Isabel Matarazzo
É difícil falar. É como se minha garganta ainda estivesse cercada pelas paredes frias daquele lugar. Mesmo agora, tantos anos depois, as palavras doem como se fossem cacos de vidro sendo arrancados da carne. Meus pais me internaram em um hospício particular assim que descobriram. Eu estava grávida. Grávida do único homem que amei. Grávida de um morto. Não era mais seguro abortar, disseram. O risco era grande demais. Não por mim — mas pelo sobrenome. Pela reputação. Pela herança. Eu era a única filha. A única herdeira. E eles tinham planos. Grandes planos. Meu destino já tinha sido vendido para um velho poderoso, amigo do meu pai. Um acordo selado entre uísques caros e promessas de controle. Um homem que jamais aceitaria bastardos manchando sua linhagem. E então me trancaram. Disseram que eu estava doente. Que havia perdido a razão. Mas a única coisa que eu tinha perdido… foi o direito de ser mãe em paz. Dentro daquele lugar, o tempo escorria torto. O silêncio era cortado por gritos. Gritos de outras mulheres, de outras prisioneiras da conveniência. O cheiro de desinfetante, o som das correntes nas portas, a frieza das enfermeiras que nunca me olhavam nos olhos — tudo aquilo era um lembrete diário de que eu era um erro a ser corrigido. Mas eles estavam lá. Dentro de mim. Cada chute, cada reviravolta sob as costelas era uma mensagem secreta: — “Estamos aqui, mãe.” — “Lute por nós.” Mesmo quando as drogas faziam o mundo girar e os choques queimavam minha carne, mesmo quando me deixavam dias sem ver a luz do sol ou sem ouvir um nome humano… eles estavam lá. Meus filhos. A única verdade que eu podia tocar. Eu falava com eles à noite, entre as grades mentais e os lençóis ásperos. Sussurrava promessas. Dizia: — “Seu pai nos vê, meus amores…” E eles se mexiam. Como se reconhecessem. Como se sentissem a presença dele, ainda que já ausente deste mundo. O amor que eu sentia por aquele homem — mesmo morto — vivia neles. Nos pontapés. Nos soluços. No calor que resistia à anestesia forçada. Eu sabia que a ciência explicava isso hoje: o feto se comunica com a mãe, libera hormônios, responde ao toque, compartilha emoções. Mas naquela época... era minha fé. Minha sobrevivência. A biologia foi meu escudo. O vínculo, minha única chance de não enlouquecer de vez. Eles diziam que era delírio. Que eu imaginava tudo. Mas o corpo não mente. A linha escura que surgiu do umbigo até os pelos pubianos. Os seios inchados, pesados, doloridos — atravessados por veias azuladas que pareciam mapas de esperança. O ritmo insistente dos soluços fetais depois de cada refeição forçada. Eu não estava louca. Eu estava grávida. Estava apaixonada. E estava resistindo. E por mais que tentassem me destruir, por mais que me reduzissem a um corpo indesejado carregando vidas inconvenientes… eu nunca deixei de amá-los. Nunca deixei de protegê-los. Mesmo sangrando por dentro. Mesmo sem saber se algum dia sairia de lá viva. Eles foram minha luz. E o amor foi minha revolução silenciosa. .... Lembro do parto como se meu corpo ainda o estivesse vivendo. Eu já não tinha mais direito a nada. Nem à dignidade. Nem ao silêncio. Nem ao esquecimento. Na manhã em que entrei em trabalho de parto, me arrancaram da cama como se eu fosse um animal em abate. Não houve carinho, não houve palavras suaves — apenas ordens, mãos frias, e olhares que me atravessavam como se eu fosse um erro que precisava ser eliminado com urgência. Estavam todos prontos. Menos eu. Eu não estava pronta para dar à luz num ambiente que mais parecia um campo de extermínio. Eu não estava pronta para parir sob castigo. Meu pai fez questão de estar presente. Ele exigiu que eu estivesse consciente. Que me