Heloísa Moura
Desde aquela noite no jardim, algo dentro de mim se partiu.
Ele não me beijou. Não como eu queria. Me deu um beijo na face, com aquele toque cuidadoso de sempre, e me disse que eu era uma criança. Que ele tinha idade para ser meu pai.
Mas ele não é meu pai.
E aquilo doeu mais do que qualquer tapa, mais do que qualquer palavra fria poderia doer.
Fiquei ali, sozinha, sentindo o peso do silêncio e do vazio. O vestido azul ainda brilhava sob a luz da piscina, mas dentro de mim, tudo estava escuro. Eu tinha criado coragem, tinha dado um passo. E ele recuou.
Desde então, Vittorio tem evitado até me olhar nos olhos. Quando vem à nossa casa, mal permanece por mais de alguns minutos. Sempre tem um compromisso, um telefonema, qualquer desculpa para fugir. E a cada vez que ele faz isso, algo em mim grita.
Mas eu não vou desistir.
Não sou mais uma menininha de tranças e joelhos ralados. Ele precisa ver isso. Ele precisa me enxergar como eu sou agora — como mulher.
No domingo, temos o jantar em família. Vittorio está convidado, como sempre esteve, mas agora cada encontro é um campo minado.
Escolho com cuidado o vestido: vermelho, justo, com alças finas e decote discreto, mas firme. O suficiente para causar desconforto. O suficiente para ele perceber que algo mudou.
Desço para a sala. Meus pais já estão entretidos na conversa sobre os vinhos e o prato principal. Vittorio está ali também, sentado ao lado do meu pai, com o terno impecável e a expressão tensa assim que nota minha presença.
Sento bem em frente a ele.
A conversa flui entre os adultos, e eu finjo estar distraída com o prato. Mas estou atenta a cada movimento dele. A cada desvio de olhar. A cada vez que seus olhos hesitam em parar em mim. Cruzo as pernas devagar, e quando vejo seu maxilar se contrair sutilmente, sorrio.
É sutil, mas é uma reação.
Durante a sobremesa, me levanto fingindo um tropeço e me apoio de leve em seu ombro. Sinto seus músculos se enrijecerem sob meu toque.
— Desculpe, Vittorio — murmuro ao pé de seu ouvido, me demorando um segundo a mais do que o necessário.
Ele segura meu braço com delicadeza, firme o bastante para que eu pare.
— Heloísa… — sua voz é baixa, tensa, quase um aviso.
Eu sorrio, sem medo, encarando-o.
— Você não pode fugir para sempre. Precisamos conversar.
Me afasto antes que ele possa dizer qualquer coisa. Sento novamente à mesa, o coração batendo rápido, mas não por medo — por vitória.
Ele sentiu. Eu vi.
O que quer que ele diga, o que quer que ele pense, Vittorio não é imune. Ele pode tentar me evitar, pode fingir que sou só a filha do melhor amigo. Mas aquele beijo no jardim — mesmo que tenha sido só na bochecha — foi um marco.
A linha entre nós foi traçada naquela noite. E por mais que ele tente apagar… eu estou aqui, pronta para cruzá-la.
Vittorio Bianchi
Desde aquela noite no jardim, eu não sou mais o mesmo.
Ela me pediu um beijo, e eu fiz o que achei ser o certo: beijei sua face e disse que ela era uma criança. Que eu tinha idade para ser seu pai.
E ela respondeu, com aqueles olhos firmes e convictos, que eu não era o pai dela.
A frase ficou martelando na minha cabeça desde então.
Tento evitá-la. Evito a casa dos Moura sempre que posso. Quando apareço, é sempre por pouco tempo, sempre com uma desculpa pronta. Mas hoje, no jantar de família, não consegui escapar.
Ela estava lá. Sentada à minha frente. E não era mais a menina que costumava subir no meu colo com um caderno de desenhos e as bochechas sujas de chocolate.
Não. Hoje, ela era uma mulher.
O vestido vermelho a envolvia como um desafio. As alças finas deixavam seus ombros à mostra, e quando cruzou as pernas devagar, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, precisei controlar a respiração.
Eu não devia estar olhando. Mas olhei.
Desviei no segundo seguinte, envergonhado, irritado comigo mesmo.
