Mundo ficciónIniciar sesiónSAVANA
A manhã avançava devagar, sendo tingida pelo dourado do sol que invadia cada fresta da casa. Poeira suspensa no ar brilhava como minúsculas estrelas, e eu sentia o cheiro misturado de madeira antiga e café recém-passado. As caixas empilhadas davam a impressão de que nada estava no lugar, mas, paradoxalmente, aquilo me trazia uma sensação de recomeço.
Amber corria pelos corredores, transformando a bagunça em brincadeira. Cada caixa que ela abria era como se fosse um baú de tesouros.
— Mamãe! Olha só! — ergueu um vestido cor-de-rosa, pequeno demais para ela. — Esse era meu?
Sorri, aproximando-me.
— Era sim, meu amor. Você usava quando tinha uns dois aninhos.
Passei os dedos pelo tecido e senti o coração apertar com a lembrança. Parecia que tinha sido ontem. Amber colocou o vestido na frente do corpo e girou pela sala de estar, rindo, antes de jogar o vestido de qualquer jeito de volta na caixa e guardá-lo de volta.
Enquanto ela brincava, continuei organizando o quarto dela. Montamos a cama juntas — ela insistiu em segurar uma das peças de madeira, mesmo sem força para levantar. Esticamos o lençol cor de rosa e estampado com coroas de princesa, ajeitamos os travesseiros e, quando terminamos, Amber se jogou no colchão.
— Eu gostei do meu quarto novo! — gritou, abrindo os braços. — Tem sol de manhã e barulho de passarinho.
Sentei na beira da cama, acariciando-lhe os cabelos.
— É diferente da cidade, não é? Mas aqui a gente vai ter a natureza como vizinha. — Ela assentiu, sonhadora.
— Só o galo que me fica me acordando.
— Vai se acostumar, filha
Depois fechou os olhos por um instante, como se quisesse gravar aquele momento na memória.
Deixei-a brincando e fui até o sótão guardar algumas coisas que não precisaríamos naquela época do ano, onde uma caixa me chamou a atenção. A etiqueta, borrada, dizia: Escritório do Clint. Meu coração tropeçou. Levei-a até o cômodo do fundo, o mesmo onde meu pai passava horas com papéis e cadernos.
O cheiro ali era inconfundível: papel envelhecido, café forte e madeira encerada. Sentei diante da mesa, que ainda tinha a marca de um copo de café no tampo, e abri a caixa.
Vasculhando a caixa, encontrei pastas, contas, notas fiscais. Mas foi o caderno grosso de capa preta que me fez prender a respiração: Diário da Estância. Passei os dedos pelo título dourado, sentindo o peso daquele nome.
Folheei lentamente.
“Ração do Lote 3 – negociar com Harlan até 10/06.”
“Água no pasto norte secou. Conferir bomba.”
“Pegasus: observar tendão posterior, falar com Jack.”
“Se eu não voltar a tempo do leilão, Caleb sabe o que fazer.”
A última frase me atravessou como um golpe. Meu pai confiava em Caleb. Não por conveniência, mas por convicção. Engoli seco, tentando afastar a sensação de estar um passo atrás, como se a Estância fosse dele por direito, e não minha.
Fechei o caderno antes que as lágrimas me vencessem. Respirei fundo e puxei outra pasta. Dívidas, prazos vencidos, anotações apressadas. A realidade da fazenda se desenrolava diante de mim em números que não fechavam.
— Mamãe? — Amber apareceu na porta, segurando um brinquedo. — Posso brincar lá fora com o Apollo?
Sorri, tentando disfarçar o turbilhão.
— Pode, mas só perto da varanda. Nada de ir até os estábulos sozinha porque pode ser perigoso.
Ela correu animada para fora, onde o golden retriever de Caleb estava deitado, quase como se tivesse esperando minha filha para brincar. O som da risada dela misturado aos latidos foi como música, afastando por alguns minutos o peso de tudo o que estava vivenciando.
