Cap 6

Atualmente

Quando chego em casa após a visita, estou exausta e com

um nó no estômago. Passei o dia com o Lucas e me sinto uma

inútil. Eu não tenho nenhuma crença, nenhum Deus para recorrer.

Minha família não tem nenhuma religião, acreditando apenas na

ciência. Então, só conheço a igreja pelo que a escola ensinou. Às

vezes eu ia com a família do Lucas. Eu gostava e me sentia bem lá

dentro, então resolvo tomar um banho e ir até a igreja que eles

frequentam.

Como ainda são apenas 19h, vou caminhando. A igreja

fica a apenas algumas quadras da minha casa. Ao entrar no local,

o cheiro de vela emanava no ar. Algumas pessoas estão lá dentro

assistindo à missa. Sento-me em um banco em frente a uma

imagem de Maria, com os braços abertos, como se tivesse

acolhendo quem estava ali.

Fico olhando para a mãe de Jesus e começo a chorar,

deixando as lágrimas escorrerem e molharem meu rosto. Começo

a soluçar, mas não fico com vergonha. Fecho os olhos e desabafo

tudo o que não consegui até agora. Fosse porque alguém sempre

vinha me consolar e eu ficava com vergonha, ou porque acabava

dormindo por causa de tantos medicamentos.

― O que houve, minha filha, quer conversar?

Não percebi quando alguém se sentou ao meu lado. Ao

olhar ao redor, percebo que a igreja está quase vazia. A missa

tinha acabado.

― Me desculpe, eu não vi... ― Começo a me levantar,

mas o padre me segura delicadamente para que eu me sente

novamente.

― Não se desculpe. Você está na casa de Deus! Aqui

você deve se sentir acolhida e à vontade. Me diga a causa de todo

esse choro.

― Eu estou me sentindo de mãos atadas. Não posso fazer

nada pela pessoa que amo... ― conto tudo para aquele homem

que eu nunca tinha visto.

Ele me parece um avô bonzinho, sem o suave aroma de

cachimbo. Provavelmente tem mais de 60 anos, baixo, careca, a

postura um pouco curvada. Ele me ouve atentamente, segurando

minha mão. Quando termino de falar, dá dois tapinhas carinhosos

na minha mão.

― Nenhuma folha cai da árvore sem que Deus queira, e

tudo que acontece tem um motivo. Ele testa seus filhos para ver

até onde vai a fé. A sua família pode não crer em nenhuma

religião, mas Ele te colocou na vida do Lucas por algum motivo.

Pode ser que seja para você conhecer Deus. Veja que a mãe de

Jesus está aqui, com os braços abertos para te acolher. Tenha fé,

como a mãe do Lucas tem. Milagres acontecem, mas os médicos

são muito orgulhosos para admitir. Aprenda a acreditar e a ter fé.

Ele me conduz até uma espécie de escritório, abre uma

gaveta. De lá, tira um livrinho, entregando a mim, e depois uma

medalha, onde faz uma oração e também me entrega.

― Essa medalha é de Nossa Senhora das Graças, a mesma

da imagem daquele altar. E este livro é de Salmos, para você ler

todo dia.

Agradeço o presente e, antes de eu ir embora, ele faz uma

oração na minha cabeça, terminando em nome do Pai, Filho e

Espírito Santo. Percebo que já são 20h e vou direto para casa.

Quando entro em casa meus pais já estavam preocupados,

principalmente porque esqueci o celular em casa. Rapidamente

explico o que aconteceu.

― Iara, você está indo à terapia, né? ― pergunta minha

mãe.

― Sim, mãe. O que isso tem a ver?

― Nós só queremos ter certeza de que você está bem.

― Não, ela não está ― fala Nayara, o tom de voz soando

impaciente. ― Como vocês querem que ela esteja 100% bem

tendo passado pelo que passou e com o noivo numa cama de UTI?

E por que é tão estranho ela ter ido numa igreja? Vocês nunca

viram nenhum familiar de pacientes indo procurar conforto na

capela do hospital? Nunca ouviram que há mais entre o céu e a

terra do que nos explica a nossa vã filosofia? ― ela me defende,

citando Shakespeare.

Dou um sorriso cansado.

― Nós sabemos de tudo isso, advogada de defesa, mas é

natural que fiquemos preocupados. E não é por ela ter ido à

igreja. Antes de termos começado a atuar na medicina, a minha

família ia à igreja. Eu estudei em escola católica, foi lá que

conheci sua mãe. Só não frequentamos mais por preguiça, falta

de tempo... Sei lá ― meu pai tem a necessidade de se justificar.

― Posso me deitar? ― É tudo que consigo falar.

Sinto-me cansada e com sono depois de ter chorado tudo

que tinha para chorar e sido consolada pelo padre Antônio.

Sou dispensada, e minha mãe vem atrás de mim.

― Iara, quer comer alguma coisa, tomar uma vitamina?

― Não, obrigada, tô sem fome... só quero dormir.

