí
AVISO DE GATILHO: ABUSO SEXUAL E VIOLENCIA (Se não se sente confortável com esse tipo de conteúdo, pule este capítulo)Não havia mais esperança.O som da festa já era só um eco distante, ficando cada vez mais baixo a medida que Lyra era arrastada para o calabouço. Nunca tinha ido ao local porque iria? Era destinado aos piores criminosos… Agora ela estava sendo tratada como um desses na verdade, pior que eles pois sua punição era desumana, cruel, asquerosa. Qualquer criatura que tivesse um coração pulsante em seu peito sabia que aquilo era além de errado, que era uma abominação, mas aqueles homens pareciam não ter coração, ou consciência. Eram vis, maus, não se podia nem dizer que eram selvagens, pois a selvageria é guiada por instinto, e nenhuma criatura tem um instinto tão tenebroso como a vontade que guiava aqueles lobos. A luz das tochas projetava sombras monstruosas nas paredes do calabouço, e quando as portas de ferro se fecharam com um baque que reverberou em seus ossos, ela so
Estava esperando para morrer. O som de rosnados se aproximava rapidamente, como trovões rasgando a noite, e a omega estava decidida de que esperar seu fim era o melhor a se fazer.Mas já havia sofrido tanto…Será que não merecia nem uma morte pacifica?Ter seu coração e corpo quebrados já não era o suficiente? Lyra tentou erguer a cabeça, mas o peso de seu próprio corpo parecia esmagá-la contra o chão frio e sujo da floresta. Cada respiração era uma luta, cada movimento, uma tortura.Os lobos estavam tão perto…O terror se instalou em sua mente fazendo todo seu corpo vibrar quando percebeu que não queria morrer daquele jeito, então, sem pensar, apenas obedecendo ao instinto mais primitivo de sobrevivência, tentou se mover. Os braços trêmulos e ensanguentados cavaram a terra diante de si. As pernas, mortas pela dor, arrastavam-se inutilmente atrás do tronco magro e despido.— Só... mais um pouco... — sussurrou, quase inaudível, enquanto o sabor metálico do sangue invadia sua boca.O
Enquanto ali uma morte brutal parecia prestes a acontecer, mais ao fundo da caverna algo que mudaria tudo repousava num sono incubido de magia. Correntes grossas envolviam seus pulsos e tornozelos, gravadas com runas prateadas de contenção, cintilando com a mais pura magia, prendendo o imenso monstro com garras enormes e pelo negro. O tempo não passava naquele lugar, sua alma estava presa no abismo da própria mente, onde a luz não existia, onde o silêncio pesava como pedra e a única sensação era o vazio eterno.Mas então… algo rompeu o silêncio e a escuridão.Uma voz fraca, trêmula, que se o silêncio absoluto não existisse mal se poderia ouvir.— Por favor, que pelo menos seja… seja rápido…A súplica ecoou por todo o vazio.Aquela imensa criatura se mexeu pela primeira vez em séculos. Dentro de sua prisão, seus olhos se abriram, confusos, mas atentos, a forma humana do monstro guiou os olhos vermelhos pela escuridão em busca de qualquer passagem, qualquer luz, ao passo que o corpo mo
A única coisa que se ouvia era o silêncio pesado, cortado pela respiração quente e monstruosa daquela criatura, então ele se virou. Seus olhos vermelho-sangue faiscavam com pura fúria, ainda cheios do ódio e nojo que consumiu cada osso dos renegados que ousaram tocar o que não lhes pertencia.Lá estava ela.Jogada sobre as pedras frias da caverna, o corpo pequeno tremendo, envolto em hematomas, sujeira e sangue. Completamente nua, a pele clara marcada com arranhões, hematomas, cortes, o cabelo grudado no rosto, completamente sujo de sangue e lama. Mas o que o deixou mais furioso foi o cheiro, o cheiro de muitos machos sobre ela. O cheiro do que fizeram.Um rosnado grave escapou de sua garganta enquanto ele se aproximava, a cada passo, seu instinto exigia sangue, mas já não havia mais nada vivo por ali para sofrer sua fúria. Restava apenas a dor, vazio e vergonha.Transformou-se em homem sem pressa, sentindo as presas voltarem aos dentes humanos, o sangue escorrendo por seu torso nu,
Aquelas palavras caíram sobre ele como uma lâmina afiada. Por um instante, River ficou sem reação. Depois, aproximou-se um pouco mais, mas sem cruzar o limite do espaço que ela protegia com o corpo trêmulo.— Eu jamais tocaria em você da forma que aqueles porcos fizeram — disse com firmeza, e seus olhos faiscaram como brasas sob a luz da fogueira. — Nunca.Lyra o olhou com desconfiança, mas havia algo na sua voz que não combinava com os outros. Não havia luxúria, nem malícia, nem superioridade. Havia raiva, mas não contra ela, era como se ele estivesse furioso por ela.No entanto, algo no fundo de sua mente lhe disse que o alfa Kael também não parecia com os outros e mesmo assim ordenou que seus homens fizessem tudo o que fizeram.— Quem… Quem é você? — sussurrou com dificuldade, as mãos agarradas ao tecido que a cobria.— River, me chamo River — respondeu ele, abaixando-se lentamente até ficar sentado sobre os calcanhares, na mesma altura que ela. — E você? Qual seu nome?Houve uma p