Capitulo 02

Heloísa Moura

Desde aquela noite no jardim, algo dentro de mim se partiu.

Ele não me beijou. Não como eu queria. Me deu um beijo na face, com aquele toque cuidadoso de sempre, e me disse que eu era uma criança. Que ele tinha idade para ser meu pai.

Mas ele não é meu pai.

E aquilo doeu mais do que qualquer tapa, mais do que qualquer palavra fria poderia doer.

Fiquei ali, sozinha, sentindo o peso do silêncio e do vazio. O vestido azul ainda brilhava sob a luz da piscina, mas dentro de mim, tudo estava escuro. Eu tinha criado coragem, tinha dado um passo. E ele recuou.

Desde então, Vittorio tem evitado até me olhar nos olhos. Quando vem à nossa casa, mal permanece por mais de alguns minutos. Sempre tem um compromisso, um telefonema, qualquer desculpa para fugir. E a cada vez que ele faz isso, algo em mim grita.

Mas eu não vou desistir.

Não sou mais uma menininha de tranças e joelhos ralados. Ele precisa ver isso. Ele precisa me enxergar como eu sou agora — como mulher.

No domingo, temos o jantar em família. Vittorio está convidado, como sempre esteve, mas agora cada encontro é um campo minado.

Escolho com cuidado o vestido: vermelho, justo, com alças finas e decote discreto, mas firme. O suficiente para causar desconforto. O suficiente para ele perceber que algo mudou.

Desço para a sala. Meus pais já estão entretidos na conversa sobre os vinhos e o prato principal. Vittorio está ali também, sentado ao lado do meu pai, com o terno impecável e a expressão tensa assim que nota minha presença.

Sento bem em frente a ele.

A conversa flui entre os adultos, e eu finjo estar distraída com o prato. Mas estou atenta a cada movimento dele. A cada desvio de olhar. A cada vez que seus olhos hesitam em parar em mim. Cruzo as pernas devagar, e quando vejo seu maxilar se contrair sutilmente, sorrio.

É sutil, mas é uma reação.

Durante a sobremesa, me levanto fingindo um tropeço e me apoio de leve em seu ombro. Sinto seus músculos se enrijecerem sob meu toque.

— Desculpe, Vittorio — murmuro ao pé de seu ouvido, me demorando um segundo a mais do que o necessário.

Ele segura meu braço com delicadeza, firme o bastante para que eu pare.

— Heloísa… — sua voz é baixa, tensa, quase um aviso.

Eu sorrio, sem medo, encarando-o.

— Você não pode fugir para sempre. Precisamos conversar.

Me afasto antes que ele possa dizer qualquer coisa. Sento novamente à mesa, o coração batendo rápido, mas não por medo — por vitória.

Ele sentiu. Eu vi.

O que quer que ele diga, o que quer que ele pense, Vittorio não é imune. Ele pode tentar me evitar, pode fingir que sou só a filha do melhor amigo. Mas aquele beijo no jardim — mesmo que tenha sido só na bochecha — foi um marco.

A linha entre nós foi traçada naquela noite. E por mais que ele tente apagar… eu estou aqui, pronta para cruzá-la.

Vittorio Bianchi

Desde aquela noite no jardim, eu não sou mais o mesmo.

Ela me pediu um beijo, e eu fiz o que achei ser o certo: beijei sua face e disse que ela era uma criança. Que eu tinha idade para ser seu pai.

E ela respondeu, com aqueles olhos firmes e convictos, que eu não era o pai dela.

A frase ficou martelando na minha cabeça desde então.

Tento evitá-la. Evito a casa dos Moura sempre que posso. Quando apareço, é sempre por pouco tempo, sempre com uma desculpa pronta. Mas hoje, no jantar de família, não consegui escapar.

Ela estava lá. Sentada à minha frente. E não era mais a menina que costumava subir no meu colo com um caderno de desenhos e as bochechas sujas de chocolate.

Não. Hoje, ela era uma mulher.

O vestido vermelho a envolvia como um desafio. As alças finas deixavam seus ombros à mostra, e quando cruzou as pernas devagar, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, precisei controlar a respiração.

Eu não devia estar olhando. Mas olhei.

Desviei no segundo seguinte, envergonhado, irritado comigo mesmo.

