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Bônus da Isabel parte 3

Isabel Matarazzo

Nos mudamos para Goiânia poucos dias depois do casamento. Um presente do pai do Eduardo, que parecia finalmente ver o filho “se tornando homem”. Ele não questionou quando Eduardo pediu para vivermos longe da fazenda — atribuiu o pedido à busca de privacidade dos recém-casados. Estava tão eufórico por acreditar que o filho havia se “endireitado” que nos deu uma casa maravilhosa: espaçosa, com jardim, lareira e um quarto de hóspedes que logo virou meu escritório improvisado.

Mas aquela casa foi mais do que um presente.

Foi um recomeço.

Ali, pela primeira vez, eu consegui respirar fora da sombra do meu pai. Ali, pela primeira vez, senti que tinha um lar.

Eduardo cuidou de tudo. Desde o primeiro dia da nossa lua de mel, ele agiu. Enquanto muitos maridos estariam pensando em noites de núpcias, ele estava fazendo chamadas criptografadas e fechando contrato com um investigador argentino — discreto, eficaz, alguém fora do radar do meu pai.

— Ele já encontrou crianças traficadas até no Oriente Médio. Ninguém desconfia dele porque finge ser guia turístico. Pode parecer exagero, Isa, mas eu não vou medir esforços pra te devolver o que te arrancaram — disse ele, segurando minha mão com firmeza.

Cada nova pista era uma faísca no meio do breu. Às vezes, nos iludíamos. Outras, chorávamos juntos quando a esperança virava pó. Mas nunca desistimos.

Nunca.

Nossa amizade era rocha. Ele era meu refúgio. Meu melhor amigo. Meu confidente.

Ele me incentivou a voltar a estudar. Me dava forças nos dias em que as lembranças me paralisavam. E mesmo quando se apaixonou por um argentino de sorriso torto e sotaque charmoso, fazia questão de me contar tudo, com olhos brilhando como um adolescente encantado.

— Isa, você precisava ver… ele fala comigo como se eu fosse o sol. Nunca pensei que alguém me olharia assim.

— E é, ué — respondi sorrindo. — Você merece ser o sol de alguém.

Era bonito. Às vezes eu me perguntava como, em meio a tanta dor, ainda conseguíamos rir juntos. Criamos nosso próprio mundo — um onde o respeito era sagrado e o amor, mesmo que não romântico, era imenso.

Quanto ao pai dele... continuava pressionando por netos. Mas Eduardo era hábil. Inteligente. Cuidadoso. A princípio, os pais não cobravam tanto. Achavam bonito nos ver juntos. Mas após dois anos de casamento, começaram as perguntas.

A mãe dele, no entanto, parecia mais silenciosa. Ela me via chorar. Sabia que havia algo que eu não dizia.

Foi então que, num desses dias em que a ausência virava um grito dentro de mim, ela perguntou a Eduardo se eu havia perdido um filho. E ele, com a voz baixa e olhos tristes, respondeu que sim.

Depois disso, ela praticamente nos forçou a ir à fazenda. Eu não queria. Tinha medo da dor e do silêncio que aquele lugar traria. Mas não consegui dizer não.

---

A tarde na fazenda era abafada e o céu parecia pesar sobre mim. Era um daqueles dias em que respirar doía.

O investigador havia me mandado um e-mail com poucas linhas: “Os gêmeos foram separados. Não há registro deles juntos em nenhum sistema.”

Meus joelhos cederam ali mesmo, no jardim da casa. O chão parecia girar. Eu me agarrava a um fio de esperança: de que estivessem juntos. Que, mesmo longe de mim, tivessem um ao outro. Mas não. Cada um estava sozinho. Num canto qualquer do mundo. Talvez em um orfanato insalubre. Talvez em condições piores do que minha mente ousava imaginar.

Eu chorava em silêncio, encostada ao tronco de uma árvore antiga, quando senti alguém se abaixar ao meu lado.

— Isabel? — a voz da mãe do Eduardo era baixa, quase sussurrada. — O que foi que aconteceu?

Tentei responder, mas a dor atravessou minha garganta. Ela não esperou. Apenas me envolveu num abraço apertado, instintivo, quase materno. Eu me desmanchei ali.

— Eu perdi os meus filhos... eu os perdi pra sempre... — disse entre soluços, afundada nos braços dela.

