Capítulo 7

A neve havia recuado o suficiente para permitir o retorno ao canteiro de obras. As laterais estavam limpas, mas os operários ainda avançavam com cuidado, sapatos afundando na mistura de gelo e terra batida.

Madeleine chegou cedo, o sol ainda baixo, tingindo o céu de um laranja esbranquiçado. No alto das estruturas metálicas, homens se moviam como sombras lentas. Ela subiu para a plataforma improvisada onde os painéis solares seriam testados.

Clara já estava lá, de luvas e prancheta na mão.

— Bom dia, Foster. Dormiu?

— O suficiente para não me tornar um risco à engenharia norueguesa — respondeu, ajustando o gorro.

Clara riu.

— Ótimo. Vai precisar da cabeça no lugar hoje. O diretor da cooperativa hoteleira vem visitar a obra.

— O quê? Por quê?

— Porque ele desconfia do uso de madeira termo tratada. Quer ver onde está sendo aplicada.

Madeleine franziu o cenho.

— Isso estava no relatório técnico.

— Eu sei. Mas ele é do tipo que precisa ver com os próprios olhos. E, segundo rumores, não gosta de estrangeiros mexendo com as coisas dele.

Madeleine respirou fundo. Havia esquecido por um instante que, ali, ainda era uma forasteira.

Quando o homem chegou, o frio pareceu aumentar. Vestia um sobretudo escuro, cachecol perfeitamente dobrado e olhos miúdos que passavam da estrutura às pessoas como quem procurava algo para duvidar.

— Madeleine Foster? — perguntou em inglês carregado, estendendo a mão sem sorrir.

— Sim. Prazer.

— Hans Iversen. Diretor do grupo que financia o projeto. Só quero garantir que não estão desperdiçando recursos com soluções… como posso dizer… poéticas.

Madeleine conteve o impulso de responder com ironia.

— Sustentáveis — disse, firme. — A madeira termo tratada tem durabilidade superior em climas extremos. Menos manutenção, mais eficiência. E, ao contrário do concreto, não adoece o terreno.

Iversen a observou por um segundo a mais do que seria confortável.

— Isso está no papel. Quero ver com os olhos.

Ela o levou até as áreas em que as estruturas já estavam sendo posicionadas. Explicou detalhes técnicos com calma, respondendo às perguntas sem titubear. Clara a observava de longe, com um meio sorriso contido.

— E isso? — perguntou Iversen, apontando para um conjunto de placas retorcidas, ainda empilhadas.

Madeleine respondeu, e antes que ele interrompesse novamente, acrescentou:

— Se quiser, posso te mostrar os modelos de simulação térmica que fizemos antes de escolher esse tipo de isolamento. São arquivos simples, mas visualmente convincentes.

Hans Iversen ergueu uma sobrancelha. Depois assentiu.

— Mostre. Depois do almoço.

E foi embora sem agradecer.

— Bom desempenho — disse Clara, enquanto desciam da estrutura. — Ele não é exatamente fã de argumentos técnicos, mas você o segurou.

— Ótimo. Se ele tentar me demitir, pelo menos vai saber que sou útil.

Clara soltou um riso curto.

— Sabe qual o problema dele? Ele nunca teve que reconstruir nada. Ele administra. Mas você… você sabe o que é ter que juntar os pedaços.

Madeleine engoliu seco. As palavras bateram mais fundo do que deveriam.

— Isso torna alguém melhor arquiteto?

— Torna alguém mais humano.

Na hora do almoço, os trabalhadores se espalharam pelos bancos improvisados no galpão lateral. Madeleine caminhava distraída, ainda repassando as simulações no tablet, quando ouviu vozes conhecidas.

Erik estava sentado ao lado de Anders, com uma marmita equilibrada nos joelhos.

— …e então eu disse que não entrava naquele barco de novo enquanto ele não jogasse fora o peixe. Juro, tava ali há tanto tempo que já parecia parte da tripulação — contava Erik, o sotaque ainda mais carregado com as risadas.

