Era quarta-feira e Nova York parecia cansada. O céu nublado deixava tudo mais lento, inclusive Noah. O hospital estava especialmente caótico, com três cirurgias em sequência, um residente novato cometendo erros em prontuários e uma mãe desesperada esperando notícias na sala de espera.
Noah gostava do que fazia. Não — precisava do que fazia. Era como se o trabalho fosse a linha que o mantinha preso ao chão. Mas, ultimamente, ele percebia que havia outra coisa — ou melhor, alguém — que o mantinha ancorado com muito mais delicadeza.
Clara.
Ele pensava nela nos momentos mais improváveis. Enquanto passava álcool nas mãos. Enquanto olhava tomografias. Até mesmo enquanto costurava a pele de um menino de oito anos após uma cirurgia bem-sucedida.
— Você tá voando, Bennett — disse Elias, puxando a máscara do rosto e se jogando na cadeira ao lado. — E não digo isso no bom sentido. Sua cabeça não está aqui.
Noah suspirou. Estava com as luvas ainda calçadas, o rosto marcado pelo elástico da máscara.
— Estou. Só… tenho mais mundo do lado de fora agora.
— Ah, o amor. A doença mais incurável que conheço — murmurou Elias, mordendo uma barra de proteína.
Noah riu, cansado.
— Você devia tentar, sabia?
— Prefiro whisky e silêncio.
Naquela noite, ele chegou no apartamento e encontrou Clara ouvindo Nina Simone no último volume, com a cozinha em pleno caos criativo: tigelas, pincéis, aquarela líquida e um bolo que transbordava do forno.
— Socorro? — ela gritou da cozinha.
— O que está acontecendo?
— Experimento artístico-gastronômico. Acho que descobri um novo estado da matéria. Algo entre massa de bolo e pintura abstrata.
Noah guardou o jaleco e foi até ela, rindo.
— Você tá tentando me matar?
— Só te manter alerta, Dr. Bennett.
O cheiro de chocolate queimado se misturava ao perfume de lavanda que Clara passava antes de dormir. E por algum motivo, aquilo tudo parecia absolutamente certo.
Depois do banho, os dois se sentaram no chão da sala, com pratos improvisados sobre almofadas e o "bolo" destruído entre eles.
— Você parece exausto — disse Clara, passando os dedos pelos cabelos dele.
— Tô. Teve uma cirurgia de seis horas hoje. E um menino de oito anos que me perguntou se eu tinha medo.
— E o que você respondeu?
— Que todo mundo tem. Só que o segredo é o que a gente faz mesmo assim.
Clara ficou em silêncio por um tempo.
— Sabe o que me dá medo?
— O quê?
— A ideia de viver uma vida inteira dentro da mesma moldura. Sem mudar os traços. Sem ousar as cores.
— Você é o oposto disso.
Ela encostou a cabeça no ombro dele.
— Só porque agora eu tenho você.
Na manhã seguinte, Clara acordou sozinha. Noah já tinha saído para o hospital, mas havia deixado um bilhete colado na cafeteira:
“Tentei não te acordar. Você parecia em paz. (Ou talvez eu só tenha gostado de te ver assim, sonhando sem pressa). Bom dia, minha calma no meio da pressa.” — N.
Clara dobrou o papel com cuidado, guardou no envelope onde colecionava os bilhetes dele e sorriu.
Depois ligou para Leo.— Preciso da sua ajuda.
— Pra que? Acordei agora.
— Quero espalhar bilhetes por Manhattan. Pequenos pedaços de amor soltos no mundo.
Começando hoje.Enquanto isso, no hospital, Noah enfrentava um caso particularmente complexo: uma paciente idosa com metástase cerebral que apresentava sintomas neurológicos graves. A família estava dividida sobre o que fazer. Ele passou horas revisando exames, conversando com os residentes, anotando possíveis estratégias.
Mas, ao sair da sala de reuniões, deu de cara com Olivia.
— Oi — ela disse, como quem não sabia se devia sorrir.
— Oi.
— Não sabia que ainda trabalhava nessa ala.
— Nunca saí.
Ela usava um casaco cinza e tinha olheiras discretas.
— Vim visitar minha avó. Ela tá na UTI. Queria ver se encontrava você... quer dizer, por acaso.
— Entendo.
Silêncio.
— Você parece… diferente — ela comentou. — Mais leve.
— Tô tentando viver de outro jeito. Com outras cores.
Ela sorriu de canto. Não como quem lamenta. Como quem entende.
— Ela deve ser alguém especial.
— É.
Olivia assentiu, como quem fecha um capítulo sem mágoa.
— Fico feliz. De verdade.
E então, foi embora.
No fim do dia, Noah chegou em casa e encontrou Clara com as mãos sujas de tinta e um mapa de Manhattan aberto sobre a mesa.
— O que você aprontou hoje?
— Um protesto amoroso. Bilhetes deixados em bancos de parque, paradas de ônibus, dentro de livros de bibliotecas públicas.
— Com nossos textos?
— Com nossos pedaços. Porque o mundo precisa de mais poesia espontânea.
Ele se aproximou devagar.
— Você vai acabar me fazendo chorar no meio do Upper East Side.
— Ótimo. A arte serve pra isso.
Naquela noite, antes de dormir, ele deixou um bilhete escondido dentro do livro que ela lia:
“Se o mundo for grande demais, me procura nas entrelinhas. Eu sempre vou ser o parágrafo calmo entre seus capítulos intensos.” — N.
E dormiram juntos, como quem sabe — mesmo sem dizer — que a vida é um mosaico de instantes que não voltam.