O cheiro dela me perseguia. Não importava quantos litros de rum eu afogasse na garganta, quantas vezes eu esfregasse o rosto com água salgada. Lavanda e sangue. Era o que ela exalava, mesmo depois de eu ter jogado aquele vestido podre ao mar. Lavanda das freiras mortas. Sangue do corte que ela dizia nunca ter existido no ventre. Eu a observei da escotilha, escondido nas sombras como um cachorro faminto. Ela estava no meu camarote—meu espaço, minhas paredes marcadas por facas e mapas roubados—sentada no chão, encolhida contra a cama. Os dedos dela traçavam o contorno de uma mancha de vinho no madeirado, como se ali estivesse escrito algum tipo de salvação. — Vai ficar a noite toda encarando ou vai entrar? — a voz dela saiu rouca, mas firme. Entrei, fechando a porta com o pé. O Arraia Negra rangia como um velho reclamão, mas ali, naquela sala apertada, o único som era a respiração dela. Curta. Controlada. Assustada. — Você devia estar dormindo — gritei, mais para me convencer d
Alguns minutos depois, ela acordou. Quando me viu, ficou claramente assustada, mas manteve a postura agressiva. — O que quer? Já sabe o que eu sou! Sabe que posso matar todo mundo aqui. Não se aproxime. Caminhei até a escrivaninha com passos calmos. — Perguntei se era virgem porque Dolphin é a cidade do prazer. Uma virgem seria morta, estuprada ou presa depois de roubar comida. Ela não pareceu se acalmar, então continuei. — Não somos bárbaros... bem, algumas vezes, mas nem sempre. Deixaremos você em Timer. Um colega tem uma estalagem. Você não será rica, mas não vai passar fome ou frio. Ela me olhou desconfiada. — Por que está fazendo isso? — perguntou, se encolhendo no canto da parede do camarote. Eu gostaria de ter resposta para essa pergunta. — Salvei sua vida, tenho que me responsabilizar agora — uma mentira bastante convincente, pensei comigo mesmo. — Sendo assim, vou garantir que você viva, pelo menos até descer do navio. Puxei a gaveta da minha escrivaninha e
Passei muito tempo com ela, e cheguei a pensar que era só mais uma entre tantas mulheres na minha vida. Mas me enganei. Me apaixonei. "Você é diferente dos outros", ela sussurrou na primeira noite que passamos juntos, seus dedos traçando as cicatrizes nas minhas costas. Eu era jovem e estúpido o suficiente para acreditar. Depois de um ano ao lado dela, me sentindo o homem mais feliz do mundo, decidi pedi-la em casamento. Mas, na noite anterior, Hedrien entrou no meu quarto, apressado, olhando pela janela como se temesse ser ouvido por alguém além de mim. "Tess, acorda!" Hedrien sacudiu meu ombro com força, o rosto pálido à luz da lamparina. "Olha isso." Os documentos que ele espalhou sobre minha cama cheiravam a tinta fresca e sigilo. "O velho Dain está desviando suprimentos dos postos fronteiriços", ele sussurrou, os olhos ardendo com aquela luz de justiça que sempre o condenaria. "Vou viajar depois de amanhã até o quartel de Nailli. Preciso pegar mais algumas informações e, depoi
— Capitão — a voz de Garrick me arrancou do passado. — A tripulação tá comentando. — Ele acendeu um cachimbo de ópio. — Dizem que a garota é bruxa. Que trouxe a tempestade. Olhei para o horizonte. O céu estava limpo, estrelado, mas um bom pirata sabe que não deve confiar no céu limpo. — E você? Acredita nessa bobagem? Ele cuspiu no chão. — Acredito que você tá arriscando o pescoço por uma mina que nem sabe amarrar um nó. Sorri, sem humor. — Eu arrisco meu pescoço todo dia, Garrick. Pelo menos dessa vez, o prêmio é bonito. Ele bufou, mas não discutiu. Ninguém no Arraia discutia comigo. Não depois do que eu fiz por eles. — E se ela tentar fugir? — Não vai. — Como pode ter tanta certeza? Encostei na amurada, sentindo o sal grudar na minha pele. — Porque ela não tem pra onde ir. — Você me disse que quem não tem nada a perder, não tem nada a temer. Encarei meu imediato por alguns segundos, tentando encontrar algo para dizer que provasse que ele estava errado, mas