Ela não disse nada. Apenas me abraçou mais forte. Seus olhos também estavam marejados. Era um silêncio cheio de compaixão, como se ela quisesse dividir comigo o peso da perda.

Ela me colocou no colo dela como se eu fosse uma criancinha, se sentou no banco e me colou no colo dela. Acho que a minha mãe mesmo nunca fez isso eu não lembro dela me abraçar imagina me colocar no colo dela.

— Oh, minha menina, chora, coloca está dor para fora. Você não está sozinha, você tem uma família agora — ela ficou fazendo carinho e deixando eu chorar.

....

Depois daquele dia a mãe do Eduardo começou a me tratar como a sua filha e toda vez que o meu sogro ia começar o assunto filhos ela mudava e sempre falava que éramos muito novo e a verdade é que eu realmente era só tinha 19 anos quando me casei agora com 21 anos ela só queria que eu estudasse.

Sempre que vinha nos visitar pedia para termos momentos de garotas, e foi em um dia de sábado que ela do nada veio me buscar para levar para um orfanato em Manaus que me veio a brilhante ideia, eu ia fazer doações pessoalmente em todos os orfanatos que tiverem crianças da idade próxima aos meus filhos.

E ela amou ver minha iniciativa para ajudar crianças ela achava o meu coração maravilhoso, e na verdade eu estava fazendo apenas por mim diferente dela.

— É menino ou menina? — ele perguntou no nosso terceiro ano fazendo a mesma coisa indo em orfanatos enquanto o detetive procurava fora do país.

— O que? — perguntei arrumando minha cesta de doces.

— O seu filho ou é filha?

— Eu não estou grávida — falei sem entender onde ela querida chegar na conversa nos éramos muito próximas porém tinham medo de falar dos meus filhos.

— Eu sei, estou falando do filho que você tanto procura, eu não vou te julgar Isabel você é como a minha filha também, só que está difícil ajudar sem saber o que estamos procurando — ela falou e eu só fui até ela a abraçando.

— O que aconteceu com as minhas mulheres favoritas? — Eduardo perguntou, chegando silencioso, os olhos atentos ao nosso abraço. Depositou um beijo suave na minha testa, trazendo um pouco de conforto naquele momento tão frágil.

A mãe dele sorriu com ternura e respondeu:

— Só estamos trocando forças, Eduardo. A Isabel tem um coração enorme, e está fazendo o que pode para curar essa dor.

Ele me envolveu num abraço firme, e eu me deixei levar. Por um instante, a dor parecia menos cruel.

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Os meses se tornaram anos, aquela rotina de visitas aos orfanatos se tornou um refúgio para mim — um jeito de transformar o sofrimento em esperança. Eu entregava cestas, brinquedos, roupas, e em cada rosto infantil buscava um sinal, um lampejo dos meus filhos.

Eduardo esteve ao meu lado em cada passo. Às vezes, com o olhar triste, mas sempre firme, sempre pronto a lutar.

— Não vamos desistir, Isa — ele me dizia, segurando minha mão com convicção. — Eles estão lá fora, esperando que alguém os encontre.

À noite, quando a casa ficava silenciosa, eu tentava imaginar como seriam as vozes deles, seus risos, seus cheiros. Eu me perdia nesses pensamentos, desejando que, em algum canto do mundo, meus filhos sentissem o mesmo amor que eu sentia por eles.

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Uma tarde, enquanto organizava os papéis que o investigador argentino enviava, um novo e-mail piscou na tela do computador. O coração disparou. Abri com as mãos trêmulas.

“Encontramos uma pista.”

O resto do texto era um mapa com coordenadas e um endereço na Bahia próximo a um orfanato.

Eu olhei para Eduardo, que já entendia o que aquilo significava.

— É um começo — ele falou baixinho, como se não quisesse quebrar o encanto daquele momento.

A viagem até aquela pequena cidade no interior da Bahia foi longa. O calor abafado, as estradas sinuosas e o silêncio tenso dentro do carro acompanhavam o turbilhão de emoções dentro de mim.

Ao chegarmos ao orfanato indicado pelo mapa, meu coração batia descompassado. Era um prédio simples, de muros baixos e um jardim improvisado. Crianças brincavam ao longe, e o cheiro de almoço no ar dava àquele lugar uma estranha sensação de rotina… quando tudo em mim era urgência.

Fui recebida por uma cuidadora de voz doce e semblante cansado. Quando mencionei o nome da menina que buscava, vi a compaixão tomar conta do rosto dela.

