Uma semana se passou, e numa tarde sentir um peso invisível sobre os ombros, um turbilhão de pensamentos que precisavam se dissipar. Decidi sair para espairecer e levei Bruno, o cachorro de Catarina. No início, ele havia me estranhado, rosnando baixo e mantendo uma distância cautelosa, mas com o tempo conquistamos uma amizade sincera, selada por petiscos furtivos e longas caminhadas ao ar livre.
Nossa casa ficava afastada da cidade, cercada pela serenidade da natureza. O bosque próximo exalava um aroma de terra úmida e folhas secas, e o vento, ao deslizar por entre os galhos, sussurrava como se compartilhasse segredos antigos. O riacho serpenteava por um campo aberto, suas águas cristalinas refletindo o sol poente como se fossem fragmentos dourados espalhados pela correnteza. Enquanto Bruno corria adiante, saltei sobre uma raiz exposta e apanhei um galho. O cão, atento, fixou os olhos brilhantes no pedaço de madeira.
— Pega, Bruno! — exclamei, lançando o galho pelo ar.
Ele disparou como uma flecha, o farfalhar das folhas denunciando sua passagem. Pegou o objeto com destreza e retornou triunfante, a cauda abanando com alegria.
Então, um som seco e estrondoso rasgou o silêncio: um tiro.
Meu coração gelou. Bruno latiu alto, os pelos eriçados, enquanto eu instintivamente tampei os ouvidos. O eco se espalhou pelo bosque como um trovão abafado. Do outro lado do riacho, três homens seguravam armas de caça. Um deles fez um gesto com a mão e murmurou algo inaudível.
— Me desculpe se te assustei! — gritou um deles, sua voz firme cortando a distância.
Com passos decididos, ele atravessou o riacho, a água espirrando em torno de suas botas. Ao se aproximar, pude vê-lo melhor: o cabelo levemente desalinhado pelo vento, os olhos de um azul cortante, a postura confiante. Meu estômago se revirou. Ele era a cópia exata de Renato, meu colega de trabalho no mundo que deixei para trás ao renascer como Patrícia neste conto de Catarina.
— Renato? — murmurei, minha voz quase inaudível.
Bruno, que ainda rosnava baixo, silenciou subitamente, como se também estivesse intrigado.
O homem sorriu, um sorriso suave, mas carregado de algo que não consegui decifrar.
— Não, me chamo Henry. E seu amigo aqui me impediu de ouvir o que você disse. — respondeu, abaixando-se para acariciar a cabeça de Bruno. O cachorro, que normalmente era desconfiado, aceitou o gesto sem hesitação.
— “Será que é um Henry normal, ou o príncipe.” — Esse pensamento veio na minha cabeça, mas como ele não disse que era o príncipe, deixei passar.
— Ele é bonzinho, só ficou assustado. Eu disse que já estava de partida. — expliquei, tentando ignorar o impacto daquele sorriso, que parecia ter um magnetismo próprio.
— Sinto muito por interromper seu passeio. Posso saber seu nome? — perguntou ele, fazendo uma leve reverência, um gesto cortês que parecia saído de outro tempo.
Engoli em seco antes de responder.
— Patrícia Mayer. Sou filha de Lady Eleonor, e este é Bruno, o cachorro da minha prima, Catarina.
Os olhos de Henry brilharam com interesse.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Mayer. — disse ele, segurando minha mão com delicadeza e depositando nela um beijo.
Um calor inesperado subiu pelo meu rosto. O toque sutil dos lábios dele sobre minha pele foi como uma faísca em meio ao frio crepúsculo.
Despedi-me de Henry com um sorriso involuntário, sentindo meu coração ainda acelerado. Enquanto caminhava de volta para casa, o murmúrio do vento e o perfume adocicado da vegetação pareciam intensificados, como se a própria natureza sussurrasse que aquele encontro era apenas o início de algo que o destino havia reservado para mim.
Quando cheguei em casa, o ar estava impregnado com o cheiro doce e vibrante das laranjas recém-espremidas. O som rítmico do suco sendo derramado no copo se misturava ao leve tilintar do vidro contra o balcão.
Catarina estava na cozinha, com os cabelos presos de qualquer jeito e um vestidinho simples, manchado de pequenas gotas cítricas. Seu rosto iluminou-se ao me ver, e ela abriu um sorriso acolhedor.
Ela agora parecia mas receptiva a mim, penso que conseguir a sua amizade.
— Peguei o cachorro de volta — avisei, entregando-lhe o Bruno, que se aconchegou em seus braços balando o rabo e lambendo a sua mão.
Ela riu baixo, passando a mão nos pelos macios dele, e depois o levou para fora, antes de me oferecer um copo de suco. O líquido dourado refletia a luz da vela acesa no canto da cozinha, lançando pequenos brilhos sobre a superfície. Aceitei com um murmúrio de gratidão e me sentei à mesa, sentindo o frescor ácido do suco deslizar pela garganta.