TESSAR VRYNN Eu não sabia o que estava acontecendo. Estava no meu camarote, concentrado nas cartas náuticas, traçando uma rota que nos mantivesse longe da enseada de Lhamar, a ilha das sereias. Se fôssemos pegos pelo seu canto, o navio inteiro poderia se perder. Era um risco que eu não estava disposto a correr. Então começaram os golpes no casco. Não parecia um canhão. O barulho era diferente, mais seco, como se algo estivesse se chocando contra a madeira repetidamente. Saí do camarote em passos rápidos, o cenho franzido, já preparado para qualquer ataque, mas o que vi no convés me deixou surpreso. Meus homens estavam parados, olhando maravilhados para o mar. Alguns pareciam encantados, outros assustados. E quando segui seus olhares, entendi o motivo. Peixes-espada se jogavam contra o navio. Um após o outro, como se tivessem enlouquecido. Alguns não sobreviveram ao impacto, caindo mortos na água ou deslizando pelo convés encharcado. — Bem, não precisaremos de suprimentos
Liora Nix Acordei depois do desastre dos peixes. O mar estava calmo, e o céu, mais estrelado do que nunca. Uma visão linda, quase irreal. O convés estava silencioso, apenas o marujo no topo do mastro montava guarda. Observei quando ele desceu devagar e, estranhamente, me desejou boa noite antes de seguir em direção à cozinha. Apesar do frio, não me cobri. Só queria sentir aquele momento, respirar a brisa salgada. A sensação de querer ir embora havia sumido, e isso era estranho. Ele fez isso comigo. De alguma forma, parecia ter arrancado a dor de dentro de mim com as próprias mãos. Me chamavam de bruxa, mas quem teve o poder de acalmar o mar dentro de mim foi ele. Ouvi passos lentos atrás de mim. Era ele. Por um momento, achei que fosse me abraçar por trás, mas ele respeitou meu espaço e sentou-se ao meu lado. — Se sente melhor? — Sua voz grave era baixa, quase um sussurro. Assenti sem encará-lo. — A tripulação pediu para que eu lhe agradecesse. Os peixes vão evitar que pass
Meu corpo parecia estar sendo eletrocutado. Cada vez que ele abria a boca, meu corpo respondia. Estamos longe da Baía da Espuma, então por que estou me sentindo assim? Meu corpo queima. O frio na minha barriga, ao invés de me congelar, me aquece. Não sei o que acontece quando ele age assim... dessa forma que eu não sei descrever. Ele tem efeito sobre mim. — Aai... — deixei escapar um gemido que não deveria enquanto ele me colocava sobre a mesa. Ele me olhou como se fosse me devorar, mas parecia estar com raiva. — Eu não posso fazer isso. Se você disser não, vou usar o resto da minha racionalidade pra sair daqui. Eu não ouvi nada do que ele disse. Só o jeito como falava devagar e ofegante fazia eu me sentir embriagada. Toquei a boca dele com o dedo, deslizando até o peito. — Eu vou fazer o que você quiser. Ele parecia queimar enquanto eu falava. Eu sabia que havia raiva ali, mas não sabia que sentimento era aquele que deixava seu olhar como o de um lobo faminto diante de
TESSAR VRYNN Eu deveria estar saciado. Mas nunca estou. Liora dorme ao meu lado, a pele marcada pelos meus dedos, pelos meus dentes. Ela pertence a mim. Não porque a conquistei, mas porque a tomei, e ela me deixou tomar. Seu peito sobe e desce, tranquilo, como se os últimos minutos não tivessem sido um caos de suor, gemidos e promessas feitas entre suspiros. Mas sei que não está dormindo de verdade. Seu corpo está mole, mas sua mente ainda vagueia. Eu poderia acordá-la. Poderia puxá-la para mim, fazê-la gemer meu nome outra vez, até que ela não tivesse força para fugir. Mas algo dentro de mim me mantém parado, observando-a. Minha mão desliza por sua pele, traçando os hematomas que deixei. Seu pescoço está vermelho, os lábios inchados. Ela se mexe sob meu toque, suspira baixinho. Ela gosta. De ser marcada. De ser tomada. Minha. Minha. Minha. Fecho os olhos e respiro fundo, forçando meu corpo a relaxar. O cheiro dela ainda está em mim. A noite foi embora devagar,