Capítulo 2

Enya

Duas semanas tinham se passado desde a noite em que eu deixei meu mundo desabar no meio de uma festa. E, por incrível que pareça, eu quase tinha conseguido enfiar tudo num canto escuro da memória e seguir em frente.

Eu me agarrava a qualquer migalha de rotina, como se isso fosse o bastante pra me manter de pé. Acordava cedo, tomava banho, ajeitava as coisas no quarto que a Bruna me emprestou — um colchão no chão e um armário que rangia cada vez que eu abria a porta. Mas, de certa forma, me fazia sentir que eu ainda tinha algum controle.

A Nádia tinha ligado algumas vezes. Eu sempre atendia, mas as conversas acabavam do mesmo jeito:

— Volta pra cá, Enya — ela implorava, a voz cansada.

— Enquanto você dividir o teto com aquele homem, não dá. Eu não piso aí — eu respondia.

Ela sempre ficava em silêncio, e eu desligava antes que o silêncio nos engolisse de vez.

Eu quase tinha convencido a mim mesma que estava tudo bem.

Quase.

Naquela manhã, o sol entrou pela fresta da cortina, e eu levantei pra preparar o café.

Coloquei água pra ferver, misturei o pó com cuidado e senti o cheiro quente e amargo me dar uma pontada de vida. Peguei um pão, passei manteiga, coloquei queijo e levei pra chapa.

E foi aí que o cheiro subiu.

O cheiro forte de manteiga e queijo derretendo, misturado ao vapor do café com leite, bateu no meu estômago como um murro. Eu não tive tempo nem de desligar o fogo — larguei tudo e corri pro banheiro, ajoelhada no chão frio, o gosto ácido na garganta.

Quando voltei pra cozinha, Bruna estava encostada no batente, me olhando com aquele meio sorriso que ela fazia quando estava preocupada, mas não queria demonstrar.

— Tá tudo bem aí? — ela perguntou, o cigarro aceso entre os dedos.

— Deve ser alguma coisa que eu comi… — eu disse, a voz rouca.

Ela arqueou a sobrancelha, soprando a fumaça devagar.

— Alguma coisa que você comeu ou… alguém? — o tom dela era brincalhão, mas o olhar era sério.

— Bruna, o que isso tem a ver? — eu rebati, me irritando de leve.

— Tem a ver que você quase vomitou só de sentir cheiro de pão, Enya. Isso não é normal — ela insistiu, cruzando os braços.

Eu suspirei, encostando na pia. Tentei puxar pela memória. Tentei não pensar. Mas era impossível.

A festa.

A música alta.

A pele quente contra a minha.

As mãos dele me segurando como se fosse a última coisa no mundo.

— Foi só aquela noite — eu disse, quase num sussurro.

— Você se protegeu? — Bruna perguntou, a voz baixa agora.

Eu não respondi. Nem precisava.

Ela soltou um palavrão baixinho e apagou o cigarro no cinzeiro.

— Espera aqui — ela disse, saindo como um furacão.

Dez minutos depois, voltou com um pacotinho na mão e me jogou no colo.

— Vai pro banheiro agora, Enya. Sem discussão.

Eu segurei o teste com os dedos trêmulos, o coração batendo no peito como um tambor.

Me tranquei no banheiro, sentindo o chão gelado debaixo dos pés. Rasguei a embalagem, as mãos suadas escorregando no plástico.

Fiz o que tinha que fazer.

Esperei.

Um minuto, dois… parecia que o tempo tinha parado.

Quando a segunda linha apareceu, meus joelhos ficaram moles.

Eu encostei a cabeça na parede fria, a respiração curta.

Bruna bateu do outro lado.

— E aí?

— Duas linhas — eu sussurrei, a voz quase não saindo.

Ela ficou em silêncio por um momento, depois abriu a porta e me puxou pra fora.

— Duas linhas — repetiu, como se fosse uma sentença.

Eu me olhei no espelho, o rosto pálido, os olhos arregalados.

Eu não sabia nem o nome dele. Não sabia nada além das mãos quentes, do cheiro dele, do gosto de álcool e desespero.

Mas agora, não tinha mais como fingir que aquela noite não aconteceu.

Não tinha mais como fingir que minha vida não tinha mudado.

E, no fundo, eu sabia:

O inferno que começou naquela noite estava só começando.

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