O tempo parecia não existir naquele instante; só havia os olhos de Cassian, cravados nos meus, ferrados de ódio e desconfiança. Era como se eu fosse algo sombrio demais para encarar de frente.
Do lado de fora, vi lobos prontos para atacar. Levantei a mão num gesto seco; eles recuaram, sem baixar a guarda. Uma luta agora só espalharia sangue. Permaneci onde estava, sem desviar dele. O lobo ferido, ainda meio inconsciente, moveu-se e fitou o irmão: — Cassian... Onde... Estou? — questionou, praguejando de dor. Cassian recuou, ainda em posição de ataque — um animal pronto para rasgar quem se interpusesse. O corpo dele começou a estalar, contorcendo-se; membros humanos foram surgindo, pele substituindo pelagem, até que tombou de joelhos e, por fim, estava em sua forma humana. Levantou-se. Virei o rosto, sentindo o calor subir às faces. Peguei uma toalha e lancei para ele. — Use isto. Ele se enrolou com calma quase provocativa e aproximou-se da cama. Eu dei um passo atrás, enquanto ele examinava o irmão. — O que ele está fazendo aqui? — a voz grave partiu o ar. Engoli em seco. — Ele foi encontrado ferido, por alguns dos nossos lobos guerreiros. E foi trazido até mim. Ele estava... Muito ferido, quase morto. Os olhos de Cassian voltaram a mim, em brasa. — Quer que eu acredite nisso loba branca?! Instintivamente, recuei meio passo. O predador estava logo ali, rente à pele. — Eu não tenho porque mentir sobre isso. — Não tem? — Não. — Então como meu irmão veio parar justo nas mãos dos lobos brancos!? — Eu já disse que... — Não ouse insultar minha inteligência! — o rosnado na voz gelou meu estômago. Qualquer olhar errado seria afronta. Eu respirei curto, contida. — Cass... — o irmão sussurrou, e Cassian virou-se de imediato, aproximando-se dele. — Draco, Eu... Eu pensei que você estivesse morto. — Eu não estou? — Não, não... Ainda não. — lançou-me um olhar de esguelha, duro. — O que eu tô... Fazendo aqui? — Eu não sei, me diga você. Draco tossiu, exausto. Cheguei com água, mãos firmes por fora, trêmulas por dentro. Cassian acompanhou cada movimento, como se eu pudesse envenenar uma gota. Draco bebeu, cedeu ao cansaço e adormeceu. — Eu vou levá-lo embora agora. — Não pode fazer isso. — E quem você acha que é para dizer o que eu posso ou não fazer? — Eu sou a pessoa que salvou a vida de seu irmão. — ergui o queixo e sustentei o olhar. — Ele ainda não morreu, mas uma viagem nas costas de um lobo arrebentaria os pontos e mataria ele em segundos. Se quiser que ele viva, vai deixá-lo aqui. A linha do maxilar dele endureceu, como se minhas palavras fossem uma afronta por existir. Não esperei a próxima mordida. Saí da tenda com as pernas firmes e o coração em chamas por ainda estar inteira. Lá fora, toquei o colar de meia-lua que ainda existia em meu pescoço , uma lembrança distante de uma promessa mais distante ainda. deixei o ar escapar devagar. Minha mãe se aproximou. — É ele, não é? — Sim. — Deuses... — Os lobos estão prontos para combatê-lo. — Não mãe. — segurei seu braço. Ela me fitou confusa, com intensidade. — Eu tenho uma ideia que pode mudar as coisas. — disse olhando em seus olhos. — O que você está falando Elara? — Apenas... Confie em mim. O olhar dela dizia que não confiava. Talvez com razão. --- Na manhã seguinte, voltei à tenda. O ferido ainda dormia; Cassian permanecia de pé, imóvel, um vigia talhado em pedra. Ao me ver, ergueu o rosto — o mesmo olhar cortante, um aviso silencioso. Aproximei-me de seu irmão, toquei as bordas das suturas, conferi o calor da pele, preparei o remédio e ajudei a engolir. Depois, encarei Cassian. — Ele ficará bem, só precisa de mais dois dias de descanso. — E como sabe disso? — Eu tenho experiência cuidando de doentes. — É claro que tem. — as palavras cuspidas, secas. Contive o tremor dos dedos. — Outros lobos cobrariam um preço justo por esse ato meu, de salvar seu irmão. — Eu estava arriscando tudo ainda mais, cruzando uma linha ainda pior do que podia imaginar. Estava perdendo totalmente a sanidade. E seu olhar colado em mim com incredulidade, só confirmava isso. — Não está falando sério loba. — Sim, estou. — O que você fez, não é nada menos e nada mais do que sua obrigação. — ele avançou um meio passo, aço na voz. — Obrigação de sua maldita alcatéia. E você ainda quer receber algo por isso? Hilário. — Eu disse que outros cobrariam. Os olhos dele estreitaram, avaliando. Suspirei pesadamente, sentia que podia desabar a qualquer instante. — Eu tenho uma proposta para você. — Proposta? — Eu não cobrarei nada pela vida de seu irmão, e... Direi algo que ajudará não só a mim, mas a você e aos nossos. — respirei, firmei os ombros. — Lhe proponho uma aliança de casamento. O silêncio pesou como pedra. Eu esperava a gargalhada, o insulto. Recebi aquela expressão indecifrável — e a sensação de que, aos olhos dele, eu tinha cruzado um limite do qual não havia retorno.