Por mais que eu estivesse preocupado com Maria Vitória, mesmo sabendo que ela estava sendo representada por advogados competentes, havia um mal-estar maior que me corroía.Maria Clara ainda estava solta.As estradas tinham blitz. A rodoviária, vigilância reforçada.Todos os acessos estavam sendo monitorados.Mas nada. Nenhum sinal dela.Quando fui informado de que Maria Vitória havia alegado legítima defesa, o caso se inverteu completamente.O olhar da Justiça mudou.As atenções também.Ela deixou de ser vista como uma criminosa impulsiva — e passou a ser reconhecida como alguém que sobreviveu.A partir dali, deixei de me preocupar com ela, pelo menos juridicamente.Caroline a preparou com maestria. Ainda mais com o inquérito aberto contra Marcelo pelo ataque brutal à Laura.Ele agora era oficialmente um foragido. Um homem perigoso.E Maria Vitória… uma vítima.Mas os meus males, esses não haviam acabado.Quando revisamos as filmagens do prédio, senti o sangue gelar.Maria Clara apare
Após a prisão de Maria Clara, as coisas finalmente se acalmaram. Ela foi transferida para um presídio quase imediatamente. Ninguém nos explicou o motivo, mas a doutora Caroline me contou, com um olhar mais sério do que o habitual, que Maria Clara havia sido classificada como alguém extremamente perigosa, até mesmo para outros detentos.Eu tentava retomar minha vida: os estudos, o estágio. Minha mãe voltava à sua produção. Tia Lena veio passar o fim de semana conosco, mas eu sabia que não era apenas uma visita. À noite, ela desapareceu, como sempre. E, desta vez, eu não fui atrás.Meu pai estava surpreendentemente centrado naqueles dias. Dividia a direção do hospital com Alexandre, e os dois até contrataram um cirurgião temporário para substituí-lo em alguns plantões. Ele parecia determinado a manter tudo funcionando, como se quisesse provar alguma coisa, talvez a si mesmo.Naquela noite, fui até a área externa da casa e os encontrei ali: meu pai e Alexandre, sentados sob a luz amarela
— Claro que é! E se não for... — Deslizei a mão entre nós, por dentro do roupão. O gesto desfez o nó com uma facilidade quase simbólica — imprudente, diferente, estranho. — Eu quero tudo. Que você seja minha esposa, que tenhamos filhos, netos... bichos, o que quiser. Quero mor...Mavi levou o dedo aos meus lábios, firme.— Não ouse dizer isso. Eu aceito ser sua mulher. Já sou sua mulher. Quero ser mãe dos seus filhos, dos seus netos... mas nunca fale de morrer, Alexandre. Nunca.Assenti, silencioso, a conduzi até o banco de trás. Ela se deitou ali, me olhando como se o mundo fosse só nós dois.— Eu aceito ser sua... em qualquer lugar — sussurrou.Olhei para o corpo dela, magnífico, natural, de um jeito só dela.— Você é incrivelmente perfeita...Ela me puxou pela gola da camisa, urgente.— Me come primeiro, me elogia depois — falou com pressa, com fome.Ri, me aproximando da sua boca.— Você parece mais faminta que eu.— Claro que sim. Você me olha com esses olhos e eu só consigo pens
O relógio digital da sala de reuniões marcava 8h07 quando Maria Vitória empurrou a porta com uma pasta de relatórios sob o braço e um copo de café na outra mão. Os cabelos presos num coque prático, o jaleco branco por cima do vestido azul-marinho. A sala estava cheia — enfermeiros, gestores, dois representantes da ala pública recém-inaugurada.— Bom dia a todos — ela sorriu, sentando-se à cabeceira. — Vamos tentar resolver tudo antes das nove. Tenho uma entrega no colégio da Alana às dez.Todos sorriram. A doutora Xavier era conhecida por ser firme, objetiva e… absolutamente apaixonada pelos filhos. Mas pelo marido? Todos sabiam que ela largaria tudo, sem hesitar, se ele ligasse repentinamente.Enquanto ela revisava gráficos de atendimento e planos de expansão da ala pública, o celular vibrou discretamente sobre a mesa. Uma foto apareceu: Alexandre com os cabelos bagunçados, jaqueta jogada no ombro e um sorrisinho de canto, em frente à universidade.Mensagem dele: "A aula hoje foi um c