― Quer conversar? Sabe que eu sei ouvir... ― Minha

mãe passa a mão no meu cabelo, sento-me na cama e conto o que

o padre me falou.

― Isso me faz sentir remorso por não frequentar a igreja.

A última vez que fomos foi para batizar a sua irmã. E o que o

padre disse é verdade. Milagres acontecem. Eu já vi vários casos

em que a medicina sugere que uma mulher aborte, geralmente

devido a um risco ou má-formação do feto, mas nove meses

depois nasce uma criança forte e saudável. A medicina é uma

ciência, mas às vezes erramos nossas previsões. Por isso eu sei

que antes de mim há uma força maior ― fala minha mãe, olhando

a medalha que eu tinha deixado na mesa de cabeceira, juntamente

com o livro. ― Vista o seu pijama, vou pegar um leite quente para

você.

Quando ela volta, além do copo de leite e alguns cookies,

trouxe uma corrente. Ela deixa o copo e o prato na mesa e vem até

mim, que estou sentada na janela olhando as redes sociais.

― Essa corrente eu ganhei da minha madrinha quando fiz

a primeira comunhão. Eu a usei até me casar. Agora uso essa aqui.

― Mostra-me uma correntinha com uma cruz. ― Eu ganhei da

minha mãe quando me formei em medicina. Se você sente a

necessidade de ir à igreja, vá, não precisa sentir vergonha. ― Ela

me dá um beijo na testa.

― Obrigada. O padre Antônio me fez sentir muito bem e

mais confiante.

― Isso é importante, faz bem para o Lucas. Ele não pode

ouvir você fraca, ou que desistiu dele. E se ele vir o tanto que

emagreceu vai se sentir culpado. Tem que se cuidar...

Faço que sim com a cabeça. Mamãe se aproxima,

dando-me mais um beijo e, antes de sair do quarto, me entrega o

lanche.

Bruce se junta a mim, ajudando-me a comer os biscoitos.

Tomo o leite e fico olhando a cidade lá embaixo, fazendo carinho

em Bruce, que suspira depois de ter comido.

Acordo no dia seguinte mais ou menos 8h. Posso dizer

que dormi bem, mas agora estou somente com um leve enjoo,

além de tontura. Tomo um banho demorado, tentando relaxar um

pouco.

Enquanto estou me vestindo, recebo uma mensagem do

tio André. Ele é dono de uma clínica veterinária filiada a uma

ONG e é com ele que trabalho. A ONG, localizada em um terreno

à parte da clínica, é responsável por resgatar cães e gatos,

castrá-los e, após o tratamento necessário, colocá-los para adoção.

Meu tio cadastra os animais em um banco de dados e coloca neles

um chip de identificação, que é compartilhado com a delegacia

ambiental. Caso o animal volte para as ruas e seja resgatado

novamente, é possível identificar a família que o adotou para que

eles sejam devidamente processados.

Quando vou para a cozinha, encontro apenas Nayara

tomando café.

― Bom dia! Dormiu bem, pelo visto, como está?

― Realmente dormi relativamente bem.

― Recebi mensagem do tio. Vou na clínica ver se ainda

tenho um emprego, e depois vou ao hospital.

― Claro que tem. Eles estão ligando e mandando

mensagem pedindo notícias suas desde que aconteceu tudo. Eles

sabem o que houve.

Após tomar um suco, volto para o quarto, escovo os

dentes e faço um rabo de cavalo. Pego um moletom, para o caso

de o tempo virar, e a bolsa.

― Estou indo para a faculdade, quer carona até a clínica?

― oferece Nayara.

― Quero, sim. Obrigada!

Minha irmã dirige um Volkswagen up!, vermelho,

lindinho! No retrovisor, ela pendurou um trevo de quatro folhas

de pelúcia que ganhou de uma amiga.

― E aí, como vai a faculdade? ― pergunto.

Nayara está terminando medicina e vai se especializar em

obstetrícia, assim como a nossa mãe.

― Vai bem. Estou amando os estágios, mas, ao mesmo

tempo, é tudo uma loucura, né? ― responde, enquanto eu ligo o

som. ― Vou dizer uma coisa, é bom você dar um jeito de colocar

proteína nesse corpo, está emagrecendo demais, daqui a pouco vai

ter que tomar soro. ― Ela ri, mas, ao mesmo tempo, seu tom de

voz é sério.

― É fácil todo mundo falar como estou ou não, mas eu

não consigo comer. Nada para na minha barriga. Estou tentando,

mas nem a terapia que me mandaram fazer é mágica. Leva tempo!

― Sou mais ríspida do que queria, mas já estou farta de todo

mundo.

― Desculpe, mas me preocupo...

― Me desculpe também, mas é que só queria voltar uma

semana, ou então avançar no tempo para quando tudo acabar.

Você vai descer também?

Tínhamos acabado de estacionar.

― Não dá! Hoje tenho uma prova importante.