— Ela não está mais aqui… — disse, com cuidado.

Meu coração despencou.

— Ela... foi adotada? — perguntei, com a voz falhando.

A mulher assentiu lentamente.

— Foi, sim. Mas… Isabel, posso ser honesta com você? Eu lembro muito bem dessa menina. Ela foi deixada ainda bebê num hospital com um quadro gravíssimo de anemia aplástica. Quase não sobreviveu… O sistema não sabia o que fazer com ela. Quando veio para o orfanato, era frágil, mas cheia de luz.

— Anemia aplástica...? — repeti, com um nó na garganta. — Isso é grave, não é?

— Muito. A medula para de produzir células sanguíneas. Só um transplante pode salvar. E... a adoção não deu certo. A família descobriu a doença e devolveu ela como se fosse um pacote com defeito.

Eu não conseguia respirar. Uma dor absurda me atravessou.

— E agora… onde ela está?

A cuidadora hesitou por um segundo.

— Internada no hospital municipal. Está em coma induzido, esperando um doador compatível. Está sozinha. Sem visitas. Sem ninguém.

---

No hospital, o tempo pareceu congelar. Ela estava ali, tão pequena e vulnerável naquele leito, cercada de máquinas e fios. Meu coração reconheceu antes da ciência. Mas ainda assim, eu fiz o teste de DNA.

E o resultado veio: positivo.

Ela era minha. Minha filha.

Mas a alegria foi engolida pela realidade cruel.

— Infelizmente, Isabel — disse o hematologista com pesar —, você não é compatível. O HLA não b**e. E como ela está com a forma mais grave da doença, precisamos de um doador 100% compatível. Um irmão de mesmo pai seria nossa melhor chance.

As palavras dele bateram como uma sentença. Eu queria rasgar o mundo pra salvá-la. Mas ali, tudo que eu tinha era impotência.

— E o pai dela? — ele perguntou, esperançoso.

Engoli em seco. Manoel… O amor da minha vida. O pai dos meus filhos.

— Ele... morreu — sussurrei, lutando contra as lágrimas. — Mas ele… ele já doou esperma antes. Algumas vezes. Era a forma que ele encontrou de se manter em Fortaleza, quando foi pra lá sozinho.

Os olhos do médico se acenderam.

— Se conseguirmos localizar essas doações e o material ainda estiver armazenado, e se for viável… podemos tentar uma fertilização in vitro. Seria um processo longo e delicado, mas é a única saída agora.

---

Os dias seguintes foram uma corrida contra o tempo.

Eduardo moveu céus e terra para encontrar a clínica. O material ainda estava lá — congelado, preservado há exatos dez anos. Mas o processo seria extremamente delicado: havia o risco de não sobreviverem ao descongelamento, de não haver embriões viáveis… e mesmo se tudo desse certo, ainda havia o risco de o bebê não nascer compatível.

Mas eu não hesitei. Se havia 1% de chance, eu daria tudo.

Passei por consultas, exames, orientações, injeções. Meu corpo se tornou um campo de batalha pela vida da minha filha.

— É por ela, Manoel… — sussurrei uma noite, olhando pro céu. — Me ajuda daí, por favor.

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Enquanto isso, minha menina continuava dormindo. Frágil. Lutando em silêncio.

Todos os dias, eu segurava sua mão e contava histórias sobre mim, sobre ela, sobre o pai que ela nunca conheceu.

— A gente vai dar um jeito, minha filha. Eu juro por tudo que há em mim. Você não vai embora sem saber que é amada.

.....

Os dias no hospital se tornaram longos, mas cheios de pequenos gestos que me mantinham em pé.

Vitória continuava em coma induzido, como se o mundo ainda estivesse decidindo se ela teria a chance de continuar. Eu a chamava pelo nome todos os dias, como se, de algum jeito, ela pudesse me ouvir. Como se minha voz pudesse servir de ponte entre esse mundo e o lugar onde ela se escondia, frágil, esperando.

E eu nunca estava sozinha.

Minha sogra vinha todas as manhãs. Trazia café quente, lanches, cobertas macias, palavras firmes e um colo que nunca falhava.

— Vai dar certo, minha menina — ela dizia, sentando-se ao meu lado, ajeitando o cabelo da Vitória com tanto cuidado que doía de bonito.

