4: O Contrato

Na manhã seguinte, Amanda acordou com a cabeça cheia. A conversa da noite anterior continuava martelando na mente dela como um eco. Lucca podia ser arrogante e frio, mas havia algo por trás daquela casca. Algo que ela ainda não sabia nomear, mas sentia. E aquilo era perigoso.

Vestiu-se com calma e desceu até o restaurante do hotel para o café da manhã. Ao chegar, Lucca já estava sentado à mesa, lendo um jornal e tomando café preto sem açúcar. Como sempre, impecável. Como se tivesse nascido dentro de um terno.

— Bom dia — ela disse, puxando a cadeira à frente dele.

Ele levantou os olhos, a observou por um segundo e respondeu com um aceno de cabeça.

— Dormiu bem?

— Melhor que outras noites. — Ela serviu-se de suco de laranja. — Você sempre acorda tão cedo?

— Há anos. O mundo começa a se mover antes do sol nascer. Eu gosto de sair na frente.

Ela o encarou, curiosa.

— Isso é medo de perder?

— É medo de depender. Quando a gente começa a contar com os outros, já perdeu o controle.

Amanda bebeu o suco, refletindo. Aquela frase dizia muito sobre ele.

De repente, ele tirou um envelope do paletó e o empurrou sobre a mesa em direção a ela.

— O que é isso?

— O contrato.

Ela franziu o cenho e abriu o envelope com cuidado. Era um documento com várias cláusulas. Lucca observava cada movimento dela como se já soubesse todas as reações que viriam.

— Cláusula um — Amanda leu — “a duração mínima da união será de doze meses”. Doze?

— Um ano é o tempo ideal para consolidar a imagem do casal. Três meses pareceria impulsivo. Seis, inseguro. Doze mostra estabilidade.

— Cláusula dois: “A convivência sob o mesmo teto será obrigatória”. Então vou ter que me mudar?

— Já está tudo sendo preparado. Tenho um apartamento reservado. Privacidade garantida. Cada um com seu quarto.

Amanda levantou os olhos.

— Você pensou em tudo, não é?

— Eu planejo. Sempre. É o que faço de melhor.

Ela continuou lendo. As regras eram claras: não poderiam ter relacionamentos com terceiros durante a duração do contrato. Precisavam manter as aparências em público. Participar juntos de eventos, entrevistas, reuniões familiares. E, por fim, ao término do contrato, cada parte teria direito a um valor acordado como compensação.

Amanda virou a última página e parou ao ver a cifra: dois milhões.

— Dois milhões?

— Considerando o que você está abrindo mão, achei justo. Liberdade, rotina, privacidade. Você vai se transformar em uma mulher pública. É o preço da exposição.

Amanda fechou o envelope com calma.

— E se eu me apaixonar por alguém durante esse tempo?

— Você não vai. Porque o amor não nasce num contrato.

— E se você se apaixonar?

Ele deu um leve sorriso.

— Eu sei separar negócios de sentimentos, Amanda. Sempre soube.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Depois se levantou com o envelope na mão.

— Vou pensar.

— Pense rápido. Temos uma viagem amanhã para Angra. Será o primeiro final de semana como casal oficial. E a imprensa já está nos esperando por lá.

Amanda assentiu e saiu do restaurante com passos firmes. No elevador, sozinha, apoiou a cabeça contra a parede espelhada.

Ela precisava decidir. Mas como decidir quando o coração dizia uma coisa e a razão gritava outra?

§

Mais tarde, naquele mesmo dia, Amanda decidiu voltar à sua antiga casa. Não era só por causa das roupas — era por ela. Precisava se lembrar de quem foi antes de tudo desmoronar, antes de ceder pedaços de si em nome de um acordo que parecia engolir sua essência.

O porteiro a reconheceu de imediato, mas havia algo diferente no olhar dele — talvez um reflexo da mulher que ela mesma quase não reconhecia mais. Ele abriu o portão com um sorriso discreto, quase cúmplice, como quem entende que algumas visitas não são só físicas.

Subiu sozinha até o 7º andar. Cada degrau pesava como se carregasse nas costas os dias em que calou sua verdade. Ao destrancar a porta, foi como se destrancasse também um lugar dentro de si que estava trancado há tempo demais.

O cheiro veio primeiro. Baunilha com saudade. Depois, os olhos. O sofá velho com a manta azul torta no encosto, as fotos que pareciam rir e chorar ao mesmo tempo, os livros na estante com marcadores em páginas que ela nunca terminou de ler.

