Mundo ficciónIniciar sesión◇ Alguns dias depois♧
" O destino deve estar me olhando, com aquela cara de quem diz... IDOTA. " Viena Santoro. A silhueta da minha avó se recorta contra a luz que entra pelas grandes janelas da sala da presidência. Ela observa a movimentação da cidade abaixo com os braços cruzados para trás, a postura rígida, impecável. Sempre foi assim - séria, inabalável. Eleanor Santoro é conhecida por comandar o império que fundou há quase cinco décadas com mãos de aço. É uma das mulheres mais bem-sucedidas do país, admirada por sua classe, força e coragem. Um exemplo a ser seguido. Ou temido. Ou ambos. Eu sou sua única neta. Na verdade, sua única herdeira em todos os sentidos. Eleanor me criou desde que perdi meus pais em um acidente, anos atrás. Eu era muito nova para lembrar do que aconteceu - ou deles. Mas me lembro de crescer com Eleanor. Lembro da forma como ela cuidava e ainda de mim: dura, mas presente. Amorosa, à sua maneira. Minha avó não demonstra sentimentos. Não em público. Jamais em público. Ela sempre repetia: "Nunca deixe que saibam onde dói. Eles vão usar isso contra você." Cresci com essa filosofia cravada nos ossos. Nunca demonstrar fraqueza. Não importa o quanto a situação seja desesperadora - permaneça impassível. Emoção não resolve nada. Emoção atrapalha. Emoção destrói. Eleanor é italiana. É daí que vem o sobrenome Santoro - e a imponência que o acompanha. A sede do Grupo Santoro fica em Milão, onde ela vive atualmente. Então, entendam: algo muito grande teve que acontecer pra fazer Eleanor cruzar o oceano até a sede americana, convocando uma reunião de última hora... comigo. Dá pra entender o tamanho da merda em que eu me enfiei? - Nona... - chamo, com a voz baixa, monótona como de costume, mas com um traço de ansiedade que não consigo esconder totalmente. Ela se vira lentamente, os olhos azuis - frios, calculistas - me encaram sem pressa. Conheço aquele olhar. Vai ser uma conversa longa. Entro no escritório, fecho a porta atrás de mim. Minha avó caminha até a mesa e pressiona um botão no controle. Um sistema que bloqueia as câmeras, desativa microfones, corta qualquer chance de sermos ouvidas. Privacidade total. Porque quando Eleanor Santoro decide falar... ninguém mais escuta. Ela se senta na cadeira da presidência com uma elegância que parece ensaiada. Cada movimento exala poder. Eu engulo em seco. - Sente-se, Viena. - diz, apontando para a cadeira à frente com a voz firme. A mesma voz que moldou quem eu sou. Por um instante, lembro da adolescente rebelde que cresceu achando que o mundo lhe devia algo só por carregar esse sobrenome. Lembro do choque de realidade que tomei naquela madrugada, em Milão. Três da manhã. Delegacia. Eleanor me buscando depois que minhas "amizades" sumiram no primeiro sinal de problema. E aquelas palavras dela me atravessando como lâmina: "Você não é como eles. Não deve agir como tal. Essas pessoas que te arrastam para o caos serão as mesmas que vão virar as costas quando tudo desabar, Viena. Não existe lealdade no mundo em que vivemos. Espero que você entenda isso." Desde então, nunca mais esqueci. E hoje, sentada à frente dela, vestida com a ressaca da minha última burrada, percebo que talvez não tenha entendido tão bem quanto achava. - Sabe, querida... - a voz fria da minha avó dá lugar a um tom doce, quase maternal. - Sempre imaginei que veria minha neta casando de branco. Que eu ajudaria em cada detalhe e que seu avô a levaria até o altar. - Ela sorri com genuína nostalgia na voz. - Quando ele faleceu, essa tarefa passou para mim. E acredite, minha menina, eu faria isso com o maior gosto do mundo. Um sorriso suave toca seus lábios ao mencionar meu avô, Mattheo Rossi. Um homem que aprendi a admirar desde sempre. Mais do que isso... aprendi com ele o que deveria - e o que jamais deveria - aceitar em um relacionamento. Meus avós eram rei e rainha do próprio castelo. Parceiros em tudo. Sempre juntos, não importava a tempestade. Me espelhei nisso. Ainda me espelho. - Sinto falta do vovô... - confesso, com a voz falhando por um breve instante. - Eu também, querida. - Ela responde com o mesmo sorriso suave, mas logo volta ao tom sério. - Mas voltando ao assunto... imagine minha surpresa há