Ela lia livros infantis para a neta, fazia trancinhas nos poucos fios que despontavam, conversava como se a menina pudesse responder a qualquer momento. Às vezes, cochilava com a cabeça encostada no colchão do leito.

Ela estava ali todos os dias. Mesmo quando eu não tinha forças para levantar da cadeira.

— Você não está sozinha — ela repetia, sempre. — E essa menina vai vencer. Porque é filha da Isabel.

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Quando a médica nos chamou para dar a notícia da fertilização bem-sucedida, Eduardo segurou minha mão com tanta força que eu achei que ia desabar ali mesmo.

— Está grávida, Isabel. Parabéns — disse a médica, com um sorriso contido, ciente de que nossa felicidade vinha misturada com medo, esperança e dor.

Meu coração parou por um instante. E voltou a bater por dois.

— Vai ser um menino — contou ela algumas semanas depois, no retorno.

Eu olhei para Eduardo, esperando alguma reação. Aquela era a prova viva de outro homem — do Manoel — crescendo dentro de mim.

Mas ele apenas sorriu. E com os olhos marejados, me puxou para perto.

— Que sorte a dele… ser filho seu, ser nosso filho.

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Naquela mesma tarde, o sogro apareceu no hospital com um buquê de flores e lágrimas nos olhos.

— Um menino! — ele exclamou, já abraçando a esposa com euforia. — Vai se chamar Amadeu Eduardo Neto! Acabou, já está decidido. E vai ser meu companheiro de pescaria.

Ninguém contestou. Ninguém lembrou que ele não era o avô biológico. Porque, no fundo, ele era.

— Esse menino vai crescer cercado de amor — ele disse, acariciando minha barriga. — Igual à Vitória. Aqui, ninguém é metade de nada. Somos inteiros.

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Eduardo nunca mencionou o fato de não ser o pai biológico da criança. Nunca houve insinuação de incômodo, nem um único olhar de julgamento. Ele me levava nas consultas, comprava frutas que me faziam bem, preparava banhos mornos e cuidava da Vitória como se tivesse saído dele.

— Somos uma equipe, Isa. E vou lutar até o fim com você. Por ela. Por ele. Por nós.

E enquanto isso, continuávamos a procurar o nosso menino.

Agora, também nos hospitais. Crianças internadas sem histórico familiar, com entradas nebulosas, recém-operadas, às vezes com nomes falsos. Cada caso era uma ponta de esperança. Uma pontinha de fé.

— Vamos encontrar ele também, Isa — dizia Eduardo, segurando os relatórios. — Ele está por aí, esperando. Igual ela esperava. Igual ele, agora, cresce esperando o mundo aqui dentro.

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Às vezes, quando colocava a mão sobre a barriga, eu sussurrava:

— Você veio para salvar sua irmã, meu amor. Mas você também está salvando a mamãe.

E ele chutava. Como se dissesse: eu sei.

.....

Os meses passaram como se cada um carregasse o peso de um ano.

A gravidez foi delicada. Meu corpo, frágil pelo desgaste emocional e pelos hormônios da fertilização, sentia tudo em dobro. Mas eu não me permitia parar. Vitória ainda estava em coma induzido, e cada batida do coração do bebê dentro de mim era um lembrete de que havia esperança.

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Na trigésima quinta semana, o médico me internou.

— Vamos antecipar o parto, Isabel. Seu bebê está pronto. E a medula dele também.

Eduardo ficou o tempo todo ao meu lado. Ele segurava minha mão e fazia piada tentando esconder o medo. Minha sogra chorava de alegria, segurando um ursinho azul que ela mesma costurou.

Meu sogro… Bem, ele já tinha comprado camiseta com “Vovô do Neto” estampado e avisado todos os vizinhos da fazenda. O bebê ainda nem tinha nascido, e já era o orgulho da família.

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Quando ouvi o primeiro choro do meu filho, algo em mim se partiu e se refez ao mesmo tempo.

— Seja bem-vindo, Eduardo Manoel — sussurrei, com lágrimas nos olhos. — Você vai salvar a sua irmã.

Ele nasceu forte. Os médicos retiraram o sangue do cordão umbilical e fizeram o preparo para o transplante. O procedimento precisava ser feito em poucos dias. A compatibilidade era perfeita. Tudo parecia conspirar a favor, depois de tanto tempo remando contra.

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O transplante foi um sucesso. A medula do pequeno Eduardo Manoel foi aceita sem resistência, e os primeiros exames revelaram uma recuperação rápida, aliviando um fardo imenso de nossos ombros.