Decidi preparar um pouco de limonada já que o calor estava quase me deixando derretida. Sentei-me na varanda e fiquei observando minha filha brincar. Logo que me viu, ela veio para a varanda e sentou-se na rede e ficou balançou as pernas, seu rosto levemente avermelhado por causa do calor. Apollo, deitou-se aos pés dela, parecendo um sentinela.
Fechei os olhos, deixando que a brisa me trouxesse lembranças. Vi meu pai ao meu lado, contando histórias de rodeios, ensinando-me que a Estância não era só terra, mas também legado. O coração doeu, mas também se aqueceu.
Amber encostou a cabeça no meu braço.
— Mamãe, a gente vai ser feliz aqui?
Beijei-lhe os cabelos.
— Claro que sim, meu amor. Porque onde você estiver, eu também estarei.
Esse momento de paz, no entanto, não durou.
Ouvi passos pesados na varanda. Quando abri os olhos, Caleb estava ali, de braços cruzados, expressão carregada.
— Já percebi que você não está acostumada a esperar ajuda, mas não pode simplesmente encher a casa e deixar caixas bloqueando os corredores. — a voz dele cortou o ar.
Amber se endireitou na rede, curiosa. Eu inspirei fundo.
— Você de novo por aqui?
Ele ignorou.
— Isso é um risco, ainda mais com criança correndo por aí.
Levantei-me, mantendo a calma com esforço.
— São apenas caixas, Caleb. Em alguns dias tudo vai estar no devido lugar.
— Não, Savana. — Ele entrou sem pedir licença, arrastando uma caixa pesada com facilidade. — Em alguns dias você ainda vai estar perdida, porque não sabe por onde começar.
Meu sangue ferveu.
— Você deve estar achando que sou alguma dondoca.
— Você veio da cidade, não me admira se for.
— Eu não sei qual o seu problema com as pessoas que vivem na cidade, mas saiba que eu sei organizar a minha casa.
Ele me encarou.
— Isso aqui não é só a sua casa. É a Estância Solar. E cada detalhe importa.
Cruzei os braços.
— Você fala como se fosse o dono daqui.
— Não sou o dono, mas fui eu quem manteve esse lugar de pé enquanto você estava na cidade, fui eu que fiquei ajudando seu pai então sim, me sinto um pouco dono. — retrucou, sem abaixar a voz.
Amber arregalou os olhos. A imagem dela, tão pequena diante daquele embate, me deu forças.
— Não fale assim na frente da minha filha.
Ele respirou fundo, colocou o chapéu de volta na cabeça, tentando se conter.
— Só estou dizendo a verdade. Mais cedo ou mais tarde, você vai ter que encarar.
— E eu vou. — respondi firme. — Mas do meu jeito.
O silêncio pesou. Amber, inocente, sorriu.
— Posso mostrar meu quarto pro Caleb?
Ele pigarreou, desconfortável.
— Talvez outra hora, pequena.
Assobiou para chamar Apollo e saiu, descendo os degraus com passos firmes, mas o cachorro não o seguiu. Fiquei olhando até que ele sumisse de vista. A raiva e a gratidão se misturavam em mim, como fogo e água tentando coexistir. Ele tinha razão sobre a dificuldade. Mas isso não lhe dava o direito de me diminuir.
Voltei para dentro. Amber estava agachada, abraçando Apollo, como se sentisse a tensão. Sentei-me ao lado dela, e minha filha ergueu o rosto.
— O que foi, filha?
— Eu não gosto quando você briga.
Sorri de leve.
— Me desculpe, querida.
Amber assentiu, e eu soube que, por mais que tudo fosse difícil, nós duas enfrentaríamos juntas. Eu não podia jurar que isso não voltaria a acontecer, afinal, era de Caleb que estava falando e a gente ia ter que aprender a conviver com ele.