dois dias, ao receber em minha casa a certidão de casamento da minha única neta. Ela faz uma pausa, e eu sinto o sangue sumir do rosto. - O espanto e a descrença tomaram conta de mim. Ainda mais por descobrir que você, supostamente, estava casada. E com alguém de quem eu nunca sequer ouvi falar como um possível relacionamento. - Como é? - pergunto, confusa. - Certidão de casamento? Nona, eu não faço ideia do que está falando. Eu nem estou em um relacionamento, quanto mais casada! Com toda a calma que só Eleanor Santoro é capaz de sustentar, ela empurra uma pasta preta na minha direção - a mesma que estava sobre a mesa desde que entrei. Pego, ainda com a testa franzida, e começo a folhear os papéis. Tudo parece confuso, até que chego à última folha. Uma certidão de casamento. Com minha assinatura. Emitida em um cartório em Las Vegas. Na mesma noite daquela maldita festa... a que até hoje me deixa com uma ressaca emocional e física. Mas o pior não é isso. O pior está ali, estampado com todas as letras bem abaixo do meu nome. Héctor Beaumont. O cretino. O cafajeste. O maldito que eu mais odeio na face da terra. Isso só pode ser uma piada. Uma pegadinha. Mais uma das muitas tentativas de Beaumont me tirar do eixo. Mas dessa vez ele foi longe demais. - Viena. - a voz firme da minha avó me puxa de volta pra realidade. - Isso é falso, Nona. - afirmo com convicção, tentando acreditar nas minhas próprias palavras. - É só mais um joguinho sujo do Héctor. Nada disso é real. - Não, querida. - ela responde com calma cirúrgica. - Meus advogados já analisaram tudo. O documento é autêntico. O casamento é legal. - Como isso é possível? - murmuro em choque, segurando a certidão como se encarar aquele papel pudesse desfazer a merda já feita. - Eu quem deveria estar perguntando. - A voz dela soa curiosa e, pela primeira vez, levemente preocupada. - Achei que você e o senhor Beaumont se odiassem. Mas pelo visto esse ódio... evoluiu. - Dormimos juntos, Nona. - bufo, jogando o papel sobre a mesa e passando as mãos no rosto, tomada pela vergonha. - Uma vez. Uma maldita vez. Em Vegas. E só isso. Ela me observa com aquele meio sorriso. O famoso sorriso Santoro. Aquele que ela só usa quando já sabe que tem muito mais por trás - e só está esperando que eu perceba. - E antes que pergunte: sim, usamos preservativo. E não, você não vai se tornar bisa-avó agora. E nós definitivamente não estamos juntos. - Tudo bem, querida. Não precisa se exaltar dessa forma. - ela responde com o mesmo sorriso que me tira do sério. - A propósito, deveria verificar os outros papéis na pasta. Há... algo interessante no contrato que vocês assinaram. Mas não se preocupe, não vou dar spoiler. - Ela se levanta com a calma de quem está apenas trocando a bolsa. - Estou de saída. Tenho um encontro com uma amiga para relembrar os bons tempos. Sem dizer mais nada, minha avó sai da sala da presidência, deixando apenas o som dos seus saltos e o silêncio absoluto do caos que ela plantou. E eu? Fiquei ali, com cara de quem viu um fantasma. Porque talvez... tenha visto mesmo. Meus dedos deslizam pelas páginas, folheando uma a uma com atenção. Cada linha lida na esperança de encontrar alguma brecha, algum ponto que me tirasse desse pesadelo jurídico em que me enfiei. Mas justo quando penso que talvez tenha uma chance de escapar... lá está ela. A cláusula. A maldita cláusula que deveria me libertar dessa merda toda. Quase caio pra trás. Em negrito e sublinhado, como se alguém quisesse ter certeza de que eu jamais ignoraria: "O casamento deve permanecer válido por, no mínimo, seis meses. Caso uma das partes o anule antes do prazo, deverá ceder 50% de seus bens à parte prejudicada como forma de compensação por dano emocional." Leio. Releio. E por um instante sinto tudo girar. De novo. Como naquela manhã em Vegas, quando acordei sem memória, sem dignidade... e aparentemente, sem liberdade civil também. Seis meses. Seis. Malditos. Meses. Casada com aquele troglodita. Sem poder pedir divórcio. Sem poder anular. Sem poder desaparecer do mapa. É uma piada. Só pode ser. Não faço ideia de como essa merda começou, mas de uma coisa eu tenho certeza: Eu vou acabar com esse casamento. Nem que, pra isso, eu precise ficar viúva.