Vitória acordou dias depois do procedimento, frágil como um passarinho recém-saído do ninho, mas com os olhos recuperando aquele brilho que tanto amava. Era como ver uma flor desabrochando timidamente após um longo inverno, cada pétala um sinal de vida.

Quando seu olhar encontrou o meu, uma doçura profunda inundou seu rosto – uma doçura que me trespassava o peito e uma inocência que partia a alma em lascas.

— Você é aquela moça… que ficava aqui todo dia? — sua voz era um fio, mas carregada de uma lucidez reconfortante.

Assenti, lutando contra um nó de emoção na garganta que ameaçava se transformar em lágrimas. — Sou eu, querida. Você lembra de mim?

— Eu lembro da sua voz... — Um sorriso minúsculo iluminou seus lábios pálidos. — Eu sonhava com ela. Parecia… um anjo cantando pra mim.

Aproximei-me da cama, sentindo o frio do chão através dos meus chinelos, e envolvi sua mãozinha na minha. Era tão leve. — Que bom que gostou da minha voz, porque eu não vou parar de cantar por aqui, não.

Ela balançou a cabeça com uma lentidão pensativa. — Você é a mãe do bebê, né? — Seus olhos escuros, inteligentes, buscavam confirmação.

— Sou sim, minha vida.

Seu olhar desviou para o bercinho junto à janela, onde o pequeno Eduardo dormia. — Ele tem sorte... — murmurou, e o silêncio que se seguiu foi preenchido por um amor tão intenso que meu coração pareceu rachar ao meio, expondo toda a verdade que ainda guardava.

Mas mantive o sorriso. O segredo permanecia, um peso doce e doloroso, envolto em cuidado.

Os dias seguintes foram um bálsamo. Ela passou a me permitir escovar seus cabelos finos, escolher suas roupinhas coloridas, contar histórias até adormecer. A palavra "mãe" parecia uma barreira invisível para ela, talvez um reflexo das feridas passadas. Mas aos poucos, uma nova palavra surgiu, carregada de afeto: "tia Isa". E cada vez que soava, meu mundo dava uma volta mais completa, mais luminosa.

Minha sogra era uma presença constante, um vendaval de ternura. Trazia lacinhos, cadernos de desenho, passava tardes colando figurinhas coloridas com a neta. — Vitória, sua letra já tá mais bonita que a do vovô! — dizia, com um orgulho que transbordava e enchia o quarto de calor.

Meu sogro, por sua vez, ensinava-lhe a assobiar, prometendo aventuras futuras. — Quando sair daqui, neta, vamos plantar uma árvore bem forte, com o nome do seu irmão. Vai ser o nosso ritual de coragem, hein? — Os olhos dele brilhavam como os dela quando ela ria – um riso que era pura luz entrando pela janela, derretendo qualquer sombra.

Mas ninguém, absolutamente ninguém, sabia o turbilhão que cada "tia Isa" desencadeava dentro de mim. Era um grito abafado, uma ânsia sufocada que ecoava nas minhas entranhas: *"Eu sou sua mãe!"* Mas eu calava. Esperava. Por ela. Por mim. Por um momento em que esse amor não fosse uma flecha, mas um remédio.

Numa manhã cinzenta, com a chuva tamborilando suavemente contra os vidros, Vitória rabiscava um desenho vigoroso com lápis de cor. De repente, ergueu os olhos para mim, uma sombra de inquietação no olhar.

— Tia Isa… — começou, hesitante. — Posso te contar uma coisa?

Meu coração acelerou. — Claro, meu anjo. Pode contar tudo pra mim.

— Eu sonhei com um menino. De novo. — Ela franziu a testinha, concentrada. — Sempre sonho com ele. Ele parece comigo… e hoje, no sonho, ele tava muito triste. E eu fiquei triste também. — Seus braços se estenderam, pedindo colo num gesto que me partiu e me uniu ao mesmo tempo.

Envolvi-a, sentindo seu corpinho magrinho contra o meu, o cheiro suave de talco e infância. — Lembra da história que te contei? — perguntei, a voz um pouco rouca. — Dos coelhinhos que foram levados para longe da mamãe deles…

— Lembro! — ela respondeu, enterrando o rosto no meu pescoço. — E ela procurava, procurava… É triste, mas eu sei que a mamãe coelho vai achar os bebês dela. — Fez uma pausa e acrescentou, com uma convicção que me surpreendeu: — E você também vai.

