Isabel Matarazzo
A morte de César mal esfriou, e meu pai já sorria como se nada tivesse acontecido.
O meu fio de esperança por liberdade foi esmagado antes de completar cinco dias. A única coisa que consegui fazer foi ir até um dos orfanatos próximos ao hospício à procura dos meus bebês. Eles já teriam nove meses. Mas, em nenhum dos abrigos por onde passei, havia registro de entrada de um casal de gêmeos.
Lembro como se fosse ontem: saí do segundo abrigo com os olhos inchados de tanto chorar. A ausência de qualquer pista me destruía por dentro. E foi nesse mesmo dia que meu pai apareceu na minha casa.
— Infarto fulminante. Paciência — ele disse, enquanto assinava documentos e atendia telefonemas, sentado no sofá da minha sala como se fosse o dono de tudo.
— Ele já era velho demais. A vida segue, filha. Você deu sorte. Agora temos margem pra novos negócios.
Sorte.
Essa foi a palavra que ele escolheu.
Sorte por não ter sido violentada.
Sorte por não ter morrido.
Sorte, segundo ele, por ter escapado viva de mais uma condenação — como se o que me restasse fosse celebrar a morte de um homem doente que quase destruiu meu corpo e minha alma.
Quando soube que todo o patrimônio de César havia sido deixado para mim, meu pai sequer fingiu luto. Ao contrário, sorriu entusiasmado.
— Você ainda é muito nova, não pode administrar sozinha. Vamos colocar tudo no meu nome... provisoriamente.
Provisoriamente.
Eu conhecia bem essa palavra.
Significava: controle.
Significava: prisão com algemas invisíveis.
— Soube que você foi ao orfanato Santa Cruz. Está com saudade do hospício, é isso? Está ficando louca de novo — ele disse com aquele sorriso cínico que corroía minha alma.
— Mas não se preocupe. Vou te arranjar um bom marido. Um que te ensine o seu lugar.
Não demorou para recomeçar seus contatos. Ele queria alguém tradicional, influente, que garantisse estabilidade e silenciosa submissão.
Dessa vez, o nome surgiu rápido: Amadeu Castanho, produtor de soja do Mato Grosso. Um homem orgulhoso, conservador e desesperado para casar o único filho. O tal Eduardo, de 25 anos — que já tinha perdido quatro noivas.
— Eduardo é delicado demais. Muito sensível. Nunca quis saber de moças. Talvez o que ele precise seja uma esposa firme, de classe, que o coloque nos trilhos. Espero que você seja assim, Isabel. É nova demais, mas como é viúva, talvez tenha a malícia que ele precisa — disse o pai dele, me observando como quem escolhe uma égua de raça.
Mais uma vez, eu seria enviada como remédio.
Como castigo.
Como moeda de troca.
Não esperava nada daquele encontro. Estava pronta para outra armadilha. Mais um cárcere bonito por fora e podre por dentro.
Mas então… conheci Eduardo.
Ele entrou na sala com passos leves, sorriso doce e um olhar que, em vez de me atravessar, me acolheu.
Usava uma calça de sarja clara e camisa azul bem passada. Os cabelos penteados de lado, as bochechas levemente coradas, e uma timidez que me fez esquecer, por um instante, da armadilha em que eu supostamente estava.
Estendeu a mão com delicadeza.
Os olhos encontraram os meus e não havia julgamento neles.
Apenas... respeito.
— É um prazer, Isabel — disse ele, com a voz baixa.
Eu queria responder com frieza. Mas não consegui.
Naquele breve toque, pela primeira vez em anos, eu não fui medida.
Não fui avaliada.
Não fui desejada como posse.
Ele apenas queria me conhecer.
Eduardo era diferente.
Gentil.
Atento.
Havia uma doçura nele que não combinava com a brutalidade do mundo ao nosso redor.
Ele não sabia da minha história. Mas me olhava como se intuísse que eu vinha de um lugar escuro. E, mesmo assim… não recuava.
Pela primeira vez, eu quis ficar.
Não por obrigação.
Não por estratégia.
Mas por curiosidade.
Talvez o destino estivesse cansado de me maltratar e tivesse decidido me dar uma pausa.
Ou talvez... Eduardo não fosse uma pausa.
Talvez ele fosse o começo.
Não. Eu jamais o amaria.
Amor, para mim, tinha o nome de Manoel — e um buraco onde antes batia o meu coração.
Tudo que eu queria era encontrar os meus filhos.
Mas... os dias na fazenda foram leves. Tranquilos.
Eduardo me respeitava, e isso já era mais do que qualquer homem havia me oferecido.
Minha mãe, no entanto, estava furiosa.
