Mundo ficciónIniciar sesiónAlonzo
O som do salto dela contra o degrau da escada ecoou no hall. Não era necessário olhar para saber que era Antonella. Reconheceria seu andar em qualquer lugar, leve, hesitante, mas firme o suficiente para não implorar afeto de ninguém. Nem do próprio marido. A porta do meu escritório estava entreaberta. Eu deveria estar concentrado nos números, nos relatórios, nas aquisições da Karvell Corporation em Toronto. Mas tudo em mim se inclinava à direção dela. Como sempre. Como se fosse instinto. Acompanhei seu reflexo pela lateral da parede de vidro. Ela passou direto, indo em direção à sala de jantar. Sozinha. De novo. O jantar que ela preparou mais cedo ainda estava sob a redoma. E eu… eu já tinha comido. Mentira. Eu tinha tomado café às três da tarde e mais nada. Mas ficar ali, diante dela, com aquelas velas acesas e o olhar de esperança discreta, era tortura demais. Fingir que não me importava era a única forma de sobreviver. Apertei os olhos e girei a cadeira de volta para a mesa. O relógio marcava 21h10. Tarde demais para discutir sentimentos. Cedo demais para desistir. Alguém bateu na porta. Eu voltei ao mundo real. — Pode entrar. Poucos segundos depois, Pietro, meu advogado e homem de confiança, apareceu com sua pasta surrada e o cansaço de quem vive de cláusulas e contratos. — Boa noite, Alonzo. Trouxe o adendo que me pediu. — Ótimo. Senta aí. Vai um whisky? — Não recuso. Servi dois dedos e deslizei o copo para ele. — Algum problema com o contrato de casamento? — perguntei, direto. — Nenhum. Está tudo legalmente amarrado. Os três anos são inquebráveis. Mesmo que uma das partes queira encerrar antes, só poderá fazê-lo com multa altíssima e comprovação de dano real. Assenti, olhando para a assinatura de Antonella no papel. — E se ela… quiser ir embora? — Precisa da sua autorização. O acordo é claro. Moradia conjunta obrigatória. Só depois de três anos pode haver separação consensual, se for o caso. Apertei os lábios. — Não sei por quanto tempo mais eu vou aguentar. Pietro me observou. — Está falando da convivência… ou do desejo? Soltei uma risada seca. — Estou falando de tudo. Da proximidade. Da forma como ela me olha. Como espera algo de mim que eu não posso entregar. Como se eu ainda fosse capaz de amar sem destruir. — Você ama ela? Fiquei em silêncio. A resposta era óbvia. E, por isso mesmo, impossível de ser dita. — Não é da sua conta. — Então por que me chamou aqui hoje? — Pra me lembrar que ainda tenho uma cláusula me protegendo de mim mesmo — respondi. — Isso já é suficiente. Ele terminou o whisky, levantou-se. — Só não esquece de uma coisa, manter distância pode salvar você de muita dor… mas também pode impedir de viver algo real. Até mais, Alonzo. Assenti. Ele se foi, deixando para trás aquele lembrete inútil de que sentimentos não podem ser enterrados pra sempre. Pelo menos não quando Antonella é o motivo deles. Vinte minutos depois, Letícia entrou sem bater. Eu esqueci que ela iria passar por aqui para trazer uns documentos. — Boa noite, senhor Karvell. Ela trazia pastas nas mãos, vestida com um conjunto preto justo demais para o clima de Toronto, mas aparentemente ideal para os objetivos dela. — Você bateu algum recorde de produtividade? — perguntei, sem levantar os olhos. — Achei que poderia ser útil adiantar os relatórios do comitê de investimento e trazê-los junto com os documentos que pediu — respondeu, pousando os papéis sobre a mesa. — E trazer um último café. Como sempre faço. — Obrigado. Deixe aí. Ela não saiu. Permaneceu parada, observando meu rosto com atenção demais. — Está com cara de quem não dorme bem há semanas. — Isso também não é da sua conta. — Só me preocupo. O senhor tem se mostrado… distante. Levantei os olhos, fixei os dela. — E o que exatamente você acha que tem direito de saber sobre minha vida pessoal, Letícia? Ela sorriu, dando um passo mais perto da mesa. O perfume doce invadiu o ambiente, forte demais para o fim da noite. — Nenhum direito. Mas não sou cega, Alonzo. Sei que tem algo te incomodando. Algo que envolve aquela mulher com cara de quem ainda espera um gesto seu. O sangue me subiu ao rosto. — A Antonella é minha esposa. Isso basta. — Uma esposa que você evita. Que você nunca leva para os eventos da empresa. Que todos sabem ser uma formalidade. — Chega — interrompi. — Não se confunda, Letícia. Ela deu mais um passo, apoiando as mãos na borda da mesa. — Você é um homem desejado, Alonzo. E não precisa se prender a algo que não te faz feliz. — Não estou pedindo conselhos sentimentais. E você está ultrapassando o limite. — Só estou sendo sincera. Diferente dela, que continua tentando… mesmo sabendo que você não vai corresponder. Fiquei em silêncio por um instante. Depois me levantei. — Pode sair. Agora. Ela hesitou, claramente frustrada, mas obedeceu. Antes de sair, virou-se para trás e disse: — Um dia, essa farsa vai cansar você. E talvez eu ainda esteja aqui… quando isso acontecer. Fechei a porta assim que ela cruzou o corredor. A respiração pesada, o pulso acelerado. Letícia era esperta, ambiciosa. E eu sabia disso desde o primeiro ano de trabalho com ela. Mas nunca tinha cruzado a linha. Até hoje. Fui até a janela, observando a neblina encobrindo a vista noturna de Toronto, sai para andar no jardim. No quarto no andar de cima, a luz do abajur de Antonella ainda estava acesa. Ela sempre deixava aceso até tarde. Esperando. Tentando. Sofrendo. E eu… eu estava quebrado demais pra responder a isso. Encostei a testa na pilastra, fechando os olhos. — “Ela merece mais do que essa prisão disfarçada de casamento” — pensei. — “Mas ao mesmo tempo… ela é a única coisa que ainda me prende à ideia de que eu posso ser alguém decente.” Por isso eu a mantinha longe. Por isso fingia frieza. Porque o que eu sentia por Antonella… era exatamente o que me apavorava. Voltei para dentro da mansão, voltei para o escritório, mas me senti um rato na roda de hamster. Deixei o escritório e fui lentamente até o meu quarto. O silêncio era um lembrete cruel de tudo o que eu evitava sentir. Tirei a camisa, soltei a gravata e fui direto até o bar de canto. Peguei a segunda garrafa de uísque da noite. Sem gelo. Sem pressa. Só o amargo descendo pela garganta como anestesia. O celular vibrou sobre a cômoda. Axel. — Fala — atendi, a voz rouca. — “E aí, irmão. Já dormindo?” — Ainda acordado. E você? Como está a Bélgica? — “Fria, chata e cheia de reuniões. Mas me conta de você. Já admitiu que está apaixonado?” Soltei uma risada seca. — Não começa, Axel. — “Tô falando sério. Você está se afundando tentando manter distância de algo que já te pegou.” — Não posso, cara. Não com ela. Não desse jeito. — “Por quê?” — Porque ela acredita em mim. E se eu me entregar… vou acabar destruindo isso também. Seria um erro. Um erro imperdoável. — “Ou pode ser o único acerto da sua vida.” — Boa noite, Axel. Desliguei antes que ele insistisse. Bebi mais um gole e encarei meu reflexo no espelho. Talvez o erro… já tivesse começado.