Segurei-a mais firme, o segredo pulsando em minhas têmporas. — Eu já achei, Vitória. — As palavras saíram antes que eu pudesse medi-las. — Já achei uma dos meus bebês perdidos.

Ela afastou-se o suficiente para me encarar, os olhos arregalados de surpresa e um sorriso curioso nos lábios. — Sério? Você encontrou sua filha?

— Encontrei. — A emoção embargou minha voz, tornando-a espessa.

— Que sorte! — ela exclamou, genuinamente feliz por mim.

O ar pesava no quarto úmido. Respirei fundo, mergulhando no abismo que eu mesma abrira. — Sabe de uma coisa, minha vida? Essa sorte… essa sorte é nossa. — Minha mão tremia levemente ao acariciar seu rosto. — Porque a minha filhinha perdida… é você.

— Eu? — O sorriso congelou, desintegrando-se num piscar de olhos. O medo, cru e instantâneo, apagou a luz dos seus olhos. Ela se encolheu, como se tocá-la agora fosse queimá-la. — Não… — sussurrou, recuando no colo.

— Vitória, meu amor… — estendi a mão, mas ela já se contorcia para descer.

— Você tá inventando! — A voz dela subiu, aguda com pânico. — Eu não sou sua filha! Eu não tenho mãe! — O desenho caiu no chão, os lápis rolaram.

— Não é assim, por favor… — Tentei alcançá-la, mas ela já estava em pé, um pequeno furacão de dor e confusão.

— MENTIROSA! — O grito ecoou no quarto, dilacerante. — A MINHA MÃE MORREU! — E antes que eu pudesse reagir, ela disparou porta afora, um vulto assustado que se esbarrou justamente com Eduardo, que chegava naquele instante.

— Meu amor! — Ele me segurou pelo braço quando eu tentei correr atrás. — Espera. Fica. Eu vou.

— Mas ela precisa me ouvir, Eduardo! — Minha voz se quebrou, as lágrimas finalmente rompendo a barreira. — Ela é minha filha! Não posso deixá-la assim!

Ele me olhou, seus olhos cheios da mesma dor e do mesmo amor que me consumiam. — Eu sei. Mas deixa eu ir primeiro. Ela tá assustada. — Um aperto rápido no meu ombro, um olhar que prometia fazer o possível, e ele saiu, correndo no encalço daquela pequena parte de mim que fugia, dilacerada pelo choque da verdade.

Fiquei parada no meio do quarto devastado, o eco do grito da minha filha ainda vibrando no ar úmido, misturado ao tamborilar insistente da chuva contra os vidros. O cheiro doce e infantil dos lápis de cor espalhados pelo chão agora me enojava. Não deveria ter contado. Não assim. Não agora. A agonia era uma serra a cortar minhas entranhas, impulsionada pelo terror puro de vê-la desaparecer naquele labirinto branco e hostil, assustada, fugindo de mim.

Impulsionada por um instinto mais forte que a razão, saí do quarto como um fantasma, os passos amortecidos pelo piso frio do corredor. A luz fluorescente, excessivamente clara, doía nos olhos inchados. Cada porta fechada era uma possibilidade, uma ameaça. Até que, alguns metros adiante, uma porta entreaberta de um quarto vazio revelou uma silhueta familiar encostada na parede oposta.

Eduardo. Com ela no colo.

Encostei-me na moldura fria, escondida na penumbra do corredor, o coração batendo como um pássaro enjaulado. A cena diante de mim era íntima, dolorosa e frágil.

Vitória estava encolhida contra o peito dele, o rosto escondido na curva do seu pescoço, os ombros ainda sacudindo com soluços abafados. Eduardo a balançava com uma suavidade infinita, uma das mãos grandes acariciando suas costas magrinhas, a outra segurando firmemente a nuca dela, como se temesse que ela se despedaçasse.

— Eu sei, pequenina… eu sei que não é fácil — sua voz chegou até mim, baixa, rouca de emoção, mas incrivelmente calma, uma âncora na tempestade que ele segurava nos braços. — É um monte de coisas grandes demais pra caber num coração tão pequeno, né?

Ela não respondeu, apenas se enterrou mais nele. Um gemido sufocado escapou.