Conversei com Hugo, fingi ouvir cada palavra sobre negócios, investimentos, novos projetos. Mas não consegui manter a concentração. Cada vez que eu sentia o olhar dela sobre mim, era como uma fisgada.
Durante a sobremesa, ela se levantou e, de propósito ou não, esbarrou em mim. Sua mão tocou meu ombro, quente, suave, e sua voz — agora mais grave do que eu lembrava — roçou o meu ouvido:
— Desculpe, Vittorio.
Meu corpo inteiro reagiu, mesmo que eu tentasse manter o controle. Segurei seu braço, quase como um reflexo. Era demais. Era perigoso.
— Heloísa... — foi tudo que consegui dizer.
Mas ela apenas sorriu. Aquele sorriso entre desafio e provocação. Aquilo me matou. Porque por mais que eu tente me afastar, ela sabe. Ela sente.
— Você não pode fugir para sempre. Precisamos conversar.
Ela se afastou antes que eu pudesse reagir, e eu fiquei ali, sentado, como um homem à beira do abismo.
A sobremesa já não tinha gosto. O vinho não me distraía. Só conseguia pensar: em que momento ela deixou de ser uma menina? Em que momento eu passei a enxergá-la assim?
Isso não pode acontecer. Eu não posso permitir. Sou amigo do pai dela. Vi aquela garota crescer, peguei ela no colo quando nasceu. Isso é errado em tantos níveis que nem consigo contar.
Mas há algo em mim — algo sombrio, escondido — que reage a cada olhar dela, a cada provocação. E isso me assusta.
Preciso me afastar. De verdade, dessa vez. Preciso proteger a mim mesmo… e a ela.
Porque se eu ceder, se eu cruzar essa linha...
Não sei se consigo voltar.
Não durmo naquela noite.
As palavras dela — “você não pode fugir para sempre” — ficam girando na minha mente como um eco perverso. Sei que ela vai insistir. Sei que, se eu não cortar isso pela raiz, logo estarei envolvido num jogo que não posso, nem quero, vencer.
No dia seguinte, mando uma mensagem para Hugo, inventando uma desculpa qualquer para passar na casa deles. Ele não desconfia. Por que desconfiaria? Confia em mim como um irmão.
Mas não é com Hugo que preciso falar.
Ela está no jardim, sozinha, como se já soubesse que eu viria. Está sentada no balanço antigo, aquele que instalei com o pai dela, quando ela tinha sete anos. Está mais linda do que deveria. Um vestido leve, os cabelos soltos, os pés descalços roçando a grama. Parece uma visão, e isso me apavora.
— Sabia que você viria — diz sem olhar para mim.
— Precisamos conversar.
Ela sorri, sem surpresa. Seus olhos me encontram. São calmos. Determinados.
— Então fale.
— Isso tem que parar, Heloísa. Esse jogo. Essa provocação. Você sabe que é errado. Eu sou amigo do seu pai. Você é praticamente da minha família.
— Eu nunca te vi como família.
As palavras dela são simples, diretas. E ainda assim, me atingem com mais força do que qualquer tapa.
— Você é jovem. Vai entender um dia. Vai perceber que isso... o que você acha que sente, não é real.
Ela se levanta. Vem até mim. Está perto demais.
— E o que você sente, Vittorio? Não é real também?
Engulo seco.
— Eu sinto medo — confesso. — Medo de machucar você. Medo de decepcionar o Hugo. Medo de me decepcionar.
Ela ergue a mão e a apoia suavemente sobre meu peito. Meu coração dispara sob seus dedos.
— Então por que você veio?
Não consigo responder.
Porque a verdade é cruel. Vim porque precisava vê-la. Precisava dizer a ela que aquilo era impossível... mas, no fundo, queria que fosse possível.
— Isso é errado, Heloísa.
— Errado é fingir que não sente nada. — Sua voz agora é baixa, firme. — Errado é fugir de algo só porque dá medo.
Ela se aproxima mais, e por um instante, acho que vai tentar me beijar. Mas para minha surpresa, ela não o faz.
— Eu não vou forçar você, Vittorio. Mas também não vou desistir.
Então ela me deixa ali, sozinho, com um coração em guerra e um futuro prestes a desmoronar.
E pela primeira vez... eu não tenho certeza se vou conseguir dizer "não" de novo.
