Capítulo 8

CALEB

Depois da discussão com Savana, tentei afogar a irritação no trabalho. A cada martelada na cerca, a cada puxada na tranca do curral, o rosto da Savana me aparecia, vívido, como se a luz do meio-dia tivesse ficado presa nos olhos dela. Odeio quando a memória me pega de surpresa — como um cavalo que empina sem aviso. A gente perde o assento, fica vulnerável. E eu não gosto de me sentir vulnerável. Não aqui. Não na Estância Solar.

Hudson trouxe os sacos de ração jogados nos ombros, sem fôlego. É um bom rapaz, só que novo demais. O tipo que tenta compensar falta de tino com força bruta.

— A porteira do pasto norte tá pegando, chefe — disse, pousando a carga no chão e limpando o suor com a manga. — A trava tá comendo madeira.

— Então corta a madeira e troca a trava — respondi, simples. — E passa óleo nas dobradiças. Coisa que a gente resolve com faca, chave e paciência.

Ele assentiu, mas ficou me olhando um segundo a mais, como se quisesse perguntar outra coisa. Desistiu. Foi melhor assim. Eu não estava de humor para conversa.

O sol já vinha de cima, a luz reta que gruda na pele e tira o resto do sono. Eu revistei as cordas, chequei os bebedouros, acompanhei o bezerro do Lote 3 que teimava em mamar pouco. O gado tem seus mistérios, e a gente aprende a respeitá-los. Quando me dei conta, senti falta de um barulho que sempre esteve aqui — quase um ruído de fundo da minha vida. Não ouvi as unhas do Apollo arranhando a madeira, nem o latido curto que ele solta quando quer dizer “tô aqui”.

Assobiei do jeito que ele entende, dois apitos longos, um curto. O som ricocheteou no terreiro e voltou vazio.

Quando o silêncio do final de tarde caiu, percebi algo estranho: não havia sinal de Apollo. Normalmente, ele vinha correndo ao meu encontro assim que me ouvia mexer nas baias, latindo como se quisesse dar ordens também. Mas dessa vez, nada.

— Apollo! — chamei, mais alto.

Nada.

Senti um arrepio pequeno, desses que a gente finge que foi o vento. Empurrei a preocupação para o lado como quem empurra poeira com a bota, mas já estava com a antena erguida. Fiz o caminho padrão: cocheira, atrás do galpão, sombra da mangueira, beira do açude. Ali o vento vinha mais fresco, cheirando a barro e capim cortado, e por um instante eu quis acreditar que ele ia sair de dentro de algum mato, sacudindo o corpo e jogando água pra todo lado. Não saiu.

— Hudson! — gritei.

Ele apareceu com pressa, metade correndo, metade se desculpando por algo que ainda não sabia.

— Procura o Apollo. Agora. Se não achar, dê uma volta pelo piquete do sul. Eu vou pela estrada velha.

Ele nem questionou. Virou no calcanhar e sumiu na poeira.

Enquanto eu andava, a cabeça começou a montar os piores cenários. Não é que eu queira, é que a gente vive prevenindo o desastre. Cobra, arame farpado no buraco da cerca, algum idiota que entrou sem permissão e achou bonito levar um cachorro de boa índole. Apertei o passo. O coração bateu mais alto do que o normal para uma simples procura. E, nesse compasso acelerado, eu me vi tentando lembrar quando foi a última vez que passei um dia inteiro sem o Apollo por perto. Não lembrei. Talvez no tempo da faculdade. Dá para medir o tamanho de uma companhia pelo buraco que ela deixa feito silêncio.

Cortei caminho por dentro do mato baixo e saí na estrada de terra que leva à sede, a mesma onde, se você chegar numa hora boa, vê o mundo virar ouro. Ainda não era essa hora. O sol batia de lado, quente, e a poeira levantava do chão em cada passo. Quando cruzei a porteira da alameda, vi primeiro o tapete de sombra das árvores, depois a faixa de sol na escada da varanda. E foi ali, bocejando com preguiça de rei, que eu o vi.

Apollo estava deitado com o queixo no meio das patas, os olhos meio fechados, a orelha esquerda caída num jeito que eu conheço desde filhote. Levantou a cabeça quando sentiu minha presença, como se dissesse “cheguei antes”.

— Seu cachorro levado — sussurrei, e o peito cedeu. A palavra saiu com carinho de quem acabou de ganhar um perdão. — Está querendo me matar do coração?

Apressou-se até mim e me cercou com o corpo. Ajoelhei, enfiei o rosto na pelagem quente e aspirei aquele cheiro de cachorro que rolou na terra. O mundo pegou no tranco e voltou para o lugar.

— Nunca mais faz isso comigo, ouviu? — falei baixo, beliscando a pele do pescoço, e ele respondeu com um choro de satisfação, aquela cantilena de cachorro que sabe que é amado.

Foi então que percebi o silêncio. Não aquele silêncio bom que a fazenda dá às vezes, feito cobertor. Era outro. A casa-sede, que nos últimos dois dias tinha virado um formigueiro, estava muda. Uma caneca de limonada pela metade na mesa da varanda, suor descendo pelo vidro. A boneca de pano largada no banco, joelho rasgado de tanto amor. Uma sandália infantil caída de lado, ali, a dois degraus da porta. Eu li a cena como aprendi a ler rastro de boi: rápido e com uma pergunta no fim.

— Amber! Savana! Cadê vocês?

Bati duas vezes na porta, por respeito. Nada. Empurrei devagar. A casa respirou na minha cara — madeira antiga, pão de manhã, limão espremido, um restinho de perfume leve que eu tinha notado nela desde a noite do jantar. O hall tinha caixas abertas como bocas, etiquetas tortas (escrita de criança sempre denuncia), a fita métrica que eu deixara por descuido — e por cuidado — agora pendurada num gancho. Meu pai diria que foi o tipo de desatenção útil que Deus perdoa.