Ele encostou a boca no topo da cabeça dela, num beijo que era puro consolo. — Mas pensa comigo, Vitória… — Continuou a balançá-la, num ritmo lento e reconfortante. — Pensa como é bom… ter. Ter alguém. Antes, quando você tava sozinha e com medo… era só escuro, né? Mas agora… — Ele puxou-a um pouco para trás, o suficiente para que seus olhos encharcados encontrassem os dele. Com a ponta do polegar, enxugou com ternura uma lágrima que escorria pela bochecha dela. — Agora você tem uma mãe.

A palavra pairou no ar do quarto vazio, pesada e luminosa ao mesmo tempo. Vitória estremeceu, mas não desviou o olhar.

— Uma mãe que te achou, minha vida — Eduardo prosseguiu, a voz engrossando com uma emoção que me fez apertar o peito ali, na sombra. — Uma mãe que te *amou* antes mesmo de saber seu nome. Que passou oito longos anos… oito anos, Vitória… rasgando o mundo ao meio pra te encontrar. Cada dia. Cada noite. Sem parar. Sem desistir. Porque o amor dela por você… — Ele fez uma pausa, engolindo em seco, os próprios olhos brilhando. — Esse amor é maior que o medo, maior que o tempo, maior que qualquer coisa ruim que já aconteceu. É um milagre. *Vocês* são o milagre.

Vitória fitava-o, a respiração ainda ofegante, mas os olhos, antes cegos de pânico, agora refletiam uma confusão profunda, um início de reflexão. As lágrimas continuavam a rolar, mas silenciosas.

— E essa mãe… — Eduardo continuou, suavemente, passando o polegar por outra lágrima. — Essa mãe é a pessoa mais maravilhosa, mais corajosa, mais cheia de luz que eu conheço. E ela vai te cuidar, minha pequena guerreira. Vai te proteger, te embalar, te contar histórias, secar tuas lágrimas… hoje, amanhã, e por todos os dias que vierem. Isso… — Ele inclinou-se, encostando a testa na dela, num gesto de promessa e proteção absoluta. — Isso eu te juro com a minha vida.

Um silêncio denso caiu sobre o quarto vazio. Só o som da respiração de Vitória, mais calma agora, e a chuva lá fora. Ela parecia absorver cada palavra, cada sílaba de verdade e segurança que ele oferecia. Seus dedinhos, antes crispados no tecido da camisa dele, relaxaram um pouco.

Então, muito devagar, ela puxou o rosto para trás, olhando para algum ponto distante, não para ele, não para mim escondida, mas para dentro de si mesma. Quando falou, a voz era um fio de vento, frágil e cheio de assombro:

— Deus… — ela começou, engasgando. — Deus me mandou uma mamãezinha… — Os olhos dela se encheram de um novo tipo de lágrima, não mais de medo, mas de uma descoberta avassaladora. — … que parece um anjo. — Ela fitou Eduardo, buscando confirmação no rosto dele. — Ela chegou… quando eu tava com mais medo… e mais sozinha do mundo. Ela cantava… como um anjo.

A última palavra dissolveu-se num novo soluço, mas desta vez, era um soluço de alívio, de uma verdade dolorosamente bela sendo finalmente compreendida. Ela se atirou novamente contra o peito dele, abraçando-o com uma força desesperada, como se fosse a única tábua de salvação num mar revolto.

— Minha pequenininha… — A voz de Eduardo saiu rouca, carregada de todas as lágrimas que ele segurava. Ele a envolveu completamente, os braços fortes criando um mundo seguro só para ela. Beijou repetidamente o topo de sua cabeça, as têmporas, a testa úmida. — Eu te amo. Eu te amo mais que tudo. Mais que o ar. Mais que o sol.

Ele continuou a balançá-la, sussurrando palavras de amor e conforto que eu não conseguia mais distinguir, enquanto ela se derretia no colo dele, o corpo finalmente cedendo ao cansaço e à catarse.

— Quando você estiver pronta… — ele murmurou, depois de um longo momento, o rosto ainda enterrado nos cabelos dela. — Quando o teu coraçãozinho disser que tá na hora… nós vamos ver a mamãe. Juntos. Ela tá esperando. Com o coração na mão, cheio de amor só pra você.

Vitória não respondeu com palavras. Apenas assentiu, um pequeno movimento da cabeça contra o peito dele.

Voltei para o quarto dela aqui no hospital esperando quando ela quisesse falar comigo.

©©©©©©©©©©©©©

Continua...

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