― Certo, boa prova! Até depois. Obrigada. ― Dou um

beijo em sua bochecha e saio do carro.

Tio André montou a clínica em sociedade com Tomás. Ele

e meu tio se conheceram na época da faculdade. Na época, eles

eram amigos, mas depois acabaram virando um casal. A família

do Tomás é do ramo de produção de leite e vendas de gado. Ele é

um amor de pessoa, defensor das causas dos animais

abandonados. Ele tem um sítio, onde mantém vários cachorros,

gatos, cavalos e até bois. No local ele acolhe animais vítimas de

maus-tratos, além da ONG que ajuda a recolher os animais,

acionando o delegado parceiro quando é necessário. Os dois são

muito bons e atenciosos com os animais e familiares. A clínica se

chama Anúbis, e lá tem uma estátua do deus egípcio no lado

direito da porta.

Entro pela recepção e fico na sala de espera, onde há

quatro poltronas, um pote de petiscos para cachorro, um para gato,

e uma bandeja de café e chá com biscoito humano, além de um

bebedouro para humano e outro para os pets.

― Oi, Iara, que bom te ver! Como você está? ―

cumprimenta Marina, nossa secretária.

Um Golden que aguardava para ser atendido vem me

cheirar.

― Oi, lindão, tudo bem com você? ― Afago as orelhas

do cachorro. ― Estou bem, na medida do possível, e por aqui?

― Essa é nossa veterinária também, Dra. Iara ― diz

Marina, para a tutora do cão. ― Esse é nosso novo paciente, o

Zeus. Veio tomar as vacinas, mas o Dr. André está com uma

emergência cirúrgica e o Dr. Tomás foi em um resgate ― ela me

atualiza.

― Tem consultório disponível? Posso cuidar do Zeus.

― Claro, o seu está lá te esperando. ― Posso ver o alívio

no rosto da “mãe” do Zeus.

― Me dá dois minutos, certo?

Vou até minha sala. Lá há uma foto da Lúcia, do Lucas e

da minha família. Eu o organizo rapidamente, abro a janela e visto

o meu jaleco. Então, mando o Zeus entrar.

― Peço desculpas pela demora, as emergências não têm

hora, e eu estava afastada por motivos familiares. Sou a Iara

Costa, e esse é Zeus, correto? Quanto tempo ele tem?

― Prazer, doutora. Sou a Inês. Me disseram que ele tem

seis meses. Eu o adotei de uma família que não sabia que ele iria

crescer tanto. E como a mulher engravidou, teve que deixá-lo no

fundo do quintal. Ele estava cheio de pulgas e com o pelo

encardido.

Essas histórias me revoltam!

― O que me alegra é que você o salvou. Vou dar uma

examinada e coletar sangue pra ter certeza de que ele está bem.

Também iremos vaciná-lo, certo?

― Obrigada.

Zeus realmente era filhote, e apesar de já ser grande, ainda

iria crescer mais. Como prometido, dei as vacinas e coletei o

sangue.

― Realmente, pelo que vejo aqui, ele parece ter menos de

um ano. Os exames estarão prontos até amanhã. Você deixou o

seu número de telefone com a secretária, né? Assim que os

resultados chegarem, nós te ligamos, se houver qualquer

alteração. Mas se tudo estiver normal, avisaremos por mensagem

Antes da tutora ir embora, tiro todas as suas dúvidas, e

após meia hora, ela saiu satisfeita com amostras de ração e

petiscos. A essa altura, tio André tinha terminado a cirurgia e

estava colocando o paciente na sala de observação.

― Minha parceira, que bom que veio me salvar. Como

estava o Golden?

― Feliz por ter ganhado uma casa onde entendem que ele

vai ser grande e precisa comer bastante e com qualidade. Dei as

vacinas e coletei o sangue para ter certeza de que ele está

saudável, mas foi só por desencargo de consciência.

― Menina, esse Border deu trabalho!

O Border Collier estava sedado, com a língua para fora da

boca. Ele tinha engolido uma bolinha de pula-pula, que ficou

presa na traqueia.

― Mas agora ele vai ficar bem, e o que mais tem

acontecido por aqui?

André me conta sobre alguns gatos que chegaram,

cachorros que foram adotados. Enquanto conversávamos, Tomás

aparece.

― Nossa linda apareceu. Como você está? E o Lucas?

Percebo que meu tio estava evitando perguntar por medo

de eu desmoronar, mas agora estou melhor e conto tudo a eles.

Depois vou até o canil e o gatil, converso com os

auxiliares, e quando volto à clínica falo para tio André e Tomás

que estou indo ao hospital. Peço que eles me liguem caso fiquem

em apuros.

― Linda, não se preocupe conosco. Fique bem. Se

precisar, nos chame. ― Dou um beijo neles e saio.

Quando chego à UTI, percebo que dona Olivia e seu Artur

estão ali, sentados e chorando. A cena me dá um nó na garganta.

Eu me aproximo, querendo não me aproximar, temendo

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