Noah tinha uma disciplina quase religiosa nas manhãs de plantão. Acordava às 6h15, tomava banho frio para acordar o corpo, comia duas torradas secas com café preto e lia os jornais médicos do dia enquanto Clara ainda dormia, enroscada no edredom com uma mecha de cabelo na boca.
Mas naquela quinta-feira, quando saiu do banheiro pronto para ir, encontrou um bilhete colado na escova de dentes.
“Não esquece de viver entre um paciente e outro. Não esquece que seu coração também merece cuidado.” — C.
Ele sorriu. Guardou o bilhete dobrado no bolso do casaco.
Não como um lembrete. Mas como um antídoto.O hospital, como sempre, era um universo à parte. Ruídos de monitores cardíacos, passos apressados de enfermeiros, conversas abafadas em corredores compridos. Ali, Noah era outro. Preciso. Concentrado. Incansável.
Elias o observava de longe, como fazia desde os tempos de residência.
— Hoje você tá com olhos de quem dormiu bem — comentou, cruzando os braços diante da sala de cirurgia.
— Dormi. E sonhei com uma mulher fazendo arte na parede da minha sala com chocolate e tinta acrílica.
— Ah, o amor — Elias disse, irônico. — Aquela fase em que até bagunça parece poesia.
— E você, Elias? Nunca amou?
— Já. E justamente por isso, hoje como em silêncio e durmo com a porta trancada.
Noah riu, mas havia algo de sincero na amargura do outro.
Talvez todos os homens que carregam cérebros nas mãos tenham um certo trauma no peito.À tarde, Clara foi ao ateliê de Leo. Levaram juntos algumas impressões dos bilhetes poéticos que espalharam na cidade.
— As pessoas começaram a postar no I*******m — Leo disse, animado. — “Bilhete 27: Eu sou feita de urgências e você é meu tempo preferido.” Quem escreve essas coisas, hein?
Clara fingiu mistério.
— Talvez a cidade esteja finalmente dizendo o que sente.
— Sabe o que você devia fazer? Uma exposição só com essas frases. Um espaço vazio com as palavras flutuando. Como se o amor tivesse cheiro de papel antigo.
Clara olhou pela janela. As ideias sempre vinham assim, como pequenas ondas.
— Vou pensar nisso.
Mas, no fundo, ela já sabia: o amor que vivia com Noah não era só dela. Era algo que podia tocar o mundo.
No fim do expediente, Noah estava de saída quando uma enfermeira correu até ele.
— Dr. Bennett, tem uma senhora na recepção perguntando por você. Diz que é sua tia-avó. Mas o nome não b**e com nenhum parente seu no prontuário.
Ele franziu o cenho.
Quando chegou na recepção, encontrou… Olivia.
Vestida discretamente, com um sorriso tímido.
— Eu sei, eu sei. Péssima tática. Mas queria te ver. De verdade. Pode ser cinco minutos?
Ele olhou o relógio. Suspirou. Fez um gesto para ela segui-lo até a cafeteria.
— Olha, Olivia… você foi uma parte da minha vida. Mas...
— Não vim por isso. Eu juro.
Ela puxou da bolsa uma pasta amassada com papéis médicos.
— Descobri há pouco que tenho um nódulo. O médico sugeriu uma segunda opinião.
E, bem… você é o único em quem eu confiaria.Por um instante, Noah sentiu o chão se mover.
A ex-namorada. Um possível diagnóstico. E uma Clara em casa, pintando em paz, sem ideia do que se desenrolava ali.Ele pegou os papéis com cuidado. Leu. Respirou fundo.
— Vou te encaminhar pro especialista certo. Não sou o melhor nesse tipo de avaliação, mas conheço quem seja.
Olivia assentiu. Os olhos marejados.
— Obrigada, Noah. De verdade.
E antes de ir embora, ela disse, sem olhar pra ele:
— Ela te mudou. Eu vejo. Ela te dá algo que eu nunca consegui dar.
Fica com isso.E foi embora.
À noite, Clara estava no chão da sala com um novo projeto em andamento. Tinha espalhado folhas no chão com frases que começavam todas com:
“Se eu fosse cor, seria…”
— Você seria o quê? — Noah perguntou, largando a mochila ao lado.
Ela mordeu a caneta.
— Cor de vinho no fim do dia. E você?
Ele sentou ao lado dela. Pensou. Depois respondeu:
— Cor de ombro quando encosta na tua pele.
Clara gargalhou.
— Isso não é uma cor, seu maluco.
— Mas é a que eu queria ser.
Ela o abraçou, colando o rosto em seu pescoço.
— Eu tô tão feliz, Noah. De um jeito novo. De um jeito que eu nem sabia que existia.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Eu também.
E naquele momento, ele decidiu: não falaria nada sobre Olivia.
Não agora. Não enquanto ela ainda podia sorrir com os pés sujos de tinta.Na manhã seguinte, ele acordou com o som da chaleira.
Clara havia colado um bilhete no espelho do banheiro, onde ele escovava os dentes:
“Você me dá vontade de continuar. Mesmo nos dias em que o mundo parece sem cor.” — C.
Noah olhou seu reflexo no espelho, depois o papel.
Guardou no bolso. Saiu.No hospital, operou duas crianças, revisou prontuários, discutiu casos com os residentes e almoçou com Elias em silêncio.
No fim do dia, quando Elias levantou da mesa, olhou para ele e disse:
— Você ainda é o melhor que temos. Mesmo com poesia na cabeça.
— E isso é bom?
— Isso é raro.