Um aperto seco no peito a fez parar por alguns segundos. Era como visitar o túmulo de uma versão sua que ela não queria deixar morrer. Cada objeto, cada canto do apartamento, era um espelho do que ela já foi — e do que quase esqueceu que merecia ser.

Andou pelo lugar como quem pisa num santuário. A ponta dos dedos roçou a mesa da cozinha, o batente da porta, as almofadas do sofá. Tudo ali ainda sabia seu nome, mesmo quando ela própria duvidava dele.

No quarto, a explosão de lembranças quase a derrubou. Estava tudo intacto. E ali, sobre a cômoda, como um bilhete enviado do passado para salvá-la, estava a carta. A que escreveu para si mesma antes de dizer “sim” ao que agora parecia uma prisão com contrato e verniz.

Pegou o papel com mãos trêmulas. Leu em silêncio, mas cada palavra gritava dentro dela:

“Amanda, se um dia esquecer quem você é, volte aqui. Lembre-se da mulher que cresceu na marra, que venceu cada obstáculo com coragem. Você não precisa de luxo. Precisa de respeito. De paz. De dignidade.”

A voz embargou, os olhos se encheram. Fechou os olhos e sentiu a força daquelas palavras reverberando no peito. Guardou a carta na bolsa como quem guarda uma arma. Ou uma bússola.

E naquele instante entendeu, de um jeito que não permitia mais retrocesso: o contrato não era só sobre dinheiro, status ou aparência. Era sobre não se perder no meio da fantasia. Era sobre tomar de volta as rédeas da própria narrativa.

Se ela ia continuar nesse jogo, que fosse como jogadora — e não como peça. Pelas próprias regras. Pelo próprio nome. Pela mulher que se lembrava de si.

À noite, Amanda voltou à suíte. O ambiente estava mergulhado numa penumbra suave, iluminado apenas pelas luzes da cidade que entravam pelas enormes janelas de vidro.

Lucca estava em pé na varanda, com a silhueta recortada contra o céu noturno, um copo de uísque na mão e o olhar perdido nas luzes de São Paulo. A aura dele era de poder e silêncio — como se nada escapasse ao seu controle.

Ao sentir sua presença, ele se virou devagar, os olhos pousando nela com uma intensidade que queimava.

— Decidiu? — a voz dele veio baixa, arrastada, como se o momento não precisasse de pressa.

Amanda caminhou até ele com firmeza. O salto fazia um som seco no piso de mármore. Entregou o envelope assinado, mas seus olhos estavam ainda mais afiados que o papel.

— Com uma condição.

— Qual? — Lucca perguntou, sem tirar os olhos dela.

— Quero liberdade. Pra tocar meus projetos. Trabalhar, estudar. Voltar a viver por mim. Mesmo dentro desse acordo.

Lucca arqueou uma sobrancelha, surpreso — e, por um segundo, admirado.

— Negociando com o magnata, senhora Mancini?

— É o mínimo. Ou a imagem da sua esposa será a de uma mulher submissa. E isso não combina comigo.

O canto da boca dele se ergueu num sorriso lento, carregado de provocação.

— Gosto da sua ousadia.

Ela não recuou. Nem um passo.

— Ainda não terminei. Mais uma coisa: nada de dormir no mesmo quarto. Nem fingir uma intimidade que não existe.

Lucca deu um gole no uísque, sem desviar o olhar. Depois, caminhou até ela. Cada passo diminuía a distância, e aumentava a tensão. Quando parou, estavam tão próximos que ela pôde sentir o calor que vinha do corpo dele, a presença dele invadindo o ar entre os dois como uma corrente elétrica.

— Respeito seu limite, Amanda — disse com a voz baixa, rouca. — Mas um conselho…

Ele inclinou o rosto levemente, os olhos fixos nos dela, como se lesse tudo que ela tentava esconder.

— Você vai perceber que fingir é fácil. E mais fácil ainda… é se perder na mentira.

Amanda manteve o olhar firme, mas por dentro, uma centelha se acendia com força. Aquele homem não a tocava, mas a presença dele incendiava seus sentidos. Havia algo perigoso naquele jogo. Uma dança silenciosa de poder, desejo e controle.

— Boa noite, Lucca. — Sua voz saiu firme, mas carregada de tensão.

Ela se virou, sentindo os olhos dele cravados em suas costas. Entrou no quarto e fechou a porta com firmeza — não para encerrar o momento, mas para se proteger do que ele começava a provocar dentro dela.

Atrás da madeira, escorou-se contra a parede. O coração batia como se tivesse corrido. Como se tivesse sido tocada — sem jamais ter sido.

A guerra tinha começado.

E o campo de batalha era a própria pele.

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