Vittorio BianchiNão entendo o que se passa na cabeça dessa garota. Sei apenas que ela está brincando com fogo — e o pior é que sou eu quem está prestes a queimar.Vejo Hugo e os demais indo para a sala enquanto os empregados retiram os pratos da mesa. Pelo canto do olho, percebo Heloísa deslizando silenciosamente pelos fundos da casa. Meu corpo reage antes da minha razão: dou um passo, depois outro, até a seguir.Desde quando ela se tornou essa mulher? Tão segura, tão certa do que quer — e tão imprudente?— Vittorio? — Ela se vira e me encontra. Me amaldiçoo por dentro. Estou aqui. De novo. Envolvido nesse laço invisível que ela insiste em puxar.— Heloísa, precisamos conversar. Você tem que esquecer o que pensa que sente por mim. Ela ergue o queixo com a audácia de quem sabe exatamente o que faz.— Não fuja, tio. Sei o que senti e sei que você sentiu também, quando me beijou, mesmo que tenha sido apenas um beijo em minha face.Engulo em seco. Minhas defesas estão caindo rápido demai
Vittorio BianchiAtualmente...Não havia um só dia em que Heloisa não invadisse meus pensamentos. Por mais que eu me esforçasse para esquecê-la, as noites tornavam-se refúgios de tentativas vazias — encontros sem sentido, rostos esquecíveis, momentos que não deixavam marcas. Nenhuma delas era ela. Nenhuma apagava o gosto do beijo proibido, nem o peso da culpa que carregava.Vasculhei redes sociais em vão. Nenhuma pista, nenhuma foto. Era como se tivesse evaporado do mundo digital, tornando-se apenas uma lembrança persistente.O toque do celular interrompeu minha tormenta. Era Hugo.— Hugo, isso é uma surpresa — atendi, tentando soar casual. — A que devo a honra?— Vim te fazer um convite — disse ele, animado. — Heloisa terminou o curso de sommelier e foi a primeira da turma. Estou muito orgulhoso da minha menina.O nome dela caiu como um raio no meio da tarde calma. Meu peito apertou, a respiração falhou por um segundo.— Meus parabéns a ela — respondi, forçando neutralidade. — Mas não
Vittorio BianchiFico olhando para o vazio, como ele pode falar algo assim e agir nesta naturalidade, não posso ficar no mesmo ambiente que a Heloisa, não sei como ela está, hoje já é uma mulher, só de lembrar daquele beijo em seu aniversário meu membro dá sinais.Como vou permanecer debaixo do mesmo teto que ela e não pirar de vez?Eu passo as mãos pelos cabelos, tentando afastar os pensamentos que insistem em me assombrar. Hugo saiu do quarto como se tivesse soltado uma bomba e simplesmente seguido em frente, sem se importar com o estrago que deixou para trás. Mas o pior ainda está por vir.Não preciso esperar muito. A porta se abre novamente, e então, ela entra.Heloisa. Mais linda do que eu lembrava, tento me ajeitar na cama para que minha ereção não fique visível.Meu peito aperta ao vê-la depois de tantos anos. A garota que peguei no colo cresceu, se transformou em uma mulher que não deveria estar neste quarto, não me olhando assim, com aqueles olhos grandes e curiosos que parec
Heloisa Moura Assumir a vinícola não era um problema para mim. Eu entendia de safras, fermentação e a delicadeza do envelhecimento de um bom vinho. O que realmente tornava essa experiência um desafio era outra coisa.Ou melhor, outra pessoa, Vittorio.Desde que vim para a Itália, ele se manteve à distância, como se minha presença o incomodasse mais do que as próprias dores do acidente. Mas eu sabia que, por trás daquela frieza, havia algo mais.— Ele já tomou os remédios? — perguntei a Matteo, que é um filho de um dos funcionários mais antigos do Vittorio, enquanto verificava a colheita das uvas.— Tomou, sim, mas com muito custo — ele riu. — Ele não gosta de admitir que precisa de ajuda.Revirei os olhos, já esperando aquela resposta.— Vou falar com ele. Obrigada, Matteo.Saí do campo e caminhei até a casa principal. Vittorio estava em repouso forçado, mas sabia que ele odiava essa situação.Bati na porta e entrei sem esperar resposta. Ele estava sentado na beira da cama, com a cam