Catarina me observava com atenção, seus olhos brilhando de curiosidade.
— Como foi o passeio? — perguntou, sentando-se ao meu lado e apoiando o queixo sobre a palma da mão.
Suspirei, girando o copo entre os dedos. O cheiro cítrico no ar parecia ainda mais intenso, como se quisesse me envolver, puxar a verdade dos meus lábios.
— Foi... especial — confessei, a voz quase um sussurro.
Ela ergueu as sobrancelhas, inclinando-se para mais perto, o olhar faiscando de expectativa.
— O que aconteceu!?— exclamou, e uma nota sonhadora preencheu sua voz. — Posso saber?
A pergunta pairou no ar, provocando um leve aperto no meu peito.
— Eu... conheci uma pessoa e gostei muito dele — respondi, hesitante, deslizando os dedos pelo vidro úmido do copo. — Mas não sei se estou apaixonada.
O sorriso de Catarina era tão caloroso que parecia aquecer a própria cozinha, rivalizando com o brilho da vela.
— Mas e você? Catarina tenho certeza de que seu sonho também vai se realizar. Você vai encontrar o amor que deseja, e será muito feliz.
Ela desviou o olhar por um instante, mordendo o lábio.
— “Patrícia me diz isso como se soubesse o futuro.” — pensou antes de retornar a atenção para mim.
— Perguntou o nome dele?
Um arrepio percorreu minha espinha ao pronunciar as palavras:
— Henry.
O nome pairou no ar como uma melodia inacabada. O rosto de Catarina se suavizou, seus olhos refletindo um misto de surpresa e doçura. Mas, antes que ela pudesse dizer algo, passos ecoaram pelo corredor.
Minha mãe entrou na cozinha, sua presença preenchendo o espaço como uma sombra densa. Seu olhar pousou diretamente em mim, depois deslizou para Catarina, que se levantou num movimento rápido, fazendo uma reverência respeitosa.
— Henry? — Minha mãe repetiu, sua voz carregando um tom de incredulidade. — Esse é o nome do príncipe! Como o encontrou, Patrícia?
…um brilho ambicioso que não passara despercebido nem mesmo a Catarina, que apertou os lábios em silêncio. Lady Eleonor, minha mãe, inclinou-se levemente para a frente, como se pesasse as implicações de cada detalhe que eu revelava.
— Você tem ideia do que isso significa, Patrícia? — sua voz agora era mais baixa, mas tão firme que poderia cortar vidro. — Se ele for realmente o príncipe, e você chamou a atenção dele...
Engoli em seco. O suco, que antes trazia frescor, agora parecia ácido demais em minha boca. Senti Bruno se aproximar de minhas pernas, como se percebesse o clima denso que se instalava na cozinha.
— Mãe, foi apenas um encontro — respondi, tentando conter o tremor na voz. — Ele me disse que se chama Henry. Talvez seja apenas coincidência.
Lady Eleonor estreitou os olhos. Catarina, ainda de pé, permanecia em silêncio, mas seus dedos apertavam o avental com força.
— Você tem noção de quantos Henrys podem estar caçando em nossos bosques, Patrícia? Pouquíssimos. Ainda mais com uma escolta.
Suspirei, desviando o olhar para a janela. O céu já escurecia e uma brisa suave fazia as cortinas dançarem, como se ecoassem a inquietação que crescia em meu peito. Eu não queria que aquele encontro fosse analisado como uma jogada política. Não queria que Henry fosse reduzido a um nome e um título. O que senti fora real — uma conexão tênue, mas viva.
— Se ele for mesmo o príncipe... — murmurei, mais para mim do que para as duas — por que se apresentou com outro nome?
Minha mãe não respondeu de imediato. Limitou-se a caminhar até o armário, onde apanhou uma garrafa escura e serviu-se de um cálice pequeno. Quando voltou a falar, sua voz estava impregnada de cautela e cálculo:
— Talvez para testar as pessoas que encontra. Talvez porque desejava fugir por um instante da própria identidade.
Engoli em seco, sentindo um peso invisível pressionar meu peito.
— Se neste breve encontro tenha conseguido a atenção do príncipe, isso seria muito bom para o seu futuro Patrícia, pense, a possibilidade de ser rainha. — Falou a minha mãe.
— Seria esplendoroso — respondi, com um sorriso ensaiado, enquanto tentava conter o turbilhão de emoções que me atravessava.
O ar estava carregado de perfume cítrico, mas, de repente, me pareceu enjoativo. Como se aquele momento fosse um doce demais para mim, um sabor que eu jamais poderia provar.
Por fora, eu sorria.
Por dentro, o gosto amargo da realidade se espalhava.
— “Eu vou ter os meus pés no chão e não ter ilusões, na história o príncipe se apaixona por Rebeca, mas, mesmo assim se eu tiver oportunidade vou tentar mudar a história, se o encontrá-lo outra vez.” — Pensei sendo positiva
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