mantivessem acordada — e que não me dessem nenhuma anestesia. — Ela tem que sentir cada dor. Tem que lembrar cada contração. Cada grito. É o mínimo que merece por desonrar essa família, ele disse, sem um pingo de remorso na voz. As enfermeiras obedeceram. As mãos firmes que deveriam acolher, prenderam. Os olhos que deveriam cuidar, julgavam. As contrações vinham como ondas furiosas, rasgando meu corpo por dentro, mas ninguém me amparava. Ninguém dizia "vai passar". Ao contrário: me deixavam sozinha por longos períodos. Quando voltavam, eram para forçar meu corpo a continuar, mesmo quando ele implorava por descanso. Uma delas segurou meus punhos quando tentei me encolher de dor. Outra forçou meu quadril contra a maca quando meu corpo tremia descontroladamente. E então veio o toque vaginal agressivo, repetitivo, sem explicação, sem consentimento. — "Tá chorando por quê? Se teve prazer pra fazer, aguenta pra tirar." E eu ali, aberta, vulnerável, esmagada. Gritei o nome dele. Do pai dos meus filhos. Não por achar que ele viria — ele estava morto — mas porque era o único nome que ainda me dava alguma força. Os bebês nasceram. Dois, um menino e uma menina. Fortes. Lindos. Chorei. Não de alívio, mas de pavor. Porque logo em seguida, meu pai se aproximou. Pediu para me soltarem. Queria que eu visse. — "Abre bem os olhos, Isabel. Eles estão indo embora. Pra nunca mais. Você quis parir esse erro, então vai assistir à punição." A dor da episiotomia ainda aberta. O útero contraído em espasmos de sofrimento. E mesmo assim, fui forçada a assistir. Vi os pequenos embrulhados às pressas. Vi suas pernas se mexendo. Ouvi um deles chorar. E o som daquele choro foi como uma faca atravessando o osso. Me estiquei o quanto pude, implorei. Senti o sangue escorrer pelas coxas enquanto gritava: — Eles são meus! Por favor… não leva… eu faço o que você quiser, mas por favor não me tira os meus filhos, por favor deixa de ver os meus filhos... Mas ninguém ouviu. Ou melhor: todos ouviram. E ignoraram. Quando a porta se fechou atrás deles, algo dentro de mim também se fechou para sempre. Naquele dia, eu morri em partes. A mãe que eu poderia ser foi arrancada. O direito de amar foi cassado. E tudo o que me restou… foi essa lembrança cruel, esse parto marcado não pela vida que trouxe ao mundo, mas pela violência que quase me tirou dele. Mal tive tempo de respirar depois do parto. Mal tive tempo de chorar meus filhos levados. Estava exausta, febril, sangrando por dentro e por fora — e ainda assim, não acabou ali. O que veio depois… foi uma segunda violência. Fria. Calculada. Cirúrgica. Assim que os gritos cessaram e o silêncio absoluto voltou a preencher o quarto, meu pai entrou novamente. Dessa vez acompanhado de dois homens de jaleco branco. Um deles sorriu como se aquilo fosse um procedimento qualquer. O outro nem olhou nos meus olhos. Olharam para meu corpo como quem avalia uma mercadoria danificada. — “Vamos restaurar a sua honra agora, Isabel.” As palavras dele ainda soam como açoite. Eu, ainda com as pernas abertas, rasgada pelas 23 horas de parto, anestesiada apenas pela dor que o desespero anestesia, ouvi tudo como se estivesse submersa. Mas senti cada toque. Cada agulhada. Cada marca que deixavam sob a pele que já não me pertencia. Eles haviam trazido os melhores cirurgiões plásticos da Europa. Estavam ali a pedido do meu pai. Já haviam estudado meu corpo antes, claro. Já sabiam onde costurar, onde levantar, onde "corrigir os estragos". Porque, afinal, uma mulher marcada por um parto fora do casamento não era mais digna. Uma mulher com flacidez ou cicatriz não serviria para vestir branco ao lado de um milionário decrépito e influente. Meu corpo virou um