O telefone da sala começou a tocar às seis da manhã. Clara acordou sobressaltada, sem entender o que acontecia por alguns segundos, até perceber o som insistente vindo do andar de baixo. Pulou da cama e desceu as escadas correndo, ainda tonta de sono.
— Alô! — atendeu com a voz rouca.
Do outro lado da linha, uma risada zombeteira ecoou, fazendo-a franzir o cenho.
— Acordei a senhora doutora? — A voz masculina soou carregada de sarcasmo. — Se quiser continuar trabalhando nesta cidade, vai ter que pular da cama mais cedo.
Ela abriu a boca para responder, mas ele continuou sem dar espaço:
— Doutora Clara, aqui é Noah Walker. Um dos meus cavalos amanheceu mancando. Pode vir dar uma olhada?
Ela travou por um segundo, surpresa pela grosseria.
— Claro... — disse, engolindo a irritação. — Por favor, me informe o endereço.
— Não precisa. — Ele retrucou, com evidente impaciência. — Eu sou o dono da Fazenda Walker. A maior da região.
E desligou sem nem ao menos se despedir.
Clara ficou parada, atônita, ainda segurando o telefone no ar. Com um suspiro indignado, colocou o aparelho no gancho, caminhou até a janela e, olhando o amanhecer dourado do Texas, murmurou:
— Claro que é você...
Quase uma hora depois, a caminhonete de Clara deslizava pela estrada de chão batido em direção ao Rancho Walker. A estrada era tão lisa que parecia asfaltada. No banco do passageiro, Katiany dormia profundamente, a cabeça encostada no vidro, os fones ainda nos ouvidos.
O céu azul parecia infinito, e o calor do Texas ondulava no horizonte. Clara dirigia com suavidade, mas o gosto amargo da irritação ainda persistia na boca. Que tipo de homem desligava o telefone daquela maneira? Só um selvagem grosseiro, desses que acham que a única conversa possível é com cavalos.
Logo, uma placa de madeira com letras brancas apareceu à frente: Fazenda Walker. Clara respirou fundo, admirada com a visão que se abria diante dela. A cerca branca perfeitamente pintada cercava campos verdes ondulantes, onde cavalos reluzentes pastavam sob a luz do sol. Um pomar florido ladeava a entrada, e empregados vestidos de jeans e chapéus de palha cuidavam dos animais com eficiência.
"Claro que o faz-tudo é dono da maior fazenda da região." Arrogância em forma de botas.
Clara passou pela porteira branca e seguiu pela estrada de brita ao avistar a estrebaria mais aos fundos. O motor da caminhonete gemeu baixo antes de silenciar quando ela desligou o carro. Clara permaneceu alguns segundos sentada, apertando o volante com mais força do que gostaria. Lá fora, o calor do Texas parecia vibrar no ar, ondulando o horizonte como uma miragem.
Ela respirou fundo e saiu, batendo a porta com delicadeza para não acordar a filha. O chão de terra batida rangeu sob seus tênis, e o cheiro de terra molhada misturado a couro quente e feno encheu suas narinas. No cercado próximo, cavalos pastavam em silêncio, indiferentes à tensão que parecia pairar no ar.
O estábulo à frente — robusto, de madeira envelhecida — parecia observá-la com olhos próprios, como um guardião silencioso daquele mundo estranho e fechado.
Um redemoinho de poeira passou por ela, como se anunciasse que Clara não pertencia àquele lugar. Não ainda.
E então, ela o viu.
Noah Walker estava encostado no estábulo, braços cruzados, expressão dura como pedra. O chapéu sombreava seus olhos, mas Clara sentiu o peso do olhar dele sobre si — crítico, desconfiado, quase desafiador. Era o tipo de homem que não pedia ajuda facilmente... e que claramente odiava precisar dela agora.
Ela ergueu o queixo num reflexo, endireitando as costas. Não ia se deixar intimidar. Não hoje.
Noah descruzou os braços lentamente, caminhando em sua direção com passos firmes, enquanto o cavalo castanho inquieto batia os cascos no chão, como se captasse a tensão entre eles.
— Olha só, a doutora pontual — disse ele, a voz carregada de sarcasmo.
Clara forçou um sorriso frio, pegando a maleta no banco de trás.
— Olha só, o cliente rabugento. — rebateu sem hesitar. — Onde está o paciente?
O embate era inevitável, e ambos sabiam disso. O Texas era quente. Mas ali, entre eles, o calor era de outro tipo.
Ele a levou até o cavalo.
— O que aconteceu com ele?
— Começou a mancar ontem — ele disse, a voz baixa e tensa. — Nem deixou o menino montar. Deve ter escorregado depois da tempestade.
Foi então que ela percebeu um garoto, franzino, um ou dois anos mais velho que sua filha, encostado em outra baia mais próxima, olhando em direção ao carro com curiosidade. Clara acompanhou o olhar dele e notou que ele olhava Katiany ainda dormindo dentro da caminhonete.
— Ah, claro — respondeu Clara, sem olhar para ele, passando as mãos firmes pela perna do animal. — Porque é natural deixar um cavalo correr à vontade em solo molhado.
O silêncio que se seguiu foi quase palpável.
