Enya
Duas semanas tinham se passado desde a noite em que eu deixei meu mundo desabar no meio de uma festa. E, por incrível que pareça, eu quase tinha conseguido enfiar tudo num canto escuro da memória e seguir em frente.
Eu me agarrava a qualquer migalha de rotina, como se isso fosse o bastante pra me manter de pé. Acordava cedo, tomava banho, ajeitava as coisas no quarto que a Bruna me emprestou — um colchão no chão e um armário que rangia cada vez que eu abria a porta. Mas, de certa forma, me fazia sentir que eu ainda tinha algum controle.
A Nádia tinha ligado algumas vezes. Eu sempre atendia, mas as conversas acabavam do mesmo jeito:
— Volta pra cá, Enya — ela implorava, a voz cansada.
— Enquanto você dividir o teto com aquele homem, não dá. Eu não piso aí — eu respondia.
Ela sempre ficava em silêncio, e eu desligava antes que o silêncio nos engolisse de vez.
Eu quase tinha convencido a mim mesma que estava tudo bem.
Quase.
Naquela manhã, o sol entrou pela fresta da cortina, e eu levantei pra preparar o café.
Coloquei água pra ferver, misturei o pó com cuidado e senti o cheiro quente e amargo me dar uma pontada de vida. Peguei um pão, passei manteiga, coloquei queijo e levei pra chapa.
E foi aí que o cheiro subiu.
O cheiro forte de manteiga e queijo derretendo, misturado ao vapor do café com leite, bateu no meu estômago como um murro. Eu não tive tempo nem de desligar o fogo — larguei tudo e corri pro banheiro, ajoelhada no chão frio, o gosto ácido na garganta.
Quando voltei pra cozinha, Bruna estava encostada no batente, me olhando com aquele meio sorriso que ela fazia quando estava preocupada, mas não queria demonstrar.
— Tá tudo bem aí? — ela perguntou, o cigarro aceso entre os dedos.
— Deve ser alguma coisa que eu comi… — eu disse, a voz rouca.
Ela arqueou a sobrancelha, soprando a fumaça devagar.
— Alguma coisa que você comeu ou… alguém? — o tom dela era brincalhão, mas o olhar era sério.
— Bruna, o que isso tem a ver? — eu rebati, me irritando de leve.
— Tem a ver que você quase vomitou só de sentir cheiro de pão, Enya. Isso não é normal — ela insistiu, cruzando os braços.
Eu suspirei, encostando na pia. Tentei puxar pela memória. Tentei não pensar. Mas era impossível.
A festa.
A música alta.
A pele quente contra a minha.
As mãos dele me segurando como se fosse a última coisa no mundo.
— Foi só aquela noite — eu disse, quase num sussurro.
— Você se protegeu? — Bruna perguntou, a voz baixa agora.
Eu não respondi. Nem precisava.
Ela soltou um palavrão baixinho e apagou o cigarro no cinzeiro.
— Espera aqui — ela disse, saindo como um furacão.
Dez minutos depois, voltou com um pacotinho na mão e me jogou no colo.
— Vai pro banheiro agora, Enya. Sem discussão.
Eu segurei o teste com os dedos trêmulos, o coração batendo no peito como um tambor.
Me tranquei no banheiro, sentindo o chão gelado debaixo dos pés. Rasguei a embalagem, as mãos suadas escorregando no plástico.
Fiz o que tinha que fazer.
Esperei.
Um minuto, dois… parecia que o tempo tinha parado.
Quando a segunda linha apareceu, meus joelhos ficaram moles.
Eu encostei a cabeça na parede fria, a respiração curta.
Bruna bateu do outro lado.
— E aí?
— Duas linhas — eu sussurrei, a voz quase não saindo.
Ela ficou em silêncio por um momento, depois abriu a porta e me puxou pra fora.
— Duas linhas — repetiu, como se fosse uma sentença.
Eu me olhei no espelho, o rosto pálido, os olhos arregalados.
Eu não sabia nem o nome dele. Não sabia nada além das mãos quentes, do cheiro dele, do gosto de álcool e desespero.
Mas agora, não tinha mais como fingir que aquela noite não aconteceu.
Não tinha mais como fingir que minha vida não tinha mudado.
E, no fundo, eu sabia:
O inferno que começou naquela noite estava só começando.