Alexandre Xavier

A minha agenda continuava lotada, por mais que a minha cabeça estivesse entre a dor da traição e uma agenda lotada de cirurgias, me ocupar parecia a melhor saída. Evitar uma conversa com Maria Clara, naquele momento, era a única forma de manter alguma sanidade, evitando conflitos que nos machucaria mais, por isso, fui a Capital do Rio de Janeiro, era uma palestra importante. 

O auditório da universidade federal estava lotado. Era o encerramento de semestre naquela faculdade. Alunos de medicina e enfermagem de todas as fases se amontoavam nos bancos desconfortáveis de plástico, alguns anotando freneticamente, outros apenas fingindo interesse. Eu estava acostumado com aquilo: palestras, congressos, aulas inaugurais. O mesmo ciclo de frases de efeito e gráficos impactantes.

Mas naquela noite havia algo diferente no ar. Talvez fosse o cansaço da viagem ou o incômodo de estar de volta ao Rio, onde memórias passadas ainda sussurravam em cada esquina, lembrando-me que o nosso para sempre não era comigo. Maria Clara havia me traído, e isso doía profundamente.

— …e o ponto mais importante da abordagem cirúrgica moderna — concluí, após uma explanação detalhada — não está apenas na técnica, mas na escuta do paciente. Naquilo que ele não diz. Na história que o corpo revela antes da boca.

Alguns alunos aplaudiram por educação. O professor titular agradeceu minha presença, elogiou minha trajetória. Eu estava pronto para encerrar quando ele se adiantou:  — Teremos agora um momento para perguntas. Se alguém quiser aproveitar a presença do Dr. Alexandre Xavier, levantem as mãos.

Mãos se levantaram. Escolhi duas, respondi com rapidez. Nada que exigisse esforço. Até que vi uma aluna de cabelos castanhos escuros levantar o braço. Com um caderno no colo e a expressão tranquila demais para alguém prestes a interpelar um palestrante convidado.

Algo nela me incomodou.

Não era o rosto. Era um gesto ou jeito de olhar. A forma de cruzar os braços, de erguer o queixo. Um eco de alguém que minha memória ainda resistia em admitir. Um déjà-vu incômodo que se arrastava sob a pele.

— Você, de blusa branca — apontei, achando que seria mais uma pergunta protocolar, embora meu coração acelerasse sem explicação, ela tinha olhos castanhos quase mel. 

Ela se levantou devagar, tinha um ar sereno e, ao mesmo tempo, provocador. Usava uma calça jeans folgada e uma blusa branca sem mangas, alças. Os seios pequenos se destacavam, discretamente. Bonita, como se seu rosto fosse esculpido a pincel fino. Quando pegou o microfone, sua voz soou clara, firme. jovem, mas sem hesitação.

— Doutor Xavier, o senhor mencionou que o corpo revela verdades que muitas vezes a palavra esconde. Gostaria de saber... o que o senhor faz quando é o próprio corpo do médico que mente? Quando os sinais de descontrole vêm dele, e não do paciente?

O silêncio no auditório foi imediato. Era uma pergunta diferente. Incômoda. Pessoal. Quase... íntima.

Meu olhar se fixou nela. Os olhos castanhos com bordas escuras, inquisitivos. Havia algo de familiar ali. Uma lembrança mal enterrada. E, pela forma insistente com que me observava, senti como se estivesse sendo lido por dentro.

Minha boca se abriu, mas precisei de um segundo para encontrar a voz.

— Uhm... — pigarreei. — Uma excelente pergunta. — Sorri um pouco tenso.

Pausa.

— O médico também é humano. E quando o corpo mente, quando o cansaço, o desejo ou o medo tentam interferir... é aí que entra a ética. E a coragem de parar. De... de reconhecer a própria falha.

Ela sorriu. Um canto da boca apenas. Como quem diz: “sei que você entendeu.”

— Obrigada, doutor — disse, entregando o microfone.

Eu me toquei curioso, alarmado: estava mesmo visível o meu estado de desolação?

— Seu nome? — perguntei antes que ela se sentasse.

— Maria Vitória Bocci — disse, com um sorriso educado, me olhando.

O mundo parou por um segundo.