projeto. Redefiniram meus seios, reposicionaram meu ventre, ocultaram qualquer rastro de gravidez. Quiseram até “melhorar” minha expressão, suavizar olheiras, redesenhar meu rosto, como se a dor estivesse escrita em traços que eles pudessem apagar. Nenhuma dessas intervenções foi consentida. Nenhuma. E, ironicamente, só fui anestesiada na hora da cirurgia. — “Você vai parecer virgem.” — “Seu futuro marido nem vai notar.” Mas eu notava. Tudo. Cada fio de cabelo arrancado. Cada camada da minha pele despersonalizada. Cada pedaço de mim moldado ao gosto de um casamento que eu jamais teria escolhido. Fizeram de mim um molde. Um fantoche. Uma boneca restaurada para brilhar sob holofotes, sem alma, sem filhos, sem história. E eu... eu apenas desejava morrer. Ou esquecer. Mas nem isso me foi dado. Porque o corpo pode até ser refeito, mas a memória — essa não se anestesia. E enquanto costuravam minha carne, eu costurava em silêncio a promessa de um dia, um dia, olhar nos olhos dos meus filhos e dizer: — "Eu lutei por vocês. Mesmo quando me tomaram tudo." .... Naquela noite, depois do casamento a viagem estava prestes a começar. Íamos para a costa da Itália — César queria me exibir em um iate luxuoso, com champanhe importado e joias novas para cada jantar. Mas antes da viagem, ele exigiu um momento a sós. Um ritual dele, como disse. Uma “tradição” de homem velho, abusivo, que via mulheres como propriedades a serem inspecionadas antes de serem usadas. Eu já sabia o que vinha. O ar mudou. A forma como ele fechou as cortinas. O jeito como trancou a porta. — "Tire a roupa." — ordenou. Não pediu. Ordenou. — "Quero ver. Quero ter certeza de que me deram uma esposa intacta. Uma mulher digna de ser mãe do meu herdeiro. Seu pai me prometeu pureza, Isabel." Meu estômago se revirou. Senti o chão sumir sob os pés. Era como voltar para o hospício. Como estar de novo naquela sala de cirurgia, com mãos frias redesenhando o que restou de mim. Fiquei parada. Muda. Olhos fixos nele. O robe dele mal escondia a impaciência. Ele estava suando. A respiração pesada. A expectativa nojenta estampada no rosto. Dei um passo para trás. — "Não me faça perder a paciência. Você é minha esposa agora." Ele se sentou na beira da cama. Desatou o cinto do robe. E repetiu, com os dentes cerrados: — "Tire. A. Roupa." Foi nesse instante que ele parou. Um leve arquejo. A mão foi ao peito. O rosto, de repente, ficou pálido, depois rubro. Os olhos arregalaram. — "Is… Isabel…" — ele tentou dizer algo, mas a boca já não acompanhava. A respiração virou ruído. Eu continuei parada. O corpo congelado. A alma em alvoroço. Ele se levantou bruscamente — ou tentou — e cambaleou. Tombou para o lado, bateu a cabeça na lateral da cômoda e caiu como um peso morto sobre o tapete. Demorou alguns segundos para o som do corpo dele atingir meus ouvidos. Demorou mais alguns para meu cérebro entender o que aquilo significava. E então, o silêncio. Ele estava morto. Infartado a segundos de me destruir. Caído como um predador que foi impedido pelo próprio coração de cometer mais um crime. Não chorei. Não corri. Só respirei. Pela primeira vez em meses… respirei. Eu ainda tremia. Ainda sentia o gosto do medo na garganta. Mas ali, naquela suíte opulenta, com lustres de cristal e lençóis de linho italiano, o monstro jazia inerte no chão. E eu estava viva. Intacta no que realmente importava: Na minha essência. Na minha coragem. Na minha promessa de reencontrar meus filhos. César não me teve. Não me arrancou nada. E por uma ironia cruel do destino… me deixou tudo. Fortuna. Liberdade. E tempo. O suficiente para, finalmente, começar a reconstruir a mulher que fui obrigada a enterrar viva. ©©©©©©©© Continua...