— Seu pai só pode estar louco de querer que você se case com ele. Está na cara que esse rapaz não é homem de verdade — disse ela, quase cuspindo as palavras.
Permaneci calada.
Ela nunca achou loucura me casar com um velho asqueroso.
Nunca achou exagero quando me prenderam em um hospício.
Nunca se indignou quando arrancaram meus filhos dos meus braços.
Mas agora… agora ela achava um absurdo eu ter paz.
Achava inaceitável eu me aproximar de um homem doce.
E talvez isso dissesse muito sobre o mundo em que nasci.
Dois dias antes do nosso casamento, Eduardo me convidou para sair.
— Quero te levar a um lugar especial. Só nós dois — ele disse, com aquela voz mansa que sempre parecia pedir permissão, nunca impor.
Minha mãe, como era de se esperar, torceu o nariz.
— Isso não é apropriado. Ainda mais vindo dele...
Mas, curiosamente, meu pai aceitou sem contestar.
A sociedade com os Castanho já estava selada, o contrato assinado, e ele provavelmente acreditava que, dali pra frente, eu estava domada o suficiente para não fugir do script.
Eu, por outro lado… hesitei.
Não por Eduardo.
Mas por mim.
Por tudo que eu já tinha vivido e pelo medo que ainda me assombrava, como uma sombra constante atrás dos ombros.
Medo de confiar.
Medo de me entregar ao mínimo gesto de gentileza e depois pagar caro por isso.
Mas mesmo com o coração acelerado, aceitei.
Naquela noite, ele apareceu na porta do meu quarto com um vestido azul claro nas mãos.
— Eu sei que você não gosta de presentes. Mas... acho que esse lugar merece algo bonito — disse, quase envergonhado.
— O vestido ou eu? — perguntei, com um meio sorriso.
— Os dois — ele respondeu, sem piscar.
E foi aí que senti medo de verdade.
Porque aquele homem… ele não queria me comprar.
Ele queria me cuidar.
E eu não sabia mais o que fazer com esse tipo de bondade.
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Saímos por volta das oito da noite.
Ele dirigia devagar, a estrada de terra batida fazendo o carro balançar suavemente. A lua cheia iluminava os campos ao redor, e a brisa morna da noite tocava meu rosto pela janela aberta. Ficamos em silêncio por um tempo, como se as palavras fossem desnecessárias. Era uma quietude confortável. Quase íntima.
Depois de cerca de meia hora, ele parou o carro em frente a um casarão antigo, com janelas altas e jasmim trepando pelas grades do portão. Havia uma pequena estufa nos fundos, de onde saía uma luz tênue e âmbar.
— Aqui era da minha avó — ele explicou. — Depois que ela morreu, ninguém mais veio. Eu costumava passar tardes aqui quando era pequeno. Plantava flores com ela, lia livros no chão da estufa... Nunca trouxe ninguém até aqui.
Desci do carro com cuidado, como se pisasse num sonho.
O ar ali era diferente. Cheirava a terra úmida, ervas e lembranças.
— Por que me trouxe aqui? — perguntei.
— Porque esse lugar é meu abrigo. E... Sinto que você é igual a mim de alguma forma e precisamos conversar sobre o nosso futuro.
Sentou-se comigo em uma mesa na estufa onde tinha um jantar romântico, cruzou as mãos no colo, respirou fundo e me olhou com a mesma doçura respeitosa que havia demonstrado no primeiro instante. Não havia desejo. Nem cobrança. Só uma calma estranha, quase melancólica.
— Isabel… — começou, com a voz baixa e firme — eu vou ser direto com você, porque não quero repetir o que fizeram comigo: esconder verdades para manipular decisões.
Me preparei para o pior.
— Eu sou gay. — ele disse, olhando nos meus olhos. — Não sou confuso, nem indeciso, nem é uma fase. Eu sou. E isso nunca vai mudar.
Não desviei o olhar. Nem um centímetro.
Ele notou. E sorriu, meio aliviado.
— Meu pai acha que o casamento vai me 'curar', ou pelo menos esconder. E me prometeu que, se eu aceitasse casar com alguém de 'boa família', ele me deixaria trabalhar em paz, sem mais vigilância, sem ameaças de deserdar.
Fez uma pausa.
— Eu não sei o que te contaram. Eu não sei o que esperam de você. Mas eu não vou mentir: nunca vou conseguir te amar como homem. Não vou te tocar. Não vou mentir pra mim nem pra você.
As palavras dele me atravessaram como um sopro — não de dor, mas de uma liberdade que eu não sabia que existia.
