Mundo de ficçãoIniciar sessão
O padre fez mais uma oração antes que todos se sentassem.
O silêncio dominava a igreja, e a única voz que ecoava era a dele — firme, pausada, quase hipnótica. Eu nunca gostei de estar ali. Ia aos cultos porque minha mãe me obrigava. Simples assim. — Angel, ajeite esse vestido. — sussurrou ela, inclinando-se para o meu ouvido. — Da próxima vez, use algo decente. Olhei para o tecido azul-claro que ia um dedo acima do joelho e soltei um suspiro impaciente. Puxei um pouco a barra para baixo, só para evitar outra bronca, e voltei a encarar o altar. Todos olhavam para o padre como se ele fosse um santo, um mensageiro direto de Deus. Mas eu pensava diferente. Acredito em Deus, mas não acho que é a igreja que nos aproxima d’Ele. Mamãe, por outro lado, era devota ao extremo. Não faltava a um culto, se confessava toda semana e dizia que só existiam duas coisas realmente importantes na vida: o trabalho e a fé. Não que ela não se importasse comigo — mas, às vezes, eu me sentia invisível. Ela me criou para ter medo. Medo de errar. Medo de desejar. Medo de viver. Desde pequena, ouvi que “o maior pecado é se entregar antes do casamento”. E, segundo ela, os homens só serviam para usar as mulheres e depois jogá-las fora. Era com essas ideias que eu tentava crescer — sem entender muito bem o que havia de tão errado em querer sentir. Foi então que um som cortou o silêncio. A pesada porta da igreja rangeu, ecoando pelo salão. Todos se viraram, atentos, como se o próprio diabo tivesse acabado de entrar. Mas não era o diabo. Era um garoto. Moreno, alto, o olhar firme e provocante. Devia ter uns dezenove, talvez vinte anos. Usava uma calça jeans escura, uma camisa preta de mangas compridas e o cabelo — bagunçado no ponto certo — caía sobre a testa. A barba rala dava a ele um ar de descuido bonito, perigoso. Ele caminhou até um banco vazio no fundo e se sentou de qualquer jeito. Aos poucos, os olhares se desviaram, mas o ar parecia diferente, como se ele tivesse trazido o caos junto. Eu nunca o tinha visto antes. Nem ali, nem em lugar nenhum. As garotas do banco da frente cochichavam, trocando risadinhas abafadas. Arrumei a franja que caía no meu rosto e, sem pensar, me virei para olhar. Foi aí que aconteceu. Nossos olhares se cruzaram. Por um instante, o tempo parou. Os olhos dele eram escuros e intensos — cheios de algo que eu não sabia nomear. Ele estava largado no banco, o braço apoiado na madeira e as pernas esticadas, como se aquele lugar não merecesse a postura dele. Meu coração disparou. Desviei o olhar depressa, sentindo o rosto esquentar. Respirei fundo — uma, duas, três vezes — tentando me concentrar no sermão. Mas seria mentira dizer que ouvi uma única palavra do resto daquele culto. O padre deu a bênção final e, aos poucos, os irmãos começaram a deixar o templo. Procurei aquele garoto com os olhos, mas ele já não estava mais lá. Provavelmente tinha sido o primeiro a sair. Do lado de fora, as pessoas se cumprimentavam e desejavam um bom fim de domingo. Rodeei o olhar pelo pátio da igreja e o encontrei, um pouco afastado da multidão. Estava encostado em uma árvore, com uma das mãos no bolso da calça e a outra segurando um cigarro. Levou-o aos lábios e tragou lentamente. Quando soltou a fumaça, olhou direto para mim. Senti um arrepio percorrer o corpo. Abracei a mim mesma, sem saber se era pelo vento frio ou pelo frio que ele me causava por dentro. Ele jogou o cigarro no chão, apagando-o com a ponta do sapato, e tirou algo do bolso — talvez uma chave. Deu alguns passos até um carro preto estacionado na esquina, abriu a porta e entrou. Fiquei observando até o veículo dobrar a rua e desaparecer da minha vista. — Vamos, Angel? — a voz da minha mãe me trouxe de volta. Ela ainda conversava com uma mulher da igreja, e eu apenas sorri, por educação, antes de segui-la até o carro. O