Alexandre Xavier

Os meus dias se tornavam cada vez mais cheios.

Eu ainda pensava em tudo, a manhã no hospital, a tarde na palestra, noite no seminário.

Cheguei em casa tarde da noite, mas foi o silêncio que me atingiu primeiro. Um silêncio que não era paz, era alerta. Um presságio, um aviso sutil de que algo estava prestes a acontecer. Um tipo de vazio denso, que se espalhava pelo corredor como névoa antes da tempestade. Subi os degraus devagar, sentindo o peso do dia se acumular nos ombros. A maleta escorregava da minha mão, o paletó já amarrotado pelas idas e vindas, por vestir e despir ao longo das horas, ou por simplesmente estar ali, à espera.

Passava das onze da noite. Eu havia avisado que não viria direto pra casa, depois da palestra, talvez esticasse no hospital. Maria Clara não precisava me esperar, mas o evento acabou cedo, a chuva mudava os planos naquela noite. Nossos dias estavam cheios, corridos. E o que um dia foi promessa de vida mansa, de descanso, se perdia lentamente em trabalhos intermináveis. 

O andar de cima estava escuro, exceto pela fresta de luz vinda do nosso quarto. A porta entreaberta, hesitei. Me sentia exausto. Coisas simples, rotineiras, já não eram leves. Com os anos, tudo pesa.

— Oh, que delícia! — a voz feminina entre gemidos atravessou a porta, cortando o ar como uma lâmina.

Um suspiro, outro. O som era molhado, abafado, íntimo. No primeiro instante, estranhei. No segundo, duvidei.

— Quica, isso, gostosa, vai, vai, isso... Ahhhh! — Uma voz masculina entre sussurros e grunhidos que nunca tinha ouvido antes me atingiram. Ali, naquele corredor familiar a minha pulsação saltou. Um calor estranho subiu pelo meu rosto. A mão apertou a maçaneta. E, sem pensar, empurrei a porta já aberta.

A cena explodiu diante de mim.

Corpos se moviam na minha cama, em completa escuridão. A Minha esposa montada sobre outro homem. Os cabelos castanhos desgrenhados, colados à testa suada. As costas nuas, desenhando curvas que antes eram minhas. O lençol lilas, escorregava, revelando o que jamais imaginei ver: os seios dela, arfando, à mostra; os lábios entreabertos num êxtase que não me pertencia.

Eles se moviam juntos, embalados no ritmo da traição. Até que o som da porta batendo interrompeu tudo, enquanto velando tudo aquilo, engoli em seco a dor, o peso da traição, as minhas mãos tremiam, meu corpo suava, apesar da chuva fina que caia lá fora.

Ela virou o rosto, os olhos dela encontraram os meus, congelaram. O homem de pele negra, mais jovem, talvez uns dez anos a menos que eu, musculos saltitantes, cabelos crespos, engasgou de susto. A empurrou para lado, e em seguida sentou na cama, tentou pegar a calça do chão, mas a nudez deles já estava cravada na minha memória.

— Maria Clara? — A minha voz saiu rouca de raiva, embargada.

Minha voz saiu baixa, áspera, como se rasgasse minha garganta. O lençol subiu com pressa, mas já era tarde. O corpo dela, mesmo coberto, gritava luxúria. A pele avermelhada. Agora de quatro na cama, tentando se recompor. A culpa estampada no rosto como se tivesse sido esculpida a fogo.

— Xande... eu... — Ela tentou dizer, quando não havia desculpa. Nenhuma palavra cabia naquele espaço.

Eu olhava para ela e não conseguia reconhecê-la. A mulher com quem dividi minha vida, minha cama, meus sonhos… agora exposta, entregue a outro, no lugar que era meu.

— Na nossa cama? — Tudo que consegui dizer. 

A pergunta escapou antes que eu pudesse contê-la. Não era somente raiva. Era choque. Incredulidade.

O homem abaixava a cabeça, tentando se vestir às pressas. O cheiro no quarto era outro. Umidade, suor, perfume feminino misturado com colônia. Uma mistura agridoce e vulgar.

— Você nunca está aqui! — ela explodiu, os olhos marejando. — Nunca! Quando está, é só hospital, plantão, cirurgia, tese, congresso, artigo! Você me deixou sozinha há anos, Alexandre!

Ela disse meu nome como se fosse uma acusação.

