O som ritmado das facas batendo nas tábuas de corte preenchia a sala na aula seguinte. O tema do dia era comida de rua coreana: tteokbokki, hotteok e mandu. Esther chegou cedo, desta vez um pouco mais confiante. Ainda tropeçava nos nomes dos ingredientes, mas havia algo nela que mudara. Talvez o brilho curioso nos olhos. Talvez a lembrança do caminho compartilhado sob o guarda-chuva.
Filipe também notou. Ele mantinha a postura de instrutor: objetivo, direto, mas havia uma diferença sutil em como olhava para ela. Como se seus olhos pausassem um pouco mais quando passavam por sua bancada. Como se quisesse decifrá-la. Esther, por sua vez, tentava não criar expectativas. Aquilo era só um curso. Ele era o professor. Ela, uma entre tantos alunos. Mas, por mais que tentasse racionalizar, o coração tinha um ritmo próprio — um que acelerava toda vez que ele se aproximava. — Muito bem — disse Filipe, após demonstrar como rechear os mandus —. Agora é com vocês. Mãos à obra. Esther enrolava a massa com delicadeza, mas seus dedos tremiam levemente. Estava determinada a fazer o melhor possível. Na aula anterior, seu prato foi o mais salgado. Agora queria impressionar — não só pelo sabor, mas por ela mesma. — Está bonito — disse Filipe, inclinando-se ao seu lado. Ela se sobressaltou. — Sério? — Sim. Suas dobras estão quase perfeitas. Está usando as pontas dos dedos do jeito certo. Isso não é fácil de aprender de primeira. Ela corou. O elogio, vindo dele, parecia ter mais peso. — Eu treinei em casa. Assisti vídeos a noite toda — confessou, rindo. — Então está levando a sério. — Eu… sempre quis aprender de verdade. Mas acho que, no fundo, queria sentir que sou boa em algo com as mãos. Tudo na minha vida sempre foi muito teórico. Muito cabeça. — Cozinhar é a ponte entre cabeça e coração. Você está no caminho certo. Filipe sentia que precisava tomar cuidado. Não podia ultrapassar os limites do profissionalismo — ainda era o professor dela. Mas também não podia ignorar o que começava a sentir. Desde o divórcio, dois anos antes, ele se fechara completamente. Não achava que voltaria a sentir algo assim. Mas ali estava ela: discreta, sensível, e ao mesmo tempo cheia de uma força silenciosa. Enquanto os alunos fritavam os mandus, o aroma se espalhava pelo ar. Esther experimentou o dela e sorriu. Pela primeira vez, sentiu orgulho do próprio prato. — Quer provar? — perguntou, estendendo um para Filipe. Ele hesitou por um segundo, depois aceitou. Mordeu com atenção, fechando os olhos por um instante. Quando os abriu, havia algo quase suave em sua expressão. — Está excelente. O recheio está equilibrado. E o tempero… você usou gengibre fresco? Ela assentiu, surpresa. — Só um pedacinho. — Isso fez toda a diferença. Mais uma vez, ele se afastou discretamente. Mas Esther o seguiu com o olhar. Havia um calor em seu peito que não tinha nome. Ou melhor, tinha: expectativa. Ao final da aula, enquanto todos se arrumavam para sair, Filipe se aproximou de Esther. Seus colegas já estavam saindo, e a sala ficara mais silenciosa. — Esther. — Sim? — Tem um evento no sábado à tarde. Uma feira gastronômica aqui perto. Eu… normalmente vou para observar, conhecer novos fornecedores, testar sabores. Mas pensei que… talvez você gostasse de ir. Comigo. O convite pairou no ar como um suspiro contido. Esther piscou algumas vezes, sem saber se interpretara certo. Mas o brilho nos olhos dele deixava claro: era mais do que um convite técnico. — Eu adoraria — respondeu, depois de um segundo. Filipe sorriu, aliviado. — Ótimo. Passo as informações por mensagem. — Está bem. Trocaram números de forma rápida, quase prática. Mas os corações estavam longe de qualquer neutralidade. Enquanto ela caminhava para casa, sentiu o mundo girar de forma diferente. Era só um passeio. Mas para ela — e para ele — significava muito mais. Naquela noite, Filipe sentou-se na varanda de seu pequeno apartamento e releu a mensagem de confirmação dela. “Estarei lá.” Quase conseguiu ouvir sua voz dizendo aquelas palavras. Respirou fundo. Pela primeira vez em anos, sentia que estava prestes a começar algo real. Algo simples, mas profundo. Como uma receita que exige paciência. E alma. Ester, por sua vez, dormiu com um leve sorriso nos lábios, sem saber se sonhava com receitas, chuva ou olhos castanhos que liam mais do que o que era dito.