interior estava gelado. Entrei rápido, buscando o mínimo de calor. Minha mãe colocou a bolsa no banco de trás, ajeitou o retrovisor e ligou o motor. — Foi um ótimo culto, não foi? — perguntou, ainda com o tom satisfeito de quem cumpriu um dever. — Foi sim — murmurei, encostando a cabeça no banco. — Só fiquei com medo daquele garoto que entrou no final. — Ela disse, franzindo a testa. — Parecia um marginal... foi-se o tempo em que só entravam pessoas de bem na casa de Deus. Revirei os olhos, em silêncio. Eu odiava quando ela falava assim — como se fosse melhor do que todo mundo. Mamãe tinha essa mania de julgar sem conhecer. Voltei o olhar para a janela e me perdi nas luzes da rua. E, sem querer, voltei a pensar nele. No jeito que me olhou. No cigarro, na calma, na forma como parecia não se importar com nada. Será que ele voltaria à igreja? Por que eu me importava com isso? Chegamos em casa em poucos minutos. Saí do carro e fui direto para o banho. A água quente caiu sobre mim como um alívio. Fechei os olhos e deixei o vapor preencher o banheiro, tentando lavar também o turbilhão de pensamentos que ainda rodava na minha cabeça. Quando saí, me enrolei na toalha e escolhi uma roupa confortável. Vesti um moletom cinza e uma blusa preta, prendi o cabelo e me joguei na cama. Fiquei olhando para o teto por um tempo. Amanhã eu tinha um teste de matemática e precisava estudar, mas a vontade passou longe. Tudo o que eu conseguia pensar era naquele olhar. Foi quando ouvi três batidas leves na porta. As batidas na porta se repetiram, mais suaves dessa vez. — Angel? — reconheci a voz da minha mãe. Me ajeitei na cama e puxei o cobertor até o peito. — Entra, mãe. Ela abriu a porta e apareceu com o mesmo ar sério de sempre, o cabelo preso num coque apertado e os óculos escorregando no nariz. Carregava uma pasta nas mãos e parecia cansada. — Preciso te avisar de uma coisa — começou, apoiando a pasta na escrivaninha. — Surgiu uma viagem de última hora. Vou ter que ir a Nova York domingo cedo pela amanhã, a empresa me chamou pra resolver uns assuntos urgentes. Assenti devagar. — E eu? — Você vai ficar aqui, claro. — respondeu, já prevendo a pergunta. — Ainda faltam algumas semanas pra terminar o semestre, e não quero que perca aula por causa disso. Ela falava com aquele tom prático, como se deixar a filha adolescente sozinha por alguns dias fosse algo normal. — E vai ficar quanto tempo fora? — perguntei, tentando disfarçar o nervosismo. — Uns quatro ou cinco dias, no máximo. — Ela olhou em volta, como se inspecionasse o quarto. — Eu confio em você, Angel. Sei que é responsável o bastante pra não fazer besteiras. Sorri de leve. “Besteiras”, na linguagem dela, significava qualquer coisa que fugisse do controle — amigos, música alta, e principalmente… garotos. — Pode ficar tranquila, mãe. Eu só vou estudar e dormir. — falei, meio irônica. Ela arqueou uma sobrancelha, mas ignorou o tom. — Deixei comida no freezer e o número da tia Clara anotado na geladeira. Se precisar de algo, liga pra ela. Assenti novamente, tentando parecer tranquila. No fundo, a ideia de ficar sozinha me assustava um pouco, mas também havia algo excitante nisso — uma liberdade que eu nunca tinha experimentado de verdade. Mamãe se aproximou, me deu um beijo rápido na testa e ajeitou o cobertor sobre mim. — Boa noite, minha filha. E nada de virar a noite no celular. Sorri, mesmo sem prometer nada. — Boa noite, mãe. Ela apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás de si. O quarto mergulhou na penumbra, e o som distante da chuva batendo na janela começou a preencher o silêncio. Fiquei olhando para o teto, sentindo o coração bater rápido — talvez pela solidão que me esperava, talvez pela lembrança de um olhar escuro e intenso que eu ainda não conseguia esquecer. O rosto daquele garoto veio na minha mente como uma prece proibida.