— Savana? — chamei, já dentro.

Apollo foi na frente, como sempre faz quando a casa não é dele. Metade curiosidade, metade guarda-costas. Dei uma olhada na sala: o sofá perto da janela — por teimosia dela e por teimosia minha, a manta jogada, um copo vazio no braço do móvel. Duas caixas de “BRINQUEDOS IMPORTANTES” empilhadas tortas, como se tivessem sido largadas no meio de uma brincadeira. Na cozinha, limonada recém-feita, faca de serra ainda suja de pão, meia banda de bolo de fubá coberta com pano. Não se vai embora assim, sem apagar o fogão, pensei. Não sem dizer nada.

Tentei ouvir para além das paredes. A fazenda tem sons que chegam quando a gente quer e quando a gente não quer também. O mugido grosso do Lote 2, o bater de porta do galpão, o ferro contra ferro do cocho arranhado por bezerro impaciente. E, por baixo, o ruído de gente andando apressada onde não é normal ter pressa. Daqueles ruídos que chamam veterano da lida sem usar palavra nenhuma.

Passei pelo corredor e vi a porta do escritório aberta. Reconheci o cheiro primeiro — poeira e charuto. A mesa do Clint estava ocupada de novo, e doeu num lugar que não tem músculo. Tinha um caderno preto aberto, caneta descansando no meio. Li um pedaço sem tocar: lista à mão, letra dela firme como quem está decidida a aprender por bem ou por mal.

Lista da Savana – Prioridades (sem chorar).

Sorri de canto. Eu sabia que ela ia escrever esse tipo de coisa. Tinha teimosia suficiente para batizar a própria lista de batalha.

Mais abaixo, nomes de coisas que importam: Harlan, bomba do pasto norte, Pegasus, folha de pagamento. E, lá no fim, a facada limpa: 6) Conversar com Caleb — com calma.

Recuei um passo, como quem levou coice de lembrança. Eu partilho com a fazenda um certo código de silêncio. Ver o meu nome ali, no papel dela, arrancou esse lençol. “Com calma.” Quase ri. Com a gente, calma é artigo raro.

— Vamos, Apollo — falei, tentando tirar a implicância da voz. — Não devem estar longe.

Saí e bati a porta devagar, como se a casa fosse uma pessoa dormindo. Desci a varanda de dois em dois, acostumado a esse corpo que sabe o tamanho do degrau sem olhar, e me curvei para examinar o chão. A poeira guardava um mapa. Mancha de sola pequena descendo até o caminho de pedra, passo leve, descompassado de quem correu e parou e correu de novo; marca de sola maior sobrepondo, a dela, mais reta; e uma terceira estrada: o rastro afundado no gramado onde alguém mais pesado — Jack, quase certeza — passou às pressas. As pegadas vinham e voltavam, recortando a pressa de uma notícia ruim.

O mugido veio de novo, mais perto, dessa vez com a dor que a gente reconhece no primeiro som. Jack não andaria com pressa por outra coisa.

Meu peito, que ainda se ajeitava do susto com o cachorro, deu outra batida mais funda. 

— Fica, Apollo. — apontei com a mão aberta para o assoalho da varanda, o comando que ele conhece. — Guarda.

Ele deitou de lado, orelha em pé, olhos em mim, como quem pergunta “tem certeza?”. Tinha. Tão certo quanto eu tinha de que não dava para perder nem dois minutos. Ouvi um grito. Não era grito de peão, nem de cavalo assustado. Era diferente — fino, agudo, de criança.

— Mamãe!!!

Meu corpo reagiu antes da mente. Corri em direção ao som, o coração disparado. Quando virei a curva perto do piquete menor, vi a cena: Amber correndo desajeitada, os bracinhos levantados, e atrás dela uma vaca brava, bufando, avançando com a cabeça baixa. Savana vinha logo atrás da filha, tentando alcançá-la.

— Droga! — murmurei, já em disparada.

A distância entre a vaca e Amber diminuía rápido demais. O chão parecia tremer sob as patas do animal. Senti o mundo afunilar até sobrar apenas o que precisava ser feito.

— Amber, vai pro lado! — gritei.

A menina olhou para mim, assustada, mas obedeceu, desviando para a varanda da casa sede. Corri mais rápido, o corpo inteiro em tensão, joguei a corda e lacei a vaca pelo pescoço. Hudson e Jack chegaram logo depois, ambos com os olhos arregalados. Ordenei que levassem o animal para o curral e pedi que me esperassem na minha sala.

O silêncio que ficou depois foi cortado apenas pela respiração ofegante de Savana e Amber. Corri até as duas. Amber estava agarrada à mãe, chorando, o rosto escondido no peito dela. Savana me olhava com os olhos arregalados, o rosto pálido.

— Vocês estão bem? — perguntei, mais duro do que pretendia.

— Agora sim. — Savana respondeu, a voz trêmula. — Mas poderia ter terminado muito mal.

Olhei para Amber, ainda soluçando.

— Esse não é um lugar para criança ficar correndo sozinha.

Savana ergueu o queixo, a raiva surgindo mesmo no meio do susto.

— Não foi culpa dela!

— Não importa. — repliquei, firme. — Aqui cada descuido pode custar caro.

Ficamos nos encarando, a tensão ainda queimando no ar. Eu queria dizer mais, queria explicar que não era só bronca, era medo, mas as palavras emperraram. Apollo apareceu nesse instante, latindo, e Amber se acalmou um pouco ao abraçá-lo.

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