Vittorio Bianchi Heloísa saiu do banheiro sem olhar para trás, e eu fiquei parado ali, com a toalha enrolada na cintura, sentindo o corpo inteiro tenso.Ela me desafiava de uma forma que nenhuma outra mulher já tinha feito. Não era com palavras afiadas ou provocações vazias, mas com a verdade crua do que sentia.Ela me queria, e droga, eu também a queria.Encostei as mãos na pia, fitando meu reflexo no espelho. O corte na testa, as olheiras fundas, a expressão exausta… Eu parecia um homem à beira do colapso.E talvez estivesse.Passei a toalha nos cabelos molhados e saí do banheiro. Vesti uma calça de moletom com dificuldade, meu corpo inteiro protestando contra qualquer movimento. Mas a dor física não era nada comparada à outra.Eu deveria me afastar.Mas, quando desci para tomar um pouco de água na cozinha, dei de cara com ela na sala de estar, analisando alguns papéis da vinícola. Seu cabelo estava preso em um coque bagunçado, uma taça de vinho de lado, caneta entre os dedos enqua
Heloisa Moura O ar da vinícola era sempre carregado com aquele aroma adocicado de uvas maduras e madeira envelhecida. Eu já tinha me acostumado com isso, assim como tinha me acostumado com Vittorio e sua mania insuportável de me afastar sempre que as coisas ficavam intensas.Mas hoje... hoje eu estava cansada desse jogo.Me sentei na varanda com alguns relatórios da safra e logo Matteo apareceu. Ele era do tipo que conversava fácil, cheio de histórias sobre o cultivo, o processo de vinificação entre outros. E eu gostava de ouvir.E, claro, eu sentia o olhar de Vittorio queimando em mim a cada risada que escapava dos meus lábios.— Então, vocês fazem a colheita sempre de madrugada? — perguntei, interessada.Matteo sorriu, se encostando no batente da varanda.— Sim. O frescor preserva melhor o sabor das uvas. — Ele fez uma pausa e me olhou com curiosidade. — Você tem jeito de quem gostaria de ver de perto.— Eu adoraria — respondi, sincera.Foi quando senti a presença de Vittorio ante
Vittorio Bianchi Faz um mês que cai do Ébano, e amanhã voltarei no hospital para verificar se está tudo bem e tirar esse gesso que está me deixando impossibilitado. Por um lado estou feliz, pois voltarei ao trabalho com todo vigor, por outro lado, não quero deixar que a Heloísa vá embora. Mesmo que durante todo esse tempo, não tenha acontecido nada entre nós além de provocações, não sei se estou preparado para vê-la partir. Sem que ela saiba tomei a decisão de ligar para o Hugo, preciso de uma desculpa para que ela não volte para Nova Iorque agora. Peguei o celular sobre a mesa de cabeceira e deslizei o dedo pela tela até encontrar o contato de Hugo. Respirei fundo antes de apertar o botão para ligar. Era raro eu recorrer a ele para algo, mas desta vez, não tinha outra escolha. — Vittorio! Como você está? Já está querendo mandar a Heloísa para casa? — Hugo atendeu de imediato, seu tom carregado de bom humor. — Já me recuperando. Amanhã tiro o gesso e volto ao trabalho — r
Heloisa Moura Eu estava organizando algumas anotações sobre os vinhos quando meu celular tocou. Ao ver o nome do meu pai na tela, atendi imediatamente. — Pai? — Bom dia, filha! Como está tudo por aí? — Tudo bem. Vittorio vai tirar o gesso amanhã — disse casualmente, cruzando os braços. — Ótimo! Mas, na verdade, liguei para falar sobre outra coisa. Quero que você fique mais um tempo na vinícola. Franzi o cenho. — Como assim? — O lançamento do novo espumante está se aproximando, e Vittorio mencionou que sua ajuda seria essencial nesse processo. Você criou um bom vínculo com a equipe e está trazendo ideias valiosas. Acho que seria uma excelente experiência para você. Apertei os lábios, sentindo uma irritação sutil crescer dentro de mim. E, ao mesmo tempo, um sorriso brotou de meus lábios. — E foi o Vittorio que sugeriu isso? — Sim, mas eu concordo com ele. Essa pode ser uma oportunidade única para o seu crescimento profissional. Respirei fundo. Meu pai estava realmente con