— Isso justifica... isso? — gesticulei, sem saber onde fixar o olhar. No lençois caídos? Nos dedos dela ainda marcados pelo prazer? — Eu achei que estávamos juntos nisso. Que sabíamos os custos. Você sabia com quem casou.

Ela riu. Um riso curto. Ácido.

— Eu casei com um homem apaixonado pelo jaleco. Que salva o mundo inteiro, mas me deixava morrendo aos poucos. Você não me tocava mais, Xande. Eu me sentia invisível.

Isso não era verdade, eu tinha tentando na noite anterior e ela disse que estava com dor de cabeça. — E resolveu se mostrar pra outro? Na nossa cama?

Minha voz falhou. Então veio o enjoo. Uma náusea surda. Nojo. Pena. Frustração.

— Isso muda tudo, Clara. — Era claro que mudava, todas as suas recusas, os seus horários excessivos de trabalho.

— Já estava mudando há muito tempo. Você só não percebeu. — Gritou, enquanto a ficha caia.

O silêncio caiu de novo. Mas, desta vez, não era denso. Era definitivo.

Peguei meu paletó. Não olhei para trás. O som dos passos dela, o murmúrio do outro homem, os suspiros abafados, os lençóis... tudo virou ruído distante. Eles discutiam entre si, quando parti.

Desci como se os degraus pertencessem a outro mundo. Um universo que não era mais meu.

A casa... a casa que construí... agora era apenas o lugar onde fui traído.

Do lado de fora,a chuva caía, o ar estava úmido. Respirei como se buscasse um pedaço de mim mesmo.

                                                                 ****

O bar estava quase vazio, só o som da TV ao fundo e o tilintar esporádico de copos no balcão. Aquele lugar esquecido pela cidade era o refúgio silencioso de Heitor. Sempre que a vida ameaçava ruir, ele me trazia ali. Hoje, era a minha vez de desabar.

O gelo no copo girava devagar. Como se aquele uísque pudesse me anestesiar. Como se tivesse o poder de apagar a imagem que ainda queimava nas minhas retinas. Clara. Outro homem. O lençol que nunca mais será só nosso.

— Clara está com outro. E não é de hoje — falei sem rodeios, sem filtro. A voz saiu baixa, carregada de vergonha. — Pela forma como os corpos se encaixavam... aquilo não era novo. Era íntimo. Familiar.

Heitor abaixou os olhos. O silêncio dele era mais respeitoso do que qualquer frase de consolo.

— Desculpa, cara. Eu nem sei o que te dizer.

— Engraçado... — dei um leve riso sem humor. — Quando a gente tá dentro da tempestade, não percebe o quanto o barco já estava fazendo água.

Ele assentiu. Como quem já soubesse, mas se recusava a ser o mensageiro.

— E você ainda ama ela?

A pergunta ficou no ar, reverberando entre a fumaça da cozinha e o cheiro agridoce do álcool barato. Amor. Parecia ser palavra difícil agora.

— Eu amava o que a gente foi um dia — respondi, encarando o âmbar do copo. — O resto virou encenação. Ela tem razão. Eu me escondi atrás da medicina, me enterrei em plantões, congressos, aulas... — Dei um gole. — Mas não foi por ego. Eu achava que estava protegendo a gente. Fazendo tudo valer a pena, um aposentadoria digna, uma vida confortável, como sempre planejamos.

— Às vezes, o legado cobra caro — disse ele, meio rindo, meio triste.

— Cobra. E não é parcelado.

Mais um silêncio ficou entre nós.

Então Heitor largou o copo sobre a mesa, me olhou de lado, como quem pondera se deve ou não dizer algo.

— A minha cobrança também chegou, Alex. A Laura me ligou. — Soltou como se fosse um peso.

— Laura que Laura? — perguntei, mais por impulso do que por interesse. A cena de Clara me traindo ainda corroía por dentro.

— A mãe da minha filha, Maria Vitória. — Disse me olhando seriamente, após um longo suspiro.

Maria Vitória. O nome ressoou estranho. Como algo que incomoda e atrai ao mesmo tempo. Talvez fosse o contraste entre “Maria” — contido — e “Vitória” — explosivo. Mas era só um nome. Sendo filha dele, eu apostei no segundo. 

— Me ligou pra reclamar da menina. Disse que não tá dando conta, quer que eu vá buscá-la. — Desabafou. 

— Quantos anos ela tem?

Ele deu de ombros, bebendo mais um gole.

— Não faço a menor ideia, talvez cinco, seis, não me lembro ao certo. 

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