Ela se sentou como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse acabado de lançar uma bomba naquele auditório. Mas eu sabia. O nome, o olhar... Aquela garota parecia me ler instintivamente.

Ou era coisa da minha cabeça?

Saí do palco sob aplausos e uma reverência falsa. Por dentro, algo em mim ruía. E, pela primeira vez em muito tempo, me vi sem resposta, era preciso parar? Descansar? Como eu mesmo respondi.

Fiquei dois dias no Rio de Janeiro em busca de descanso, fugas, entre ligações insistentes de Maria Clara.

— Xande, precisamos conversar — dizia a voz dela no primeiro recado. Eu ignorei por dias, tentando ocupar a mente, tentando evitar brigas. Tentando não ser dominado pela raiva crescente. Evitar que fôssemos além de tudo que já havíamos ido.

Quando finalmente atendi, sua voz invadiu meus tímpanos. Eu não queria mais ser um covarde.

— Não vejo mais saída para nós. Você sabe que traição, para mim, é imperdoável. Eu quero...

— Me deixe explicar! Foi um momento de fraqueza, Xande. Você nunca errou? Nunca...

— Com você, não. Nunca te traí, nunca menti. Te dei o melhor nestes vinte anos de casamento — minha voz saiu embargada, e não era só pelo choro. Era pela dor. Pela raiva.

— Não quero falar com você por telefone, por favor, vamos nos encontrar, vamos nos entender meu amor.

Encerrei a chamada, desliguei o telefone com a mão trêmula e o peito apertado. A raiva era um animal que eu segurava pelo colarinho, sempre tendo controle sobre ela, e desta vez tentando, com todas as forças, não deixá-lo me engolir. Eu precisava respirar. Precisava fugir.

Foi quando decidi me afastar de tudo. Peguei o carro e dirigi sem rumo certo, até que uma placa à beira da estrada chamou minha atenção: Hotel Fazenda São Bartolomeu – 7km.

Sem pensar, entrei à direita.

O lugar era isolado, rodeado por colinas verdes, bangalôs, com um casarão antigo ao centro, varanda de madeira, redes balançando ao vento, cheiro de mato molhado e silêncio. Era o que eu precisava: um tempo longe de tudo. Longe de Maria Clara. Longe da medicina. Longe até de mim.

Fiz o check-in sob o nome completo, mas sem alarde. A recepcionista, uma moça simpática e sem curiosidade excessiva, entregou a chave e disse que o jantar era servido até as nove. Eu apenas acenei com a cabeça, peguei a chave e fui direto para o quarto.

Era simples, rústico. Cama de casal com lençóis de algodão limpos, uma escrivaninha, uma janela aberta com vista para um campo onde cavalos pastavam sob a luz do entardecer. Sentei na beira da cama e fiquei ali por alguns minutos, apenas ouvindo os sons da natureza.

Naquela noite, não dormi logo. Tomei um banho demorado. Depois, sentei na varanda com um copo de vinho tinto barato do restaurante da fazenda e olhei para o céu estrelado. A lembrança da pergunta me veio como um sussurro.

"Quando é o corpo do médico que mente?"

Era isso que eu era agora. Um corpo mentiroso. Um homem despedaçado, fingindo sanidade entre cortes cirúrgicos e palestras lotadas. Me perguntei se ela tinha feito aquela pergunta por intuição ou por malícia. Se era só coincidência.

No segundo dia, andei pela trilha de terra batida até um pequeno riacho escondido entre as pedras. Me sentei, tirei os sapatos e deixei os pés tocarem a água gelada. A natureza parecia rir da minha pretensão de controle. Eu, o cirurgião de mãos firmes, agora vulnerável até na respiração.

Era aliviante não ter telefone tocando, chamadas insistentes, era preciso ir até o centro para que tivesse sinal de telefone, somente internet funcionava, o sinal falhava constantemente, de fato, era um isolamento, sem estar isolado. 

No terceiro dia, pensei em ir embora. Mas o corpo não respondia. Era como se algo ali, naquele isolamento, estivesse me preparando para algo. Como se eu precisasse entender o silêncio antes de voltar a encarar o barulho do mundo.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App

Capítulos relacionados

Último capítulo

Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App