Conversei com Hugo, fingi ouvir cada palavra sobre negócios, investimentos, novos projetos. Mas não consegui manter a concentração. Cada vez que eu sentia o olhar dela sobre mim, era como uma fisgada.

Durante a sobremesa, ela se levantou e, de propósito ou não, esbarrou em mim. Sua mão tocou meu ombro, quente, suave, e sua voz — agora mais grave do que eu lembrava — roçou o meu ouvido:

— Desculpe, Vittorio.

Meu corpo inteiro reagiu, mesmo que eu tentasse manter o controle. Segurei seu braço, quase como um reflexo. Era demais. Era perigoso.

— Heloísa... — foi tudo que consegui dizer.

Mas ela apenas sorriu. Aquele sorriso entre desafio e provocação. Aquilo me matou. Porque por mais que eu tente me afastar, ela sabe. Ela sente.

— Você não pode fugir para sempre. Precisamos conversar.

Ela se afastou antes que eu pudesse reagir, e eu fiquei ali, sentado, como um homem à beira do abismo.

A sobremesa já não tinha gosto. O vinho não me distraía. Só conseguia pensar: em que momento ela deixou de ser uma menina? Em que momento eu passei a enxergá-la assim?

Isso não pode acontecer. Eu não posso permitir. Sou amigo do pai dela. Vi aquela garota crescer, peguei ela no colo quando nasceu. Isso é errado em tantos níveis que nem consigo contar.

Mas há algo em mim — algo sombrio, escondido — que reage a cada olhar dela, a cada provocação. E isso me assusta.

Preciso me afastar. De verdade, dessa vez. Preciso proteger a mim mesmo… e a ela.

Porque se eu ceder, se eu cruzar essa linha...

Não sei se consigo voltar.

Não durmo naquela noite.

As palavras dela — “você não pode fugir para sempre” — ficam girando na minha mente como um eco perverso. Sei que ela vai insistir. Sei que, se eu não cortar isso pela raiz, logo estarei envolvido num jogo que não posso, nem quero, vencer.

No dia seguinte, mando uma mensagem para Hugo, inventando uma desculpa qualquer para passar na casa deles. Ele não desconfia. Por que desconfiaria? Confia em mim como um irmão.

Mas não é com Hugo que preciso falar.

Ela está no jardim, sozinha, como se já soubesse que eu viria. Está sentada no balanço antigo, aquele que instalei com o pai dela, quando ela tinha sete anos. Está mais linda do que deveria. Um vestido leve, os cabelos soltos, os pés descalços roçando a grama. Parece uma visão, e isso me apavora.

— Sabia que você viria — diz sem olhar para mim.

— Precisamos conversar.

Ela sorri, sem surpresa. Seus olhos me encontram. São calmos. Determinados.

— Então fale.

— Isso tem que parar, Heloísa. Esse jogo. Essa provocação. Você sabe que é errado. Eu sou amigo do seu pai. Você é praticamente da minha família.

— Eu nunca te vi como família.

As palavras dela são simples, diretas. E ainda assim, me atingem com mais força do que qualquer tapa.

— Você é jovem. Vai entender um dia. Vai perceber que isso... o que você acha que sente, não é real.

Ela se levanta. Vem até mim. Está perto demais.

— E o que você sente, Vittorio? Não é real também?

Engulo seco.

— Eu sinto medo — confesso. — Medo de machucar você. Medo de decepcionar o Hugo. Medo de me decepcionar.

Ela ergue a mão e a apoia suavemente sobre meu peito. Meu coração dispara sob seus dedos.

— Então por que você veio?

Não consigo responder.

Porque a verdade é cruel. Vim porque precisava vê-la. Precisava dizer a ela que aquilo era impossível... mas, no fundo, queria que fosse possível.

— Isso é errado, Heloísa.

— Errado é fingir que não sente nada. — Sua voz agora é baixa, firme. — Errado é fugir de algo só porque dá medo.

Ela se aproxima mais, e por um instante, acho que vai tentar me beijar. Mas para minha surpresa, ela não o faz.

— Eu não vou forçar você, Vittorio. Mas também não vou desistir.

Então ela me deixa ali, sozinho, com um coração em guerra e um futuro prestes a desmoronar.

E pela primeira vez... eu não tenho certeza se vou conseguir dizer "não" de novo.

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