De todos os pecados que aprendi a esconder, a gula era o mais inofensivo. Uma indulgência simples, quase inocente, que me permitia escapar, nem que fosse por um breve momento, da realidade sufocante em que vivia. No calor insuportável de um domingo carioca, meu refúgio era um copo generoso de sorvete de morango. Gelado, doce e quase inocente. Quase.Sentada no sofá da sala, com o ventilador batendo em meu rosto, observava o movimento na piscina através da janela entreaberta. Minha mãe de biquíni laranja, rodeada de convidados bronzeados, risadas ocas, corpos molhados e taças de espumante. A típica cena das festas dela. Aquelas festas que sempre me faziam sentir como se fosse uma intrusa no mundo dela. O tipo de vida ao qual nunca consegui pertencer.As risadas alheias me pareciam vazias, como se fossem apenas uma forma de preencher o silêncio desconfortável que sempre reinava entre nós. O copo de sorvete se esvaziava lentamente enquanto eu me perdia em pensamentos, tentando ao menos po
Os dias foram passando, o ambiente em casa se tornava cada vez mais hóstil. Minha mãe sempre ocupada, distraída com suas próprias preocupações, mal percebendo o que acontecia ao seu redor. Eu, por outro lado, tinha as obrigações da faculdade, as provas finais, os estágios práticos chegando, o final do de semestre, mas nada disso parecia ser suficiente para me afastar das visitas de Marcelo.Às vezes, eu mal podia acreditar em como ele conseguia se fazer presente sem ser convidado, aparecendo em todos os cantos da casa, sempre com aquele olhar que não sabia esconder. Ele parecia estar em todo lugar, sempre perto demais, como se quisesse ocupar cada espaço. Cada movimento meu era seguido por ele, e eu não sabia mais como reagir.Era comum que eu estivesse no meu quarto, tentando estudar ou descansar, quando ouvia a porta se abrir com um ranger baixo. Ele nunca batia. Apenas entrava, e o simples som de seus passos parecia encher o ambiente com uma tensão que eu não sabia como cortar.No i
Os meus dias se tornavam cada vez mais cheios.Eu ainda pensava em tudo, a manhã no hospital, a tarde na palestra, noite no seminário.Cheguei em casa tarde da noite, mas foi o silêncio que me atingiu primeiro. Um silêncio que não era paz, era alerta. Um presságio, um aviso sutil de que algo estava prestes a acontecer. Um tipo de vazio denso, que se espalhava pelo corredor como névoa antes da tempestade. Subi os degraus devagar, sentindo o peso do dia se acumular nos ombros. A maleta escorregava da minha mão, o paletó já amarrotado pelas idas e vindas, por vestir e despir ao longo das horas, ou por simplesmente estar ali, à espera.Passava das onze da noite. Eu havia avisado que não viria direto pra casa, depois da palestra, talvez esticasse no hospital. Maria Clara não precisava me esperar, mas o evento acabou cedo, a chuva mudava os planos naquela noite. Nossos dias estavam cheios, corridos. E o que um dia foi promessa de vida mansa, de descanso, se perdia lentamente em trabalhos int
A minha agenda continuava lotada, por mais que a minha cabeça estivesse entre a dor da traição e uma agenda lotada de cirurgias, me ocupar parecia a melhor saída. Evitar uma conversa com Maria Clara, naquele momento, era a única forma de manter alguma sanidade, evitando conflitos que nos machucaria mais, por isso, fui a Capital do Rio de Janeiro, era uma palestra importante. O auditório da universidade federal estava lotado. Era o encerramento de semestre naquela faculdade. Alunos de medicina e enfermagem de todas as fases se amontoavam nos bancos desconfortáveis de plástico, alguns anotando freneticamente, outros apenas fingindo interesse. Eu estava acostumado com aquilo: palestras, congressos, aulas inaugurais. O mesmo ciclo de frases de efeito e gráficos impactantes.Mas naquela noite havia algo diferente no ar. Talvez fosse o cansaço da viagem ou o incômodo de estar de volta ao Rio, onde memórias passadas ainda sussurravam em cada esquina, lembrando-me que o nosso para sempre não