Capítulo 14 LunaMarcelo queria que eu duvidasse de tudo. Inclusive de Dante. Que eu visse tudo ruir, como se o mundo que construímos juntos fosse apenas mais um castelo de areia prestes a desmoronar. Talvez fosse. Talvez sempre tivesse sido. E, mesmo assim, naquela noite, naquele silêncio sufocante que envolvia cada parede do apartamento, era dentro de mim que tudo começava a ruir.Dante estava na cozinha, preparando café. Os movimentos dele eram precisos, quase metódicos. Como se fazer algo tão banal fosse uma forma de manter o controle, de não desmoronar junto comigo. Eu o observava do encosto do sofá, meus pés descalços encostando no chão frio, e uma taça de vinho esquecida na mão esquerda. A bebida já não tinha gosto, o mundo já não tinha cor. Só havia o som dos passos dele, e o som da minha respiração — curta, irregular.Ele voltou com duas xícaras, deixando uma na mesa e estendendo a outra para mim. Nossos dedos se tocaram por um segundo. Um mísero segundo. Mas o suficiente pa
Capítulo 15LunaO carro ainda estava lá quando voltei para a cama. Mas eu me forcei a deitar, mesmo que o sono não viesse. Fiquei encarando o teto por tempo demais, ouvindo os próprios pensamentos ecoarem. Eles vinham em ondas, como marés imprevisíveis: culpa, desejo, desconfiança. Cada emoção carregando um rosto. O de Marcelo. O de Dante. E o meu — refletido num espelho que já não reconhecia.O beijo ainda queimava nos meus lábios. A memória dele era um peso confortável e perigoso, como um cobertor quente em noite de tempestade. O problema é que eu sabia que não podia me cobrir por completo. Sabia que, em algum momento, o cobertor viraria armadilha.E Dante… Ele tinha sido paciente. Gentil. Não forçou. Disse que esperaria.Mas por quanto tempo?Pela manhã, ele não mencionou nada. Tomamos café juntos em silêncio, como se o que tivesse acontecido na noite anterior tivesse sido apenas um sonho comum. Mas havia algo no olhar dele — uma ternura contida, quase cautelosa — que me dizia que
Capítulo 16MarceloO silêncio do esconderijo era denso como a fumaça do meu charuto cubano, que queimava devagar entre meus dedos. O mundo lá fora seguia sem mim — pelo menos era isso que todos acreditavam. A notícia da minha morte havia circulado pelos becos, pelas bocas sujas que juravam lealdade a quem pagasse mais. Ótimo. Que me enterrassem em paz. O morto agora planejava em silêncio.Mas Luna estava viva.E não apenas viva. Estava com ele.Dante Moretti.O nome tinha gosto de sangue na minha língua. Sempre teve. Um cão raivoso criado no caos, que decidiu desafiar a ordem — a minha ordem. E agora ele tinha ela. A peça que eu formei, moldei, esculpi como uma obra-prima silenciosa. Minha pupila. Minha sombra.E agora, meu erro.— Ela sumiu dos radares — Braga disse ao entrar, a voz baixa, arrastada. — O hacker que contratamos não conseguiu rastrear nem o último IP. Eles sabem se esconder.— Ela aprendeu com o melhor — respondi, sem conseguir disfarçar o veneno na minha própria voz.