Anders soltou um riso baixo, mas genuíno.

Madeleine hesitou. Ia passar direto, mas Erik a viu.

— Olha só quem voltou a trabalhar. A inglesa dos olhos tristes.

Ela ergueu a sobrancelha.

— E você é sempre tão sutil ou só nos dias ímpares?

Erik bateu a mão no banco ao lado.

— Senta aqui. Prometo que só vou incomodar até a sobremesa.

Ela olhou para Anders, que não se opôs, nem incentivou. Apenas continuou comendo, como se sua presença ali não alterasse nada.

Ela sentou.

— Hans Iversen está aí. Questionando a madeira e a minha existência.

— Esse homem tem menos calor humano que um fiorde congelado — disse Erik. — Uma vez me contratou pra levar mantimentos até a cabana dele e me pagou com uma garrafa de licor artesanal que parecia diesel.

— Melhor do que não pagar — murmurou Anders.

Madeleine riu.

— Ele vai ver os modelos depois do almoço. Não sei se vai se convencer, mas vai ter que me ouvir.

Erik ergueu a garrafa térmica.

— À Madeleine Foster. Que deixa noruegueses caretas ouvindo explicações sobre madeira.

Anders, surpreendentemente, completou:

— E ainda faz sentido.

Madeleine olhou pra ele. A frase tinha sido simples, mas havia nela algo que soava como apoio.

Erik se levantou depois de alguns minutos, dizendo que ia ver se a sobremesa do refeitório ainda não havia se suicidado de vergonha.

Ela e Anders ficaram sozinhos por alguns segundos.

— Você trabalha com ele há muito tempo? — perguntou ela.

— Desde antes do Emil nascer. Mas ele foi meu amigo muito antes disso.

— Parece o tipo de pessoa que fala muito.

— Ele fala porque carrega gente demais por dentro. Tem que tirar de algum jeito.

Ela assentiu.

— Você não?

Anders desviou o olhar para a janela. Os flocos voltavam a cair.

— Às vezes o silêncio explica mais.

Madeleine não respondeu. Mas entendeu. E, de certo modo, respeitou.

Horas depois, Hans Iversen deixou o canteiro com cara de quem ainda duvidava de tudo — mas sem argumentos suficientes para interromper o andamento da obra.

Clara apareceu na porta do galpão, onde Madeleine revisava os esboços com um dos engenheiros.

— Ele aprovou. Formalmente.

Madeleine ergueu os olhos, surpresa.

— Mesmo não parecendo?

— Mesmo não parecendo.

E eu acho que você deixou uma impressão. Não sei se ele gostou…

Mas ele respeitou.

Madeleine fechou o tablet e sentiu algo raro: orgulho.

Não porque vencera uma disputa. Mas porque, pela primeira vez em muito tempo, não se sentia invisível.

Ao sair, a neve engrossava. O vento apertava contra os olhos. Anders estava à frente, ajeitando uma lona sobre a caminhonete. Emil não estava por perto — provavelmente na escola ou com Erik.

Madeleine se aproximou devagar.

— Obrigada por hoje — disse, sem saber bem por quê.

Anders puxou a lona com mais força. Depois olhou pra ela.

— Eu não fiz nada.

— Às vezes, só não atrapalhar já é muito.

Ele arqueou a sobrancelha, como se aquele fosse o mais próximo que poderiam chegar de um elogio mútuo.

— Vai voltar andando?

— Quero sentir o frio. Me ajuda a lembrar que estou viva.

Anders fez que sim com a cabeça, jogou a lona sobre o último canto e entrou no carro.

Ela ficou ali por alguns segundos. Depois caminhou devagar pela estrada coberta de branco.

Não havia música. Não havia pressa.

Só ela.

E um pedaço do mundo que não exigia que fosse mais do que era.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP