Mundo ficciónIniciar sesiónSelene
No dia seguinte, inventei uma desculpa para escapar do treino de etiqueta com a velha Loriane: — Minha cabeça dói. E enchi a bolsa com pão, queijo e uma garrafinha de mel que Tália jurava curar qualquer alma triste. Saí pela passagem do moinho e, ao pisar no bosque, senti Ash alongar as garras, feliz. — Só por hoje. — sussurrei para mim — Só mais uma vez. Quando cheguei à caverna, Kaleb já estava de pé, ainda pálido, mas ereto como uma árvore que se recusa a tombar. O pano cobria o flanco e a faixa que eu fiz com meu cabelo ainda segurava o curativo mais interno. Quando me viu, a tensão que eu não tinha percebido nele se dissolveu um pouco. — Trouxe céu? — ele perguntou. — Trouxe pão. Serve? — O pão da filha do rei deve ter gosto de céu. — Então morda devagar. — provoquei. Sentamos lado a lado. Observá-lo comer do meu pão teve algo de íntimo demais. Era como abrir uma gaveta do quarto e deixá-lo ver meus vestidos e cartas. Ele comeu com cuidado, a mandíbula trabalhando devagar. Ofereci o mel. Ele encostou a língua no gargalo e riu, baixo, quando a doçura o surpreendeu. — Você sempre ri assim? — perguntei. — Não sabia que ria. — Ele me encarou, quase sério de novo — Faz tempo que não tinha do que rir. Passei o pano na ferida. A pele começava a cicatrizar. O peito aberto e largo de Kaleb ficava perto demais do meu rosto a cada vez que eu inclinava o corpo. Eu sentia a respiração dele roçando meus dedos, morna, como um segredo. O olhar âmbar se acendia e apagava, acompanhando minha mão. — O exílio… — tentei, porque não suportava o silêncio cheio de coisas que eu não sabia nomear — você disse que foi rejeitado. Por quê? Os olhos se estreitaram. Ele escolheu um ponto no teto. — Existe uma palavra que a alcateia odeia: “diferente”. Às vezes, basta. Às vezes, eu bastava. — Diferente não é maldição. — Para quem manda, é. A raiva arranhou minha garganta. Quis prometer que, se um dia fosse rainha, ninguém seria expulso por não caber na forma dos outros. Quis dizer “fica”. Quis dizer “eu te daria um lugar”. Em vez disso, estendi o pano limpo e ele me entregou o peso do próprio corpo como quem entrega algo mais importante: confiança. Tirei o curativo com cuidado. Ele puxou o ar. O abdômen enrijeceu. O cheiro dele, madeira molhada, sal, algo de noite, subiu como uma onda que quebra e molha o que nunca deveria estar molhado. Eu estava perto demais. O mundo ficou pequeno, o som do meu sopro, da pedra sob nossos joelhos, e o som do coração dele, que juro ter ouvido no meu pulso. — Está doendo? — Menos do que… — Ele parou. Eu levantei os olhos. O âmbar me prendeu — Menos do que isso. — Menos do que o quê? Ele baixou a voz como se o bosque pudesse ouvir. — Menos do que querer tocar você e não poder. O chão se deslocou sob meus ossos. Senti o impulso de recuar e o impulso de avançar, dois cavalos puxando minha carroça em direções opostas. Ash rosnou, um aviso suave. — “Cuidado.” — Mas a palavra, em mim, soou como “devagar”. — Não pode. — falei, a ponta do curativo tremendo entre os dedos — Eu sou… — Engoli. “Filha do rei” seria a resposta certa. Mas a que saiu foi outra — Eu sou nova demais nisso. — Eu também. — Ele aproximou o rosto um palmo — O que eu digo na minha cabeça é “não estrague o lugar que ela criou para você”. Este lugar. — Apontou a caverna, a fita do meu cabelo, a água que eu trazia, o pão — Então eu não vou avançar. Não sem você permitir. O coração bateu tão alto que achei que ele ouviria. O ar ficou curto. Minha mão escorregou um pouco pela pele dele ao terminar de enrolar a faixa. Não foi de propósito, mas não foi um acidente completo. O corpo dele respondeu numa contração breve, um relâmpago que percorreu o abdômen e sumiu. Os olhos desceram para minha boca. — Kaleb… — sussurrei. — Selene. — O meu nome novamente como