Capítulo 6

A tempestade da noite anterior deixara rastros pela manhã. A neve formava uma camada densa e fofa que escondia as imperfeições da terra, como se o mundo tivesse amanhecido maquiado de silêncio.

Madeleine calçou as botas com alguma dificuldade. A sola grossa e rígida fazia os passos parecerem pesados demais, mas ela se acostumara. Era o preço por permanecer de pé.

Clara avisara que o canteiro teria trabalho reduzido até que limpassem os acessos. Madeleine viu nisso uma brecha — um dia sem reuniões, sem pranchetas, sem precisar fingir que tudo estava sob controle.

Ela caminhou pela vila. As ruas pareciam feitas de algodão. Algumas janelas estavam acesas, revelando silhuetas de moradores começando o dia: uma senhora varrendo degraus, um homem empurrando um carrinho de bebê com a cabeça baixa, dois adolescentes correndo com mochilas às costas.

Seguiu sem rumo. Sentia-se leve, mas não exatamente feliz. Era como se a ausência de obrigações tornasse ainda mais visível o vazio que carregava.

Beatrice.

Sempre Beatrice.

Parou diante de uma banca improvisada perto da marina. Uma mulher ruiva vendia pães e queijos locais, cobertos com panos bordados. Ao lado, uma caixa com bilhetes manuscritos: “leia um pensamento, leve um sabor”.

— Pode escolher um — disse a mulher, sorrindo com os olhos.

Madeleine estendeu a mão e puxou um papel aleatório.

“A saudade é a prova de que algo valeu a pena.”

— Anônimo

Ela leu e releu. Depois, escolheu dois pães escuros, agradeceu e seguiu o caminho sem olhar pra trás.

No chalé, preparou chá e se sentou à mesa com o pão e o bilhete ao lado. A lareira estalava, lenta. Pegou o celular — sem intenção real, apenas impulso — e viu uma ligação perdida.

“Mãe”

Doze minutos atrás.

Madeleine congelou.

Fazia meses. Desde o processo judicial, desde a acusação não dita, desde o silêncio que se estabelecera como ponte quebrada entre elas.

Ela hesitou. Depois ligou de volta.

Do outro lado da linha, demorou alguns segundos até a voz familiar atender.

— Madeleine?

— Oi, mãe.

Silêncio.

— Eu vi o e-mail que você mandou pro advogado. Sobre a Beatrice.

Ela fechou os olhos.

— Foi só uma atualização. Achei que ele deveria saber.

— Achei que… talvez você quisesse que eu soubesse também.

Madeleine respirou fundo. As palavras pareciam afiadas por dentro.

— Eu nunca quis te afastar.

— Eu sei. Mas você me empurrou.

Outro silêncio.

A voz da mãe suavizou.

— Você tá bem aí?

— Estou. Trabalhando. Tentando...

— Sobrevivendo?

Madeleine sorriu com tristeza.

— Isso.

— E ela? — a mãe perguntou. — A Beatrice?

Madeleine hesitou. As imagens vinham em flashes: os cachos, os olhos grandes, o jeito de chamar “mamãe” com a boca cheia de sono.

— Ela tá com o pai. Estável. Segura. Melhor do que estaria comigo naquele estado.

A mãe não respondeu de imediato. Quando o fez, foi com um sussurro:

— Eu também não soube ser mãe às vezes.

A confissão ficou entre elas como um cobertor fino demais, mas ainda assim quente.

Antes de desligarem, a mãe disse:

— Se você me deixar… eu gostaria de ir aí. Te visitar.

Não agora. Mas um dia.

Quando você achar que pode me ver de novo.

Madeleine não respondeu. Mas não negou.

Na tarde daquele mesmo dia, decidiu visitar o pequeno ateliê improvisado perto do fiorde — um espaço coletivo usado por artesãos e artistas locais, que Clara mencionara certa vez.

O lugar tinha cheiro de madeira e tinta a óleo. Havia telas, esculturas, moldes de cerâmica. Uma moça jovem colava conchas em um painel. Um senhor idoso entalhava figuras em ossos de baleia.

Madeleine perguntou se podia ficar um pouco. Eles assentiram com naturalidade. Ali, ninguém parecia pedir justificativas.

Sentou-se à mesa mais próxima da janela e abriu seu estojo. As tintas secas ganharam cor com algumas gotas de água quente. Ela começou devagar: círculos, linhas, o contorno de uma casa sobre o gelo.

Depois, uma ponte.

E um barco.

Não era por Emil. Nem por Anders. Era por ela.

Pela mulher que ainda existia sob as camadas de culpa, medo e pausa.

Foi então que ouviu alguém à porta. Um homem entrou, sacudindo a neve dos ombros.

— Boa tarde. Erik Lund — disse com sotaque forte, mas sorriso fácil. — Alguém viu o Emil por aqui?

Madeleine levantou o olhar. Erik era robusto, cabelo claro desbotado pelo sal e vento, e uma cicatriz pequena cruzava sua sobrancelha esquerda. Tinha as mãos grandes de quem passou a vida segurando cordas, redes e decisões difíceis.

— Ele não está aqui — disse a moça das conchas. — Mas passou pela marina hoje cedo.

Erik agradeceu. Ao sair, lançou um olhar curioso a Madeleine.

— Você é a inglesa?

Ela assentiu, meio sem graça.

— Sou amigo do Anders — disse ele, como se isso explicasse tudo. — Se precisar de alguma coisa, me procure. Sou mais acessível que ele, diga-se de passagem.

Madeleine sorriu.

— Vou lembrar disso.

Ao cair da noite, ela caminhou devagar pela estrada congelada. As luzes do chalé surgiram à frente como um farol tímido. Ao entrar, tudo parecia menor do que lembrava — ou talvez ela estivesse começando a ocupar mais espaço dentro de si.

Na mesa, ainda estava o bilhete da manhã.

“A saudade é a prova de que algo valeu a pena.”

Madeleine releu, pegou o pincel e escreveu no verso:

E o amor é o que nos move, mesmo quando estamos parados.

Colocou-o dentro do livro da baleia.

E, antes de dormir, acendeu a lareira.

Não porque sentia frio,

mas porque era bom ver o fogo vivo.

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