AURORA
Estava feliz por conseguir um trabalho e com isso algum dinheiro que me permitiria manter minha liberdade intacta. Ainda que Killiam continuasse a me intimidar de certa forma, eu me esforçaria ao máximo para corresponder às expectativas que ele depositasse em mim.
— Aurora, o Killiam quer falar com você no escritório dele — informou Suelen, com semblante sério.
O fato de ela não ter revelado qualquer sinal do que ele queria comigo, me deu um grande frio na barriga. Será que eu havia comemorado cedo demais aquela conquista?
Meu coração batia freneticamente enquanto eu caminhava até lá, rezando para que ele não dispensasse meus serviços.
Bati levemente à porta e esperei até ouvir a autorização para entrar.
— Você deseja falar comigo? — perguntei, sem a confiança que eu gostaria que minha voz transmitisse.
— Onde você está ficando, Aurora? — questionou ele, diretamente, com um tom na voz que soava quase como uma preocupação, e que eu não consegui compreender.
— Não tenho um local certo, mas sempre procuro um local seguro — argumentei, temendo que eu tivesse feito algo errado.
— Aurora, você sabe que existe uma alcateia aqui perto… — disse ele, observando atentamente minha reação.
Naquele instante, congelei por um segundo, meus olhos arregalados, como se a simples menção da palavra alcateia fosse suficiente para tremer as muralhas que havia construído ao meu redor.
Um silêncio pesado pairou entre nós. Eu sabia que estava próxima de uma alcateia, mas não que havia sido notada. Como lobos sabemos da importância de nos apresentar para que outros não encarem nossa presença como uma invasão.
— Por que você ainda não a procurou? — insistiu ele, com um tom mais leve, mas ainda firme. — Você sabe como todo lobo é territorialista, e não sabemos ao certo o que você está fazendo nessa área.
Ele tinha razão, nesse ponto. Respirei fundo e desviei o olhar para minhas mãos, nervosamente. Precisava manter o controle — mas, acima de tudo, precisava ser sincera.
— Eu não pertenço a nenhuma alcateia, Killiam. E não queria ter que explicar meus motivos ao alfa desta. Não quero pertencer mais a lugar nenhum. — Minhas palavras pareceram o atingir como um soco no estômago.
— Isso é impossível — retrucou ele, franzindo o cenho. — Todo lobo precisa de uma alcateia, de pertencimento… da ligação com a matilha. Você sabe disso. Está no nosso sangue.
Voltei a encará-lo. E, naquele instante, ele pareceu enxergar muito mais do que eu estava disposta a revelar. Não era apenas dor — eram cicatrizes.
Algumas, visíveis, eu escondia sob as roupas. Outras, bem mais profundas, estavam gravadas onde ninguém podia alcançar.
— Já fiz parte de algo — disse com firmeza — e, no fim, me transformaram em prisioneira. Agora, eu só quero paz. Só quero viver a minha vida, do meu jeito. E, se continuar aqui for um empecilho… então eu vou embora.
Ele emitiu um som estranho com a garganta, algo entre um rosnado contido e um suspiro irritado.
Passou a mão pelos cabelos num gesto claro de impaciência e apenas balançou a cabeça, parecendo frustrado. Na verdade, eu conseguia entender o motivo.
Apesar de nenhum de nós dois querer dar o primeiro passo, tínhamos consciência do laço que nos atraia. Apenas estávamos sendo teimosos em não aceitar.
Eu tinha meus motivos — e ele, provavelmente, os dele.
— Tenho um quarto reserva. Não é grande, nem muito confortável, mas é melhor do que dormir ao relento.
— Eu não quero incomodar, Killiam. Você já fez muito por mim ao permitir que eu trabalhasse aqui.
— Isso não está em discussão, Aurora. Assim que o expediente terminar, vou lhe mostrar onde fica.
Só quando saí daquele escritório percebi que estava prendendo a respiração. Soltei o ar de uma vez, pesado, como se aliviasse um peso do peito.
Minha loba, no entanto, parecia ter captado algo que me escapara — e ronronava, satisfeita, como se tivesse acabado de receber um banquete.
Percebi que Suelen me observava com um sorriso. No mínimo, ela já sabia do que se tratava quando aquele homem me chamou até o escritório.
— Agora você não vai mais precisar das areias da praia para dormir — declarou ela, ainda sorrindo.
— Mas também não terei o céu nem a lua para admirar.
— Você preferiria continuar lá? — perguntou, confusa.
— Claro que não, sua boba. Estou muito feliz com esse arranjo. Só não sei se Killiam ficou tão feliz assim.
— Não se preocupe com aquele homem. Ele rosna como um animal enfurecido às vezes, mas não morde.
Aquele comentário nos fez sorrir, mas logo um arranhar de garganta soou, confirmando que ele havia voltado ao salão. Caminhei até a cozinha sem sequer olhar para trás, enquanto Suelen parecia não se incomodar com aquilo.
Passei o dia ansiosa para que o expediente terminasse logo e eu pudesse finalmente conhecer o lugar onde ficaria.
Quando tudo já estava organizado e Suelen se despediu de nós, Killiam me conduziu pelo corredor onde ficava seu escritório e apontou para uma porta que eu não havia notado antes.
— Você pode ficar aqui. Qualquer coisa, estarei no primeiro andar — disse ele, encarando-me por um instante.
Nossos olhares se encontraram mais uma vez, e ficaram presos um no outro, como se o tempo tivesse parado ao nosso redor.
Havia algo nos olhos dele... um conflito silencioso, uma barreira invisível que o impedia de ceder — assim como eu.
Desviei o olhar, sufocando tudo o que sentia, e entrei carregando a única mochila que trouxe comigo quando fugi — aquela que guardava todos os meus pertences.
Ele apenas me desejou boa noite e se afastou, deixando-me ali, sozinha com meus pensamentos.
Realmente não existia muito conforto ali, mas só o fato de não estar ao relento já era um grande avanço… pela primeira vez em anos, eu me sentia... segura.
Não era muito — mas era algo. Meu canto, mesmo que cedido. Um começo. Fechei os olhos por um instante e deixei um sorriso escapar, ainda que tímido.
Nunca imaginei que algo tão simples como conseguir um emprego pudesse aquecer tanto o coração.
Depois de dias dormindo ao relento e tomando banho no banheiro de um posto, ter um lugar — mesmo que pequeno como aquele — já era um começo.