calor. Ele inclinou, milímetro a milímetro, até o hálito aquecer meu lábio superior. Eu senti o contorno da boca dele sem que ela encostasse na minha. O mundo inteiro coube naquele quase. Recuar seria sensato. Meu pai, o Conselho, as regras, as guerras velhas que eu mal compreendia… tudo gritava “pare”. Mas havia outra voz, talvez a mesma que me fez rasgar o vestido para enfaixar um estranho, e ela sussurrava: “viva”. Encostei a testa na dele, buscando tempo. — Eu não… — comecei. — Eu sei. — ele respondeu — Não hoje. A generosidade dele foi pior que qualquer insistência. Porque me deu vontade de merecer. Ficamos assim mais um pouco, respirando o mesmo ar, até que consegui terminar o curativo com dedos que não obedeciam. Falei de coisas pequenas… o gosto do mel, o barulho de um riacho que descobri criança, a vez em que fugi do baile para dormir no celeiro. Ele ria baixo, e cada riso fazia algo dentro de mim se soltar, como nós antigos. Quando o sol começou a descer, tive de ir. Colei o ouvido ao peito dele por um instante para ouvir se o coração não corria demais. Era desculpa, claro. Ele deixou, imóvel, como se qualquer gesto pudesse me espantar. — Amanhã. — prometi. — Amanhã. — ele repetiu, e a palavra virou um laço. Saí da caverna como quem sai de um feitiço. O bosque parecia mais claro, embora a luz se fosse. No caminho de volta, quase esbarrei em dois guardas do lado leste e inventei que buscava ervas para chá. Um deles riu, o outro me olhou comprido, como quem fareja segredo. Naquela noite, Tália trouxe um caldo ao meu quarto. — Você anda… diferente. — ela disse, pousando a tigela — Tem centelhas no olhar. — Talvez eu esteja crescendo. — Ou amando. — disse sem maldade. — É cedo demais para essa palavra. — respondi rápido. Rápido demais. Depois que ela saiu, deitei com a janela aberta. O vento trouxe o mesmo cheiro de madeira e noite. Adormeci vestida, como quem espera ser chamada. Acordei com o corpo ansioso e fui antes do sol. A floresta tinha som de pássaros molhando as asas no azul. A caverna me recebeu fria, mas o homem lá dentro queimava, não de febre, mas de vida. Ele me viu e seu rosto se acalmou. — Bom dia, pequena loba. — disse, e meu nome perdeu sentido. — Bom dia, exilado. — devolvi, provocando. Fizemos o ritual do pão, da água, da gaze. Eu já sabia o desenho exato da cicatriz no ombro, o ritmo exato do peito quando eu apertava demais, o jeito exato como os olhos dele me pediam que eu não mentisse para mim. E então, quando terminei de prender o curativo, fui eu quem ficou perto demais. — Tem uma coisa em você que me puxa. — confessei, baixinho, como se fosse pecado — E outra que me manda correr. Eu não sei qual obedecer. — Escolha ficar. — ele disse, simples — Hoje. Amanhã, você escolhe de novo. Eu ri, nervosa. O riso morreu quando ele afundou um pouco o rosto, envolvendo meus dedos com o hálito. O mundo ficou menor que nossa pele. — Selene… — Kaleb… Não houve aviso além do próprio corpo dizendo “agora”. Ele se inclinou e, num gesto rápido e rouco, roubou meu primeiro beijo. Foi um beijo sem luxo, sem música, sem vela. Foi fome e cuidado, dois bichos brigando pela mesma carne. Sua boca encontrou a minha e, por um segundo, todo o medo do mundo virou nada. Minhas mãos tremeram no ombro dele, a pele ardeu, o coração, esse traidor, foi atrás. Senti o gosto do mel que dividi, o sal do esforço que ele fazia para não me esmagar de vez. E, por trás de tudo, um fio: eu escolhi. Quando me afastei, por um fio de instinto, não de vontade, os olhos âmbar me seguraram. — Desculpe. — ele sussurrou, a testa colada à minha — Eu disse que esperaria. — Eu não pedi que esperasse. — respondi, com a voz que não parecia minha — Eu pedi que merecesse. E, naquele segundo, percebi que minha queda começava ali. Com um beijo. Com um segredo. Com um nome: Kaleb.