Ele continuou:
— Mas eu posso te respeitar. Posso te dar paz. Posso te oferecer segurança, nome, casa. Se você quiser. Mas… também vou entender, de verdade, se quiser sair agora. Você merece um amor inteiro. Não uma encenação. Não mais uma prisão.
Fiquei em silêncio por um tempo.
O silêncio da reflexão.
Não porque eu tinha dúvidas — mas porque, pela primeira vez, alguém me dava uma escolha real.
— Eduardo… você é o um dos primeiros homens que me diz a verdade. — minha voz saiu embargada. — E talvez por isso… você seja o primeiro em quem eu confio depois de um pesadelo.
Ele me olhou, surpreso.
— Eu também não quero ser tocada. Não ainda. Não assim. O amor… não sei se ainda acredito nele. Mas a paz… a paz eu desejo com todas as minhas forças.
Nos olhamos em silêncio. Um pacto silencioso se formou ali.
Não era um romance.
Era uma aliança entre dois sobreviventes.
Dois herdeiros quebrados, tentando existir sem ferir.
Tentando ser abrigo, não prisão.
Eduardo me ouvia. Sem pressa. Sem julgamento. Sem intenções ocultas.
Era como um abrigo — um raro abrigo num mundo onde tudo em mim havia sido explorado, menos meu silêncio.
Quando ele terminou de explicar suas condições e me ofereceu liberdade, algo dentro de mim se moveu.
— Eduardo... — respirei fundo, com o coração apertado. — Se você me ajudar a encontrar as pessoas que eu mais amo no mundo, eu me caso com você. Juro que serei a esposa perfeita, para quem quiser olhar de fora. Vamos manter as aparências, manter nossos mundos intactos. Mas eu... preciso da sua ajuda.
Ele inclinou a cabeça levemente, curioso.
— Quem são essas pessoas?
Meus olhos encheram d’água. A resposta escapou quase num sussurro:
— "Meus filhos."
O rosto dele mudou. Não de surpresa, mas de empatia genuína. Ele esperou eu continuar, sem pressionar, apenas segurando minha mão com delicadeza, como quem segura algo frágil — e sagrado.
— Eles foram arrancados de mim logo após o parto. Gêmeos. Um menino e uma menina. Eu nem pude segurar. Nem dar um nome. Meu pai os levou de mim.
Ele apertou levemente minha mão, os olhos marejados.
— Isabel... — murmurou, com a voz embargada — Você não está sozinha. Eu vou te ajudar. Vamos encontrá-los. Juro por tudo que me resta.
Me permiti chorar. Pela primeira vez, sem vergonha.
E ele me puxou para um abraço — um abraço de alma, não de corpo.
Depois de alguns minutos em silêncio, ele limpou os olhos e sorriu, tentando aliviar o peso da dor:
— Olha... se eles forem como você, já posso avisar que vou ser um bom pai. Meio atrapalhado, talvez, mas carinhoso. Posso ser aquele tipo que faz panqueca no café da manhã e ensina a dançar em silêncio na sala.
Dei uma risada baixa, surpresa.
— Você dança?
— Mal, mas com convicção. — ele piscou, e o riso escapou de mim, leve, como se abrisse um fecho enferrujado.
Depois ele ficou sério de novo, um pouco hesitante.
— Tem só uma coisa que eu preciso te dizer… ou melhor, perguntar.
Assenti.
— Meu pai vai exigir um herdeiro. Talvez não agora. Mas em algum momento. E eu não sei como faríamos isso, honestamente. Mas só toparia… se você quisesse. Porque o corpo é seu. Só seu.
Fiquei em silêncio. A pergunta era justa. E dolorosa.
— Eu não sei se consigo, Eduardo… — minha voz quebrou. — Depois do que fizeram comigo. Das drogas, dos choques… do parto sem anestesia. Meu útero pode ter resistido, mas meu coração… ainda está tentando. Tenho medo de tentar e não conseguir. Ou conseguir e… perder tudo de novo."
Ele colocou a mão sobre meu joelho com delicadeza.
— Você não me deve nada, Isabel. Nem filhos, nem explicações. Mas se algum dia quiser tentar… eu estarei do seu lado. E se não quiser, tá tudo bem também. Você já foi obrigada demais. Agora, tudo será no seu tempo. Só no seu.
Assenti com um nó na garganta.
Naquele momento, selamos nosso pacto.
Não um pacto de amor romântico, mas de lealdade.
De resgate.
De duas almas tentando reconstruir os escombros deixados pelas famílias que as usaram como peças.
E assim, começava uma nova jornada.
Ela não prometia milagres.
Mas prometia esperança.
E depois de tudo que vivi, isso era mais do que suficiente.
©©©©©©©©©
Continua...