Ela ergueu o olhar, encontrando o dele acima do casco do cavalo.
A tensão entre eles vibrou no ar quente, pesada como uma promessa não dita.— Está me chamando de irresponsável, doutora? — A voz dele era fria, mas seus olhos pareciam faiscar.
— Se a carapuça serviu...
Noah deu um passo à frente, e por um breve instante, estavam próximos o suficiente para que Clara sentisse o cheiro de couro e suor fresco que vinha dele — masculino, forte, irritantemente atraente.
Ela se agachou ao lado do cavalo, concentrada em examinar a pata inchada. Sentia a respiração quente do animal e o calor do sol batendo forte sobre si, mas também... algo mais. A presença dele, o barulho áspero de Noah ajustando o chapéu — um gesto de impaciência mal contida.
Quando estendeu a mão para pressionar o tendão, Noah se abaixou ao mesmo tempo, tentando segurar a cabeça do cavalo para que ele ficasse quieto.
O movimento brusco fez seus ombros se chocarem.Foi um toque rápido. Um toque nada planejado. Mas suficiente. O calor que subiu pela pele de Clara não teve nada a ver com o sol do Texas. Ela recuou instintivamente, endireitando as costas, mas Noah continuou ali, perto demais, a sombra dele misturando-se à dela na terra batida do estábulo.
Noah sorriu de lado — não aquele sorriso fácil, mas um meio torto, carregado de ironia e... algo mais. Algo que Clara preferiu não identificar.
Ela se levantou, batendo a poeira das mãos. Parece um deslocamento leve. Deve ter escorregado com o solo molhado. Não é grave, mas precisa de anti-inflamatório e repouso — repetiu, num tom profissional afiado. — Isso é, se conseguir obedecer a ordens simples.
Noah deu um passo para trás, finalmente lhe devolvendo o espaço.
— Não se preocupe, doutora. Eu sei obedecer. — Fez uma pausa curta, deixando a frase pairar entre eles, carregada de significado. — Quando acho que vale a pena.
Eles se encararam por um momento, um sorriso quase escapando dos lábios dele. Clara sorriu primeiro, surpresa consigo mesma.
— Aceita uma xícara de café? — ofereceu Noah, quebrando o momento.
Clara olhou para a filha dormindo, não queria acordá-la e também não queria se afastar.
— Ela está bem — garantiu ele, apontando para uma garrafa térmica em cima de um banco de madeira próximo ao Tyler.
Noah a conduziu até a baía onde o garoto franzino estava, passando a mão carinhosamente pelos cabelos bagunçados do menino, que resmungou e saiu andando, batendo os pés no chão.
— Meu filho, Tyler — disse Noah, com uma sombra de tristeza que passou rápido demais pelos seus olhos.
Ele entregou a Clara um copo descartável com café fumegante. Ela sorriu em agradecimento e apontou para a caminhonete.
— Minha filha, Katiany.
Ele apenas assentiu e, por alguns minutos, ambos beberam o café em silêncio, cada um mergulhado em pensamentos e feridas antigas.
Da varanda da casa principal, uma mulher loira os observava com olhos semicerrados. Roxana, vizinha e viúva há alguns anos, era bonita, mas com uma beleza fria e calculista. Tinha uns cinco anos a mais que Noah, e o olhar endurecido por decepções passadas.
Ela apertava os dedos com força em volta da caneca de café. Havia semanas que Noah recusava seus convites para jantares e visitas "amigáveis". E agora... havia uma veterinária nova na cidade. Jovem. Bonita. E, pior ainda, com um jeito decidido que Roxana nunca tivera.
"Isso não vai dar certo", pensou, com amargura.
Mais tarde, na clínica, Clara limpava os instrumentos de trabalho quando o doutor Enéas entrou, equilibrando dois copos de chá gelado.
— Sobreviveu ao primeiro cliente? — perguntou ele, divertido.
— Mais ou menos. — Clara sorriu de lado. — Ele é... intenso. Mas o cavalo vai ficar bem.
— Noah é um bom sujeito — disse Enéas, entregando-lhe um copo. — Só que vive atolado em dívidas, tentando manter aquela fazenda linda e produtiva. A mãe do menino foi embora com outro homem, deixou uma penca de dívidas e abandonou o garoto. Desde então, Noah trancou o coração no orgulho e na teimosia.
— E a loira na varanda? — perguntou Clara, arqueando uma sobrancelha.
Enéas soltou uma risadinha.
— Roxana. Viúva do falecido Delmar, dono da fazenda vizinha. Ela tem dinheiro... e acha que isso dá direito a tudo. Inclusive ao Noah. Anda de olho nele faz tempo. E não gosta nada de concorrência.
Clara tomou um longo gole de chá e riu, balançando a cabeça.
— Perfeito. Conquistei um cliente mal-humorado e uma inimiga em menos de dois dias. — Ela piscou para Enéas. — Mas avise à dona Roxana que não sou concorrência. Estou fugindo de encrenca, não procurando mais delas.
Nesse momento, o som repentino de cavalos galopando em frente à clínica a fez saltar de susto. Enéas gargalhou.
— Bem-vinda ao Texas.
04