Capítulo 17LunaO som da chaleira apitando foi o que me tirou dos pensamentos. Eu estava sentada na cozinha, as mãos envoltas na caneca de porcelana que Chiara tinha preparado minutos antes, e mesmo com o calor do chá contra a pele, ainda sentia um frio estranho por dentro. A sensação de estar à beira de algo. De cair ou de escolher ficar.Chiara desligou o fogo e virou-se para mim com aquele ar calmo que parecia ser tão natural quanto sua postura sempre ereta. Havia algo reconfortante nela, mesmo quando tudo ao nosso redor parecia ameaçar desmoronar.— Você não dormiu bem — disse ela, mais uma constatação do que uma pergunta.Balancei a cabeça em silêncio, soltando o ar devagar.— Foi o beijo? — ela arriscou, com um leve levantar de sobrancelha.Revirei os olhos, mas não consegui esconder o calor subindo pelas minhas bochechas. Chiara era sutil... mas não demais.— Foi tudo. O beijo. A sabotagem. A sensação de que Marcelo está mais perto do que a gente pensa. E... — hesitei — a sens
Capítulo 18LunaChiara segurava uma pasta com os nomes de possíveis aliados para uma reunião marcada naquela noite. Eu, ainda com o estômago apertado, sentia que algo estava prestes a mudar.Dante estava no salão principal da casa, já reunido com dois de seus homens de confiança e mais três aliados recém-chegados da fronteira com o Paraguai. O clima era tenso, mas funcional. Cada um sabia o que estava em jogo. Rivas havia voltado à ativa, não de forma oficial, mas pelas sombras. Os rumores de sua “ressurreição” já haviam corroído a confiança de vários empresários e capangas.— Preciso que fiquem atentos ao sul. As cargas que saem de lá estão sendo interceptadas — Dante dizia, de pé, com os olhos fixos em um dos mapas sobre a mesa. — Se Marcelo tiver mesmo reativado os contatos no litoral, vamos perder uma rota inteira.Sentei ao lado de Chiara, mais como ouvinte do que participante. Eu não era estrategista, não era chefe, não era soldado. Mas estava ali. E só isso já dizia muito.A c
Capítulo 19LunaAcordei com o corpo dolorido e o som abafado de vozes na sala ao lado. Ainda havia cheiro de pólvora no ar, e meu coração demorou a aceitar que eu estava viva, inteira, respirando. As imagens da noite anterior vinham em flashes cortantes: os gritos, os tiros, o sangue e Chiara, caída no chão, os olhos arregalados antes de eu arrastá-la para longe da linha de fogo. Eu tinha reagido. Tinha salvado alguém. E agora... não havia mais como fingir que eu era só uma espectadora dessa guerra.Vesti uma camiseta larga e prendi o cabelo num coque desleixado antes de sair do quarto. A casa parecia uma fortaleza silenciosa. As janelas reforçadas, os guardas em alerta, e no meio daquele caos contido, ele estava lá.Dante.De costas, falando com um dos homens sobre reforçar o perímetro. Usava uma camisa escura com as mangas dobradas, o cabelo ainda molhado do banho. Quando me viu, dispensou o outro com um simples gesto.— Dormiu? — perguntou, a voz mais baixa do que eu esperava.— T
Capítulo 20LunaO silêncio no salão parecia algo sagrado.Não era o tipo de silêncio confortável, nem tampouco aquele tenso que antecede uma briga. Era um silêncio de perda. De quem recebeu uma notícia que não queria ouvir, mas não podia negar.Chiara foi a primeira a se afastar da sala de reuniões. Eu a segui com o olhar, vendo as mãos trêmulas dela segurando o celular como se ainda esperasse que a mensagem desaparecesse, que fosse um engano. Mas não era.A mensagem tinha sido clara."Ela foi encontrada. Morta. No rio. Sinais de tortura."Júlia. A informante de Dante infiltrada entre os homens de Rivas havia mais de dois anos. Uma mulher forte, discreta, com uma coragem silenciosa que eu só agora compreendia. E agora… morta. Um corpo jogado como lixo, como aviso.— Ele a expôs de propósito — Dante disse, a voz baixa, grave, com os olhos fixos em um ponto invisível à frente. — Fez com que ela fosse descoberta. Sabia que estávamos perto demais de algo. Precisava cortar a linha.— Você
Capítulo 21LunaA madrugada arrastava seus minutos como se o tempo tivesse perdido a pressa. Eu não conseguia dormir. Nem queria. A imagem de Júlia, ainda que eu nunca a tivesse conhecido direito, queimava sob as pálpebras. Era como se cada pedaço daquela tragédia tivesse se entranhado em mim como um lembrete cruel de que qualquer um podia ser o próximo.Andei pelo corredor escuro da casa. Todos dormiam, ou fingiam dormir. Chiara me disse antes de se recolher que a dor às vezes descansava melhor no silêncio. Eu só não sabia mais descansar.Passei em frente à porta do escritório de Dante.Trancada.Era claro. A mente dele era um cofre. E o mundo ao redor, uma ameaça.Mas naquela noite, algo me puxava. Uma inquietação. Um sentimento estranho de que eu precisava ver além da máscara.Voltei até a cozinha. Peguei uma das cópias da chave mestra, que Chiara guardava para emergências. E aquela era uma.Emergência do coração.O clique da fechadura foi quase inaudível